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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

17.03.10

Henrique Galvão - Outras Terras, Outras Gentes


blogdaruanove

Capa (?) e ilustrações de Fausto Sampaio (datas desconhecidas).

 

Henrique Galvão (1895-1970), Outras Terras, Outras Gentes, 2.º volume, (1942?).

 

Embora os dois volumes que constituem esta obra sigam estritamente, na sua organização, o itinerário percorrido pelo autor em terras angolanas, a obra afasta-se do registo seco das meras notas de viagem, assumindo-se como literatura de viagens na sua acepção mais elaborada.

 

A este facto não será estranha a prática literária do autor, que na década anterior havia sido distinguida já com vários galardões no âmbito da literatura colonial.

 

Apresentando cinco capítulos – Moxico, berço de rios; Terras do Fim do Mundo, Do Cuangar à Huíla, pelo Bié; Para Aquém e para Além da Chela e Do Lubango a Luanda por terras de Oeste, este segundo volume mantém o modelo desenvolvido no primeiro, apresentando-nos o itinerário por terras de Angola como pretexto para diversas narrativas e descrições literariamente elaboradas.

 

Do capítulo Para Aquém e para Além da Chela trancrevem-se dois excertos:

 

"E ficou assente que o Fraga iria ao Cuanhama, aparentemente no exercício do seu míster de funante – mas na verdade, como espião.

O grande aventureiro não cabia em si de contente.

Tinha saüdades do Cuanhama, das viagens aventurosas, das incertezas em terra hóstil, do alerta constante dos sentidos.

Era um jogador especial – mas vicioso como todos os jogadores. Não o tentava arriscar dinheiro nas tavolagens, mas apaixonava-o jogar a vida em pleno naquela grande roleta do Cuanhama.

Desde que tinham sido proíbidas as viagens dos funantes para além do Cunene, metera-se a funar nas terras ocupadas. Ganhava mais e tinha menos canseiras – mas não era a mesma coisa. Tinha perdido o amor ao dinheiro desde que percebera que não era a fortuna que o tentava nas grandes aventuras do Cuanhama. Em compensação sabia-lhe melhor a vida quando tinha que a ganhar todos os dias contra a morte. Deslumbrava-o, saboreada assim, como uma vitória sempre fresca.

Por isso era um jogador – e especial, porque tinha o vício de jogar a vida.

Foi com alegria de criança que preparou os seus carros como dantes.

Encheu-os de fazenda e de presentes para o Mandume. E quando os viu atestados e prontos, montou o "Sultão" e abalou, remoçado e restituído à alegria de viver.

Os funantes eram assim. E se assim não fôssem não seriam funantes."

 

 

"À data da minha última viagem pelo Cuanhama, reinava, em termos bem diferentes, é claro, a sobrinha do Mandume – a Kalinaxo.

O Cuanhama era então, como hoje, apenas uma circunscrição de Angola – e a Kalinaxo, apenas uma raínha preta, muito dona dos seus gados e pouco raínha das suas gentes.

Era fina e manhosa.

Bebia champagne como o Mandume, mas preferia trajar à maneira dos seus: a n'ctuba assente sôbre as nádegas, o peito ressequido orgulhosamente nu, a manteiga escorrendo do cabelo e o perfume do leite azêdo a espalhar-se em volta.

Quando conversei com ela, tinha um ar irónico mas triste – um meio sorriso que assentava como um postiço na máscara melancólica.

Tinha razão. Ela conhecera a vida fulgurante do Mandume e comparava-a com a monotonia da sua. Trazia encarcerada na substância aventurosa de cuanhama, a ância das guerras, das razias, da prepotência e do domínio – e esmorecia na paz, sob a quietação bovina das manadas e na sucessão de dias iguais.

Era apenas uma Raínha de pastores, vassala pràticamente de um Chefe de Pôsto – ela, a sobrinha do Mandume, que fôra Chefe altivo e indomável de guerreiros e ladrões!

Compreendo perfeitamente a melancolia da Kalinaxo - muito melhor do que compreendo o orgulho dos civilizados do nosso tempo.

Quando comparo as qualidades e defeitos de homens como o Fraga e o Mandume, com as qualidades e os defeitos dos triunfadores da minha geração, choca-me, antes de mais nada, a antítese entre dois sistemas morais.

Acima dos defeitos dos primeiros – ou como qualidade dos seus defeitos – pairava o respeito pela coragem, a consideração pela valentia e o culto organizado do brio individual e colectivo.

No alto das qualidades dos segundos – ou como um defeito das suas qualidades – vingam o desprêzo pela coragem e pelo carácter e os processos de deformação da coluna vertebral."

 

 

 

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