Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.03.24

Novos Contos d' África (I)


blogdaruanove

 

 

Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

© Blog da Rua Nove

16.02.24

Carlos Gouveia - Utanha Wátua


blogdaruanove

 

 

Carlos Gouveia (1930-2006), Utanha Wátua (1972).

Capa de Alfredo Freitas (datas desconhecidas).

 

Este volume integra a colecção Cancioneiro Angolano, que, sob a direcção de Filipe Neiva (António Filipe Sampaio Neiva Soares, n. 1940), Orlando de Albuquerque (1925-1997) e Wolfango de Macedo (Fernando Aníbal Wolfango Pereira de Macedo, n. 1931), já havia publicado Angola Poesia 71 e anunciava a próxima publicação de As Vozes Perguntam, de Orlando de Albuquerque, O Silêncio das Cidades, de Artur Queiroz (n. 1945), Fase 1, de João Serra (1950-2013) e Também já fomos um, de Ruy Burity da Silva (n. 1940), obra que já se anunciava em 1969 mas da qual não há resgisto posterior .

 

Autor de O Vagabundo da Cidade (1972), Olowali Yeto (1978), Na Rota dos Escravos (1994), em prosa, e de Olusapo (1980), A Noite do Meu Exílio (1992), De Benguela - Poemas de Amor e Não Só (1995), em verso, Carlos Gouveia colaborou em diversas publicações periódicas angolanas, como Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Sul e a província de Angola. As crónicas publicadas neste último jornal, sob título homónimo, foram reunidas no primeiro volume acima referido.

 

Em 1967 foi galardoado com o primeiro prémio de poesia lírica nos jogos florais de Benguela, com o poema Prece a mamã Chica, reproduzido na presente obra, estando alguns dos seus poemas incluídos na Antologia de Poetas Ultramarinos (1971), organizada pela revista Prisma.

 

O volume Utanha Wátua apresenta 40 poemas cujas temáticas oscilam entre memórias do passado e da infância (A Idade da Fruta, O meu barco de bimba, Para lá do rio), a realidade social e racial de Angola (Chão de Terra, A Última Esperança, Dona Margarida, Madalena), o desespero latente e a ânsia por um quotidiano diferente (Motivo para um Poema, Um Poema em cada Rosto, Calulú), onde se enredam os encantos e desencantos de Benguela, e dos seus bairros suburbanos, sobre os quais pairam indizíveis indignidades e silenciadas injustiças. 

 

Manuel Nunes Cardiga (n. 1933?) faz ainda outras leituras, no seu prefácio à obra: "Poeta da negritude, Carlos Gouveia? Antes, poeta dos humildes, sem olhar à pigmentação da pele. Poeta dos dramas que super-abundam no mundo sub-urbano de qualquer cidade angolana, tornado paladino da compreensão e da fraternidade."

 

O mesmo crítico prossegue a caraterização do autor e da sua poesia acrescentando: "(...) imagens da sua vida real, ao longo do eterno peregrinar de 35 anos, através desta Benguela de feitiços, cazumbi, praias morenas, bairros e sanzalas marginais, prenhes de sofrimento e angústias."

 

Transcreve-se, de seguida, o poema que dá título a esta obra, um poema que parece ser de um minimalismo elementar, superficial e quase repetitivo, mas onde as revoltas contidas e os protestos silenciados se insinuam e sobrevivem.

 

Aliás, na dedicatória manuscrita, patente neste exemplar da obra, Carlos Gouveia refere: "(...) oferece o autor estes poemas da verdade. Toda a verdade é dolorosa por isso a reprimimos. (...)"

 

"O Sol queima

a pele das pessoas,

a cabeleira da terra

fica ressequida,

gretada,

faminta,

desolada...

 

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

 

Lá nos longes, na montanha,

o calor queima a terra,

 o coração do homem

fragmenta-se,

a paisagem alimenta-se

de solidão...

 

Terra grávida de sede,

Homem vazio de esperança,

Milho enfezado,

mandioca desenraizada,

paisagem dolorida,

Sol de Fogo

a escaldar cabeleiras;

 

Lavra ressequida,

Céu límpido,

núvens brancas,

rosto negro,

suores frios

no calor do drama...

 

Chuva que não vem

matar a sede;

Fome que aumenta,

lavra perdida,

anémica;

Frutos pendentes,

doentes;

Pedras frias,

mudas;

Cão esquelético,

dorme,

um sono de ossos;

Abutre espreita

a vida que morre;

Homem corre

léguas de suor;

Chora,

lágrimas de dor;

Grita,

vozes de séculos;

Gesticula,

movimentos de criança !

 

A seca persiste,

a terra existe,

as raízes murcharam,

os olhos fecharam,

as bocas saciaram

mil protestos.

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA ! ...

 

A paisagem magoada

colocada a nú

a escravidão do mundo ! ..."

 

© Blog da Rua Nove

06.01.24

Revista Cultura (III)


blogdaruanove

 

O número 15 desta revista apresenta um conto de Francisco Mascarenhas (Francisco Xavier St. Aubyn Mascarenhas, 1928-2016), intitulado Arrependimento, que, tal como a maioria da literatura cabo-verdiana ali divulgada, já havia sido publicado anteriormente na revista Cabo Verde, um "Boletim de Propaganda e Informação" do regime, editado entre 1949 e 1964.

 

Francisco Mascarenhas nasceu no Mindelo, onde frequentou e concluíu os estudos liceais. Licenciou-se depois no Instituto Superior dos Estudos Ultramarinos, em Lisboa, começando a trabalhar como funcionário aduaneiro a partir de 1951.

 

Embora seja autor de obra literária pouco extensa, escreveu ainda para a revista Claridade e para o jornal O Arquipélago, colaborando também com a Rádio Barlavento, do Mindelo, a partir de 1955. Neste mesmo ano surgiu colaboração sua nos números 71 e 72, de Agosto e Setembro, do boletim Cabo Verde, com os textos intitulados Contrabando e As Nossas Ilhas: Uma Aguarela.

 

Do conto Arrependimento transcreve-se um parágrafo:

 

"A culpada de tudo tinha sido a Nuninha. Sim, só ela e mais ninguém. Por causa das suas coisas é que ele estava naquela situação, triste e abandonado. Nha Guida dizia-lhe sempre que deixasse aquela tentação da Nuninha, que apenas queria explorá-lo. Todos diziam à boca cheia, que aquela menina não gostava nem dele nem de ninguém neste mundo. Ela o que procurava era a satisfação dos seus caprichos. Com efeito, nha Guida via as coisas de longe. Tinha sempre pressentimentos. Ela tinha razão. Nuninha nunca se preocupou com emprego. Desprezava lugares de servir. De resto, não sabia fazer nada. Nem cozinhar, nem lavar, nem engomar. Viveu sempre «em pé». Mas andava sempre perfumada, pintada, de nylon e de crepe, de sapatos de camurça, jóias nas orelhas, no pescoço e no pulso. Ela já tinha namorado meio mundo e desgraçado muitos rapazes novos. O seu amor era egoísta, frívolo, passageiro.  Dava a vida para a folia, para bailes, cinema e fumo. Chalino sentia-se infantilmente embeiçado por ela. Todos o aconselharam repetidas vezes a pô-la de parte. Por isso zangou-se com os melhores amigos e esteve indiferente com a própria nha Guida e gente de família, que diàriamente lhe pediam que deixasse aquela menina que só servia para o arreliar, tirar-lhe todo o dinheirinho e sossego. Quase tudo quanto ganhava na baía, debaixo de sol, de suor e descomposturas, ia parar às mãos vesperinhas de Nuninha, que, nem por isso, lha agradecia e deixava de dar as suas voltas duvidosas."

 

© Blog da Rua Nove

29.12.23

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (I)


blogdaruanove

 

A presente antologia, com selecção de Baltasar Lopes (1907-1989), introdução de Manuel Ferreira (1917-1992) e comentários de António Aurélio Gonçalves (1901-1984), apresenta um conjunto de contos e excertos de romances da autoria de nove autores – António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Francisco Lopes (1932-2001), Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), Jorge Barbosa (1902-1971), Manuel Lopes (1907-2005), Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) e Virgílio ("Djila") Pires (1935-1985).

 

Prosseguindo com o critério de mencionar em primeiro lugar autores cuja obra ainda não tenha sido transcrita neste espaço, destaca-se hoje o trabalho de Francisco Lopes, representado nesta colectânea com dois contos – Chuva de Agosto, que havia sido publicado no Boletim Cabo Verde, em Outubro de 1958, e O Ourives (inédito).

 

Francisco Lopes frequentou o liceu no Mindelo, licenciando-se posteriormente em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa. Regressou em 1959 a Cabo Verde, onde foi docente no Liceu Gil Eanes até 1960, e, a partir desse ano, na Escola Industrial e Comercial do Mindelo, onde veio a desempenhar os cargos de subdirector, até 1974, e director, até 1988.

 

Uma vez que havia frequentado também o curso de Direito, exerceu ainda as funções de Procurador Geral da República na comarca do Barlavento, entre 1961 e 1963, e, entre 1964 e 1974, as de juíz substituto no Tribunal de S. Vicente. Depois da independência de Cabo Verde, veio a ser director regional de educação para as ilhas do Barlavento e presidente da Câmara Municipal de S. Vicente. Entre diversos outros cargos, foi também director da Rádio Barlavento.

 

Em 1960 co-organizou, com Baltazar Lopes, o número 9, o último, da revista Claridade, onde publicou o conto O Resgate. No cinquentenário da mesma revista, celebrado em 1986, contribuiu para uma edição comemorativa, extra-série, com o conto Bisca Interrompida.

 

Do conto Chuva de Agosto, traduzido para língua inglesa em 1972, aquando da sua publicação na África do Sul, e para língua russa em 1983, aquando da sua publicação na URSS, transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Uma atmosfera pegajenta, como só acontece nos dias que precedem as grandes chuvas de Agosto, amortalhava a ribeira. Parecia que o céu se unia à terra, àquela terra boa e generosa, num abraço de calor molhado, sufocante, que vinha de um ror de nuvens carregadinhas de humidade que cavalgavam por cima do vale, como alimárias desenfreadas, semm deixar cair pingo d'água. Um relâmpago cortou o céu em requebros de centopeia, seguido de um grande estrondo. O trovou reboou pela ribeira, cresceu, ganhou força, e, entrechocando-se pelas vertentes, desabou sobre a povação. Lá longe as cumieiras da Rocha Grande devolveram o eco num rugido sinistro.

 

Simão Toca estava sentado no alto do cabeço. Olhou para o céu, semicerrando os olhos feridos pela intensa claridade. Quedou-se assim por algum tempo, vasculhando as nuvens com a vista, a abanar a cabeça devagarinho, devagarinho, como quem escuta uma conversa com atenção. Aquilo era linguagem de chuva de Agosto que não tardava a cair. O que o aborrecia era a questão do dique. Tinha feito uma plantação mesmo a meio da ribeira e a única esperança de a salvar era o dique ficar pronto antes de as-águas. Simão Toca fez um sinal a André, que andava perto, metido numa moita. André aproximou-se.

 

– Boas-horas, nhô Simão – disse numa voz despreocupada. Simão Toca mal lhe respondeu e continuou ali especado, numa posição característica, pernas afastadas, mãos debaixo do queixo, apoiadas numa bengala de nós grossos que se espetava verticalmente no chão, direita como fio de prumo. Simão Toca repuxou os olhos para cima e encarou André.

 

– Então, esta obra no dique fica pronta antes da chuva de Agosto, não? – André rodava o boné entre as mãos.

 

– Trabalho vai indo, nhô Simão, vai indo – respondeu. Dificuldade é o dique ter de passar dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto, no lado norte. Simão Toca mal ouviu a resposta. Levantou-se de repente, como que sacudido por uma ideia luminosa e apontou para a ribeira.

 

– Olha ali, André, olha-me para aquele milheiral lá em baixo. Não notas nada? André fez um aah! inexpressivo, como quem não conseguia perceber. Ali moço – ali no caminho do dique. É aquela rocha, moço, é aquela rocha. Basta um fogo de dinamite para a deitar abaixo. Desviamos a rota da ribeira e nem é preciso acabar o dique no lado norte. André só então percebeu para onde Simão Toca apontava. Olhou para ele, olhou para a rocha, voltou a olhar para ele e arriscou numa voz hesitante:

 

– Mas nhô Simão aquele milheiral é já dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto e se a gente der fogo ele não vai ficar contente. Pode até dar contenda judicial.

 

Simão Toca voltara a sentar-se. Deu uma gargalhada e estendeu o braço para André.

 

– Qual contenda, qual quê. Eu tenho Djoquinha de Nhuto dentro da minha mão. Assim – disse – carregando na última sílaba e fechando o punho num gesto significativo. Dentro da minha mão – ouviste? André pediu licença e afastou-se lentamente. De longe Simão Toca ainda lhe gritou:

 

– Passa pela ribeira e põe os homens a trabalhar bem. Quero o dique pronto antes da chuva de Agosto."

 

© Blog da Rua Nove

07.12.23

Poesia de Moçambique (I)


blogdaruanove

 

 

Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).

 

Colectânea de poesia que terá surgido na sequência da visita de Jorge (1919-1978) e Mécia de Sena (1920-2020) a Moçambique, no ano de 1972, a propósito da celebração do quarto centenário de publicação de Os Lusíadas (1572).

 

O presente volume não indica qualquer ano de publicação, mas apresenta estudos introdutórios datados de 25 de Outubro de 1972 (Jorge de Sena) e Novembro de 1972 (Maria de Lourdes Cortez), pelo que a sua edição terá ocorrido em 1973, ano que corresponde à data de depósito legal na Biblioteca Nacional, de Lisboa.

 

Este é o primeiro, e único, número de uma projectada série, sobre a poesia de Moçambique, que não chegou a ter continuidade.

 

A ligação entre Eugénio Lisboa (n. 1930), Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994), Jorge de Sena, José Craveirinha (1922-2003) e Rui Knopfli (1932-1997), está bem documentada (veja-se um exemplo de estreita colaboração, entre Craveirinha, Knopfli, Lisboa e Quadros, aqui: https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290) e o seu relacionamento intelectual não é alheio à publicação da seminal revista Caliban, que surgiu no ano de 1972, como já foi referido (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-reino-submarino-28275).

 

Curiosamente, este volume, que pretende homenagear a obra poética dos três autores destacados na capa, apresenta uma maior extensão na análise crítica do que na reprodução de poemas – Sena analisa em seis páginas a obra de Craveirinha, que tem quatro poemas reproduzidos em quatro páginas; Cortez analisa em dezasseis páginas a obra de Grabato Dias, que tem sete poemas reproduzidos em oito páginas; e Lisboa analisa em vinte e duas páginas a obra de Knopfli, que tem quatro poemas reproduzidos em nove páginas.

 

Sobre a poesia de Craveirinha afirma Sena, no último parágrafo do seu estudo: "Poesia «negra»? Poesia «africana»? Por certo que sim a dele é. Mas tocada – ao revés do que pareça – de uma irónica e discreta melancolia, de uma sensualidade calma e distendida, de um contemplar de límpidos horizontes, de uma dorida tristeza de ser-se por destino voz, quando a vida poderia viver-se num amável e carinhoso silêncio de gestos e olhares. Talvez que, profundamente, e como contrapartida de uma primigénia e espontânea alegria de viver, isto seja a África, mais do que o imediato do aparente exótico ou da memória ou a experiência de séculos de terrores vividos. Mas, sem dúvida, é – acima de tudo – aquela nobreza da poesia ante que a crítica se envergonha dos seus juízos, como a humanidade deveria envergonhar-se de apenas sê-lo às horas em que não trafica consigo mesma."

 

De Craveirinha, que tem aqui apresentados os poemas Pureza, Nossa Cidade, Lustro à Cidade e 3 Refinamentos, reproduz-se o segundo poema, que já havia sido publicado na revista Caliban, números 3/4:

 

"Nossa cidade

esquisita na  bilharziose das compridas

noites amansadas como gatas de estimação ronronando

aos pés do dono e sobre as citadinas

coxas de pedra entreabertas no lençol como

uma  mulher saciada à segunda vez.

 

E nas ilhargas

da cidade os malditos meninos

de rostos tatuados de ranho seco

todos como pássaros fisgados no cajueiro dos malefícios

todos com os olhos amarelos de gemadas longínquas de sol africano

todos em carne viva sem sulfas de um naco de pão

todos a castanha de caju mastigada nos molares antropófagos da rua.

 

Nossa cidade

cemitério de mortos antes de o serem

e deserto povoado de um José-mulato jipe de carícias

nos joelhos nus das raparigas esfomeadas

também de angústias de cio

fêmeas e machos abotoados de ociosidade

devorando-se entre um boato e os relatos de futebol

ou enclausurando o universo no auomóvel a prestações

os dentes em riste de quem tange as violas

em ritmos a rebate nos pomos de alvenaria

mas quanto custa, afinal

quanto custa uma quinhenta de amendoins

do negrinho de faces tatuadas

de ranho seco?"

 

© Blog da Rua Nove

07.11.23

Revista Cultura (II)


blogdaruanove

 

O número 28 desta revista apresenta o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira (1935-2021).

 

Natural de S. Vicente, onde concluíu os estudos liceais, estudou depois em Portugal, onde frequentou a Casa dos Estudantes do Império. Na última metade da década de 1950, após haver regressado temporariamente a Cabo Verde, passa a viver durante alguns anos em São Tomé e Príncipe, onde convive com Alda do Espírito Santo (1926-2010), fixando-se depois, a partir de 1959, em Angola.

 

Posteriormente passou algum tempo na China, estudando em seguida, ainda durante a década de 1960, na Universidade de Uppsala, na Suécia, instituição onde se veio a doutorar, em 1976.

 

Depois de, nessa década, trabalhar algum tempo na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, Onésimo Silveira tornou-se o primeiro presidente eleito da Câmara Municipal do Mindelo, vindo depois a ser embaixador de Cabo Verde em Portugal.

 

Nas áreas do conto e da poesia publicou Toda a gente fala: Sim, senhor (1960), Hora Grande; Poesia Caboverdiana (1962), A Saga das As-Secas e das Graças de Nossenhor (1991) e Poemas do Tempo de Trevas, Saga, Hora Grande (2008). Em 1960, o número 9 da Colecção Imbondeiro, que apresentou a primeira obra acima referida, anunciava ainda a futura publicação de uma colectânea de contos intitulada Maré Cheia, de que não foi possível encontrar registo de edição.

 

Do conto Destino de Bia Rosa transcreve-se um excerto, corrigindo já as diversas gralhas apresentadas na revista mas mantendo a grafia da época:

 

"O sol a pique tudo abrasava. O barulho ensurdecedor da fábrica de óleo de palma era uma nota fastidiosa no meio da calmaria.

 

Nas senzalas os que conseguiram findar a sua tarefa estendiam-se à sombra para se recomporem; outros limpavam e arrumavam os seus tarecos porque no dia seguinte – domingo – chegavam serviçais caboverdianos.

 

Chegou a tarde e, depois, a noite que envolveu em densa escuridão a roça inteira. Tão sòmente as lâmpadas espalhadas em redor da casa do patrão quebravam, com a sua luz amarelada, a monotonia que invadira as senzalas.

 

Domingo.

 

Nove horas e já todos os serviçais se acham em casa. Preparam com mais cuidado o almoço e as raparigas vestem os seus vestidinhos melhores.

 

O ronco de um motor alvoroçou os caboverdianos, após período de longo e desacostumado silêncio. Era a camioneta da roça que assomava lá ao cimo da encosta que dá para o terreiro. As pessoas que vinham nela, tontas de calor não davam sinal de vida...

 

Chegou enfim!

 

Mantenhas, encomendinhas, abraços, choros, novidades! De todos os lados chovem perguntas.

 

– Trouxemos dois violões, um cavaquinho e um banjo – respondeu Lela Canhota a pergunta de Pedrim.

 

– E grogue? – indagou Pedrim novamente.

 

– Grogue! O que os safados dos guardas não nos tomaram em Fernão Dias está connosco.

 

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

 

Nunca a roça vivera momentos de tanta euforia! Os serviçais pediam mornas. – «Mornas novas»! – gritavam – mornas de B. Léza!

 

À tristeza do anoitecer dos dias anteriores sucedeu uma série de canções dolentes que tanto diziam aos seus executantes – que lhes restituiam parte da alma deixada na terra natal!

 

Pedrim convidou a primeira dama a jeito e, com alguns cálices de grogue já enfiados, desatou a mornar, a mornar..."

 

© Blog da Rua Nove

18.10.23

Poetas de S. Tomé e Príncipe (II)


blogdaruanove

 

Alfredo Margarido (1928-2010; prefácio e estudo crítico), Poetas de S. Tomé e Príncipe (1963).

Ilustração da capa de José Pádua (n. 1934).

 

Continuando a destacar, em primeiro lugar, poetas desta colectânea cuja obra ainda não tenha sido reproduzida neste espaço, aborda-se neste pequeno artigo a obra de Tomaz Medeiros (1931-2019), sobre a qual Alfredo Margarido afirmou – "A posição de Tomás Medeiros é a de uma completa adesão aos tema e problemas do humanismo negro: a minha família inteira / com os seus filósofos bantus / com os meus guerreiros balubas / cantando canções iorubas, ou seja não já um divórcio completo de valores ocidentais em que foi educado, mas um reconhecimento integral dos valores africanos que permanecem sob a capa europeia que foi imposta ao arquipélago."

 

Tomaz Medeiros foi diretor da revista Mensagem, editada, tal como esta colectânea, pela Casa dos Estudantes do Império, tendo estudado em São Tomé e, depois, em Angola e Portugal, já no ensino liceal. Em Portugal iniciou os seus estudos universitários, que depois veio a concluir, com uma licenciatura em Medicina, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

 

Foi co-fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola e do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe, locutor e repórter da Rádio Moscovo. Colaborou ainda com o Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vindo a falecer em Portugal.

 

Na ficção narrativa é autor do romance O Automóvel do Engenheiro Diakamba (2003) e de Quando os Cucumbas Cantam (2016), estando a sua poesia editada apenas em colectâneas, tanto em língua portuguesa como noutras línguas. 

 

Transcreve-se, de seguida, o poema Um Socopé para Nicolás Guillén (1902-1989), onde se pode constatar que, afinal, a poesia de Tomás Medeiros transcende os problemas do humanismo negro e se filia também, ironicamente, num internacionalismo socialista de origem não africana.

 

UM SOCOPÉ PARA NICOLÁS GUILLÉN

 

Conheces tu

Nicolás Guillén,

a ilha do nome Santo?

 

Não? Tu não a conheces?

A ilha dos cafezais floridos

e dos cacaueiros balançando

com mamas de uma mulher virgem?

 

          Bembom, Nicolás Guillén,

          Nicolás Guillén, bembom.

 

Tu não conheces a ilha mestiça,

dos filhos sem pais

que as negras da ilha passeiam na rua?

 

Tu não conheces a ilha-riqueza

onde a miséria caminha

nos passos da gente?

 

          Bembom, Nicolás Guillén,

          Nicolás Guillén, bembom.

 

Oh! vem cá ver a minha ilha,

vem ver cá  de cima,

da nossa Sierra Maestra.

 

Vem ver com a vontade toda,

na cova da mão cheia.

 

Aqui não há ianques, Nicolás Guillén,

nem os ritmos sangrentos dos teus canaviais.

 

Aqui ninguém fala de yes,

nem fuma charuto ou

tabaco estrangeiro.

 

(Qu'importa, Nicolás Guillén,

Nicolás Guillén, qu'importa?)

 

Conoces tu 

La isla del Golfo?

 

          Bembom, Nicolás Guillén,

          Nicolás Guillén, bembom.

 

© Blog da Rua Nove

12.09.23

Revista Cultura (I)


blogdaruanove

 

Esta revista, cuja publicação se iniciou em 1956, tinha como subtítulo Revista Portuguesa de Educação Popular, parecendo querer evocar, de modo inevitavelmente restrito, o princípio da generalização da cultura para a educação das massas, numa tradição já anteriormente promovida pela revista Seara Nova (fundada em 1921) e entretanto seguida, também, por algumas editoras como a Cosmos (a famosa Biblioteca Cosmos foi lançada em 1941) ou a Inquérito (fundada em 1938). 

 

Tal como se verifica nesta capa, cada número apresentava uma elevada e heterogénea quantidade de textos, os quais, estando limitados às quarenta páginas da revista, têm como inevitável consequência uma concisão dos artigos, que tendem a ser demasiado generalistas e cujos conteúdos roçam, por vezes, a superficialidade.

 

Dirigida por João Alberto Frazão de Faria (datas desconhecidas), a revista tinha no seu quadro colaboradores provenientes de diferentes áreas profissionais, como o economista Afonso Howell (datas desconhecidas), o médico A. M. Estanco Louro (datas desconhecidas), o advogado e escritor Geraldo Bessa Victor (1917-1985), o engenheiro Ilídio Alves de Araújo (1925-2015), o pintor José Júlio Andrade dos Santos (1916-1963), o filólogo José Pedro Machado (1914-2005) ou o escultor Martins Correia (1910-1999).

 

Neste número anunciam-se poetas de Cabo Verde, que são Aguinaldo Brito Fonseca (1922-2014), com o poema Noite, e Nuno Miranda (1924-2022), com o poema Recado, mas surge também outro autor cabo-verdiano, Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), com o conto Resignação.

 

Transcreve-se hoje o poema Recado, de Nuno Miranda, colaborador de segunda geração da revista Claridade, que até àquela data ainda não lançara qualquer livro mas haveria de vir a publicar os volumes Cais de Ver Partir (1960), Cancioneiro da Ilha (1964) e 40 Poemas Escolhidos (1974), no âmbito da poesia, e Gente da Ilha (1961), Caminho Longe (1974) e Cais de Pedra (1989), na ficção.

 

Poema marcado pela "sôdade", mais do que pela dureza da vivência e sobrevivência no quotidiano do arquipélago, traduz o sentimento do desterrado ansiando por um intangível locus amoenus, que tanto é o seu passado como a memória da sua vida enquanto ilhéu, num lirismo quase onírico que é também marca identitária do movimento claridoso.

 

RECADO

 

Quando aportares

dá-lhes notícias de mim nesta cidade.

 

Diz-lhe [sic] da voz surda estremecendo

e leve e tonta no meu peito, como se nada fora

ao vento que se escapa a este céu onde viceja um cravo,

a flor do meu destino.

 

Diz-lhe [sic] que vou-me às vezes da noite roxa

pelos subúrbios de tons de calmaria

na ronda de lembranças já mortiças

mas, velhas cicatrizes não saradas,

ai de mim!...

