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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

06.04.12

Castro Soromenho - Terra Morta (I)


blogdaruanove

 

Castro Soromenho (1910-1968), Terra Morta (1961).

 

Como já foi referido anteriormente, este é um romance da década de 1940 que surgia referenciado na lista bibliográfica de Calenga (1945) com a seguinte nota – "Não pode entrar no mercado". Obviamente, este facto contradiz as declarações que afirmam ter esta obra sido escrita em 1949 (cf. http://sobrecs.wordpress.com/2012/03/10/susan-a-de-oliveira-terra-morta-perspectivas-da-historiografia-literaria-e-da-historia-social-de-angola/).

 

Em 1949 surgiu efectivamente, no Brasil, a primeira edição em português desta obra, a que se seguiu em 1956 a primeira edição francesa (http://sobrecs.wordpress.com/2011/07/16/jinga/), com tradução de Violante do Canto (n. 1923) e prefácio do consagrado antropólogo e sociólogo Roger Bastide (1898-1974). Depois de publicada em Portugal pela primeira vez em 1961, esta obra teve várias reedições nas últimas três décadas.

 

A autorização de publicação deste romance em Portugal, após quase duas décadas de proibição, não deixa de ser surpreendente. Afinal, em Fevereiro desse ano começara a sublevação em Angola, tendo a obra sido acabada de imprimir em Julho de 1961. Mais, o espaço ficcional da narrativa decorre no Camaxilo, terreola da Lunda-Norte, província encravada entre a fronteira e a província de Malange, a qual, por sua vez, confinava com as três províncias onde ocorrera a sublevação – Zaire, Uíge e Quanza-Norte.

 

Tendo uma visão sobre África completamente distinta da do regime, Castro Soromenho desenvolve aqui uma narrativa desassombrada sobre a realidade angolana.

 

É assim que a desencantada vila de Camaxilo surge como um microcosmos onde a sobrevivência no presente se cruza com a nostalgia do passado e a incerteza quanto ao futuro. Brancos, pretos e mestiços, administradores, velhos colonos, cipaios, capitas, sobas e negros das senzalas movem-se à volta dos dois bairros da vila, num opressivo clima de tensão e distensão.

 

À nostalgia do passado, da abundância da borracha e do marfim para os negociantes brancos, contrapõe-se no presente a insatisfatória cultura do algodão e o declínio do comércio. Para os sobas, e a população das senzalas, a liberdade passada contrapõe-se à obrigatoriedade de pagar impostos e à obrigatoriedade de os homens prestarem um ano de serviço nas minas da companhia, aquela que viria a ser a Diamang.

 

As inundações, a fome e as mortes que perpassam pelo romance culminam simbolicamente com o incêndio do edifício da administração e a antes anunciada mudança da sede da circunscrição para Caungula. Fim de ciclo. Terra morta.

 

 

Castro Soromenho, tendo à sua direita o escritor José Cardoso Pires (1925-1998), o fundador da editora Ulisseia (1948), Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008) e o escritor Manuel da Fonseca (1911-1993). (Imagem retirada de: http://sobrecs.wordpress.com/2011/09/25/o-diario-de-lisboa-na-morte-de-castro-soromenho/.)

 

Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos sobre a época das chuvas e as inundações:

 

"O fio de água de há três meses, sumindo-se no fundo do vale sob o verde sombrio da floresta, tornou-se em pouco tempo rio caudaloso, rumorejante, cavando fundo a terra das margens e arrancando pela raiz árvores que carrega no dorso ao longo da selva para a estepe do Cuilo.

 

O homem nu não se afoitava com a sua almadia a ganhar caminho das aldeias ribeirinhas. E os bichos há muito deixaram de procurar os seus bebedoiros da quadra do cacimbo, à sombra da floresta que cobre o vale.

 

Os homens e os bichos abandonaram, medrosos, a fúria do rio. Só a floresta lhe oferece luta, obrigando-o a revolver-se no labirinto das suas árvores e a desviar-se aqui e ali das barreiras de cipós. Enfurecido, o rio atira-se contra a floresta, que o tenta apertar no leito, invade-lhe as terras sombrias, abre-lhe rasgões por onde estende os seus braços, envolvendo-a e pondo a nu raízes seculares. E segue, bramindo, para a planície que logo se lhe oferece, dando-lhe largas para se espraiar. É ali, na terra nua de horizontes desolados, que se lhe quebram as energias. A sua fúria abranda pouco a pouco, deixa-se de ouvir o seu bramido, e os despojos que ganhou, em dura luta, à floresta, vão ficando pelo caminho, na planície alagada para onde  fogem os peixes atormentados pela impetuosidade da corrente. E segue, brando, no seu leito natural, através da planície, onde as águas paradas ao longe vão enegrecendo sob as asas das aves que descem em voos rápidos para apanharem pequenos peixes.

 

Ao fundo da estepe, com uma mancha negra de floresta na linha do horizonte, o rio entra num tremedal, desaparece sob os lodos verdes e negros, com flores vermelhas, amarelas e azuis a perfumarem o céu baixo e sombrio, para surgir mais adiante, junto à floresta, por onde abre caminhos tortuosos que o levam para a boca de outro rio."

 

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