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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

21.12.13

Nuno Bermudes - Uma Gota de Chuva


blogdaruanove

Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

Nuno Bermudes (1924-1997), Uma Gota de Chuva (1964).

 

Funcionário, em Moçambique, do Banco Nacional Ultramarino, Nuno Bermudes foi redactor do jornal Notícias da Beira, desde o início da década de 1950, tendo ainda desempenhado as funções de chefe de redacção do jornal Notícias, de Lourenço Marques [actual Maputo], em 1958.

 

Para além de ter publicado as obras anteriormente referidas (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3842.html), em 1964 tinha já obtido o primeiro prémio de reportagem de Moçambique com Gorongosa – No Reino dos Animais Bravios, e publicado Um Machangane Descobre o Rio – Crónicas de viagem ao Rio de Janeiro.

 

Neste volume reunem-se dois contos – Uma Gota de Chuva e A Visita, originalmente publicados em Gandana e Outros Contos (1959), cujo enredo se baseia essencialmente numa recorrente analepse evocativa de violência e instinto face ao sentimento de desonra, que alterna com o presente de um caçador, Rodrigo, na primeira narrativa.

 

Na segunda narrativa, as desafiantes decisões do passado surgem como a origem de um caminho levando à presente desilusão e desalento de Isabel, mulher casada com um fazendeiro e afastada da sua origem urbana, que já não encontra qualquer razão para os sacrifícios a que se submeteu. 

 

Do conto A Visita transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Subiam agora as escadas de casa. Falcato abriu a porta de rede e empurrou a de madeira. Entraram e ele distribuiu-os pelas várias cadeiras da sala. Chamou a mulher e apresentou-a. Apesar da roupa mal feita, do cabelo descuidado, do abandono de todo o seu corpo prematuramente amolecido, os Serpas sentiram-na diferente.

 

Ela sorriu-lhes, Júlio reparou-lhe nos dentes alinhados e pequenos, Ramiro no seios que arredondavam a blusa.

 

Enquanto bebiam o uísque, Isabel Falcato, com um cigarro entre os dedos longos, amarelecidos pela nicotina, olhava-os de frente, observando-os, estudando cada um deles, com um desembaraço que os fazia desviar a vista. Dizia, aqui e ali, uma frase amável, marcando a presença, alisava a saia sem gosto, num gesto automático e vago. Andava pela casa dos trinta e cinco e na linha sinuosa da boca havia uma leve sombra de amargura que o sorriso, em vez de desanuviar, ainda