 

Não encontro

as ruinhas serpeando pela minha intimidade

o limo nos beirais das ruas do porto

o sonho de mar alto em cada olhar ficado

não vejo

a casa velha do terreiro alto onde ancoravam

os nocturnos das viagens de arrabalde.

 

Que é dos traquetes tombados e dos botes carcomidos?...

 

Só a lembrança de outrora

na flor deste destino.

 

Se te falarem de mim quando aportares

diz-lhes que vai ao longe na cidade a estibordo

a nave desta carne macerada

 e a asa de minha alma, ao céu aberta...

 

© Blog da Rua Nove

 

13.04.23

Baltasar Lopes - Chiquinho


blogdaruanove

 

Baltasar Lopes (1907-1989), Chiquinho (1947).

Ilustração para a capa da autoria de M. F.

 

Como já foi referido, um excerto deste romance, intitulado O Sr. Euclides Varanda, havia já sido publicado, em 1941, no primeiro número da revista luso-brasileira Atlântico (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/revista-atlantico-i-19333).

 

Obra maior do autor e da literatura de Cabo Verde, esta primeira edição de Chiquinho foi impressa na Tipografia Cardoso, em Lisboa, mas publicada pelas Edições Claridade, de S. Vicente.

 

© Blog da Rua Nove

20.03.23

Júlio Celso Delgado - Crónica Caboverdeana


blogdaruanove

 

Júlio Celso Delgado (pseudónimo de Ruy Cinatti, 1915-1986), Crónica Caboverdeana (1967).

 

Escritor cuja obra é habitualmente associada a Timor, Ruy Cinatti, a exemplo de outros autores que pontualmente escreveram sobre locais menos expectáveis na sua topografia literária, como Maria Ondina Braga (1932-2003), adopta aqui um pseudónimo (que, na dedicatória manuscrita, assume quase como heterónimo – " [...] com um sorriso do heterónimo e o agradecimento e estima do Ruy Cinatti / Julho 68") para retratar a condição individual e sócio-geográfica da população de Cabo Verde.

 

Esta crónica poética, onde o lirismo fica soterrado pela realidade crua e trágica do quotidiano, assume formas múltiplas e polifónicas, de matiz expressionista e registo quase neo-realista, cujas características estruturais e conceptuais estão claramente expressas em algumas secções como A Fome e Os Governadores, ou em subtítulos como A Sociedade em Algumas Vozes, O Ambiente em S. Vicente ou Memórias de um Furriel Miliciano Expedicionário.

 

Alguns dados biobibliográficos sobre o autor podem ser consultados num outro artigo, anteriormente publicado neste espaço, sobre Ruy Cinatti (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/ruy-cinatti-memoria-descritiva-36318).

 

De este volume transcrevem-se dois poemas, As Moscas e Se eu me casar aos vinte:

 

AS MOSCAS

Acudi, Senhor! As moscas

comeram-me o coração.

Não foi só a falta d'água,

nem os pastos, nem as cabras

a roerem trapos,

a lamberem pedras

e a morrrem de olhos virados em água.

Pior do que a fome, as moscas

azuis, voluptuosas,

devorando uma mulher

perseguida pela fome,

caída à beira da estrada

quando se deu a invasão

das moscas em Cabo Verde...

 

Se eu me casar aos vinte,

já casado aos dezasseis,

sei que terei um filho

agorinha, e que fiz pela vida.

O resto,

é coisa que eu não sei.

Carregar sacos no cais,

ir à pesca ao domingo,

olhar o mar que é tão lindo,

embalar-me numa morna

até sentir que são ondas

os ventres a meu colados;

beber forte até não ter

sítio onde cair morto

e depois dormir, dormir

e sonhar com o paraíso, 

são coisas que também sei.

Afinal, sabemos tudo

menos aquilo que eu não digo

e que é a razão segura 

de sermos pobres de pobres

em Cabo Verde.

 

© Blog da Rua Nove