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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

05.03.10

Ferreira da Costa - Pedra do Feitiço


blogdaruanove

Capa e ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957).

 

Ferreira da Costa (1907-1974), Pedra do Feitiço (1945).

 

Com este volume, Ferreira da Costa complementa as narrativas que tinha apresentado em Na Pista do Marfim e da Morte, obra que fora publicada um ano antes e constituíra um imediato sucesso de vendas, com várias edições num só ano. Fenómeno que também se verificou com este livro.

 

Compilando neste volume quatro longas narrativas  - A Última Caçada de um Príncipe Negro, O Testamento do "Papa-Rôlas", A Bebedeira Verde e Adeus, irmão! Até um dia!, que mais poderão ser qualificadas como novelas do que como contos, o autor apresenta-se-nos com um narrador exímio mas é na descrição do despertar da terra africana a seguir às chuvas, apresentada em A Bebedeira Verde, que nos oferece um notável momento literário.

 

Transcrevem-se, de seguida, um excerto do prólogo à obra e um trecho da referida descrição:

 

"Prosseguindo  e concluindo as reportagens vividas que constituíram o volume intitulado 'Na Pista do Marfim e da Morte', êste livro encerra os episódios finais da minha vida nos sertões da África Ocidental.

 

Já morreram as maiores personagens das narrativas que ides ler. Mai-Kingombe, José Queiroz, Ricardo e 'Branco Grande' encetaram, há muito, a mais enigmática das aventuras; Raul de Oliveira também partiu para aquêle singular país onde, segundo a lírica visão de Tagore, ' não há noites nem dias, e os cânticos são silenciosos.' No entanto, ao escrever os capítulos que aí vão, pressenti as suas presenças. Eram sombras que rondavam nas minhas reminiscências, sugerindo-me conselhos, a explicarem-me cenas que, outrora, me parecerem inexpressivas. E pensei que lhes ofenderia grosseiramente as memórias, se juntasse à substância de acontecimentos reais – gravados na minha carne e no meu espírito – pormenores ditados pela imaginação. Demais, para que seria necessário recorrer a tanto? Para quê, meu Deus, se ainda reservo ciosamente, até não sei quando, as confidências cruéis de 'Branco Grande' – funante heróico – e a confissão pungente de Ricardo – o misterioso português acicatado pelo remorso?

 

Comovidamente meditado, somatório de recordações fiéis, êste volume nem sequer no título obedece a capricho ocasional ou preferência de eufonia. A Pedra do Feitiço existe. Fica distante de Santo António do Zaire, quási em frente de Boma. É um morro pedregoso, agreste e nu. Triste. Sinistro, por vezes. Assenta no limite de savanas bravias, onde as tsé-tsé instilam venenos letais, os carnívoros despedaçam corças e todos os brutos urram de ansiedades frenéticas, nos contactos da procriação. Para lá da colina rochosa, desliza o grande rio majestoso – o Zaire. O calor martiriza. Entontece. Leva ao desvario. Nem réstea de sombra, para lenitivo de tamanho tormento. Em tôrno, não se vislumbram sinais de vida humana. Paira um silêncio trágico, primitivo, só atenuado, ao descer a noite, pelo resfolegar dos hipopótamos e os gritos estridentes dos abutres. Chega-nos o cheiro nauseabundo da carne podre – carcassas sanguinolentas, restos dos festins nocturnos das panteras e dos chacais. Na margem, entre limos e juncos, brilha o olhar vítreo dos jacarés.

 

Penedos musgosos, carne morta ou chicoteada pelos instintos primários, ranger de queixadas que devoram, exalações de venenos dispersos nas ervagens ou suspensos nos ferrões dos insectos, goelas famintas esperando vítimas na beira-rio, coisas que apodrecem numa fermentação borbulhante que faz mêdo... Calor. Mudez. Ninguém. É  assim a Pedra do Feitiço."

 

 

Ferreira da Costa declara não ter juntado "à substância dos acontecimentos reais pormenores ditados pela imaginação". De facto, tal declaração é irrelevante para a classificação destes como textos literários. Com ou sem imaginação, as narrativas são claramente literárias e as descrições aproximam-se das melhores e mais intensas que se podem encontrar, em língua portuguesa, sobre África:

 

"Um dia, quási a mêdo, o sol descobre a face. Então, se o homem branco penetra na selva, estremece e fica atónito de espanto, confusamente amedrontado. Olha e nada reconhece. Sumiram-se as feições dormentes do estio. A païsagem transfigurou-se. O mato despertou, em frenéticos sobressaltos. E a transmutação entontece, desorienta, enche-nos de enleios singulares. A colinas pardacentas surgem-nos verde-oliváceas. Uma rocha côr de bronze aparece-nos esmeraldina. Há esferas de malaquite onde víramos pedregulhos negros e agudos. Já não existem os cerros ásperos, os penhascais, as penedias sôltas. A selva cresceu, agigantou-se, expandiu-se numa extravasão vertiginosa de seivas; transpôs todos os obstáculos com ímpeto silencioso e feroz. Largas 'picadas' feitas pelos europeus, trilhos gentílicos, tugúrios de caçadores mussorongos, arimos de ginguba, clareiras tisnadas pelo fogo, tudo foi reconquistado pelas vegetações em delírio. Não há brechas, nem veredas. Há muralhas de trepadeiras, de ramúsculos e rebentões; tôrres de folhagens escamulosas, sebes eriçadas de mucrões e acúleos, pêlos rijos como cordas, ramos cortantes como punhais. Corriolas corpulentas marinham até o cocoruto das árvores maiores, enrolam-se, multiplicam os braços, desfiguram os perfis graciosos das palmeiras, os caules raquíticos das matebas, os corpanzis das acácias rubras. O capim avança por cima dos ramos coriscados. Reverdecem estolhos e arbustos, à beira dos gigantes vencidos pelo raio e pelo vendaval. Abrem-se corolas de pesadelo, na berma dos paúis borbulhantes de sapos. Há um fermentar rechinante de coisas pútridas. Adivinham-se as sucções gulosas das humícolas, sorvendo vida na podridão dos lenhos mortos. Sentem-se os frémitos da antese, as vibrações do labor espérmico.

 

Os charcos transformaram-se em lagos; os riachos alastram pelas redondezas e não permitem passagem. Envolve-nos uma luminosidade espectral, lívida e baça. Ficam verdes os rostos e as vestimentas. É verde o bafo que nos sai da bôca. Das penumbras, vêm rumores indistintos. Rangem troncos, na gestação de rebentos; remexem fôlhas, ajeitando-se para maior crescimento; gemem os ramitos novos, para alcançarem alturas onde brilha o Sol. Movimentos furtivos agitam as pedras vestidas de líquenes. Súbitos estremecimentos deslocam a crosta do solo empapado de água. Estalidos, roçagares farfalhantes, silvos inexplicáveis... Os fungos estoiram e abrem bôcas. Rolam troços de  cascas roídas pelas salalé. Despenham-se troncarias velhas, rendidas ao pêso dos cipós. E a neblina virente que nos envolve esbate contornos, esfuma perfis, empresta às coisas e às criaturas assustadas feições de fantasmas. Temos a perturbadora impressão de penetrar num planeta diferente. Compreendemos – mais ìntimamente do que nunca – palpitarem à nossa volta fôrças monstruosas."

 

 

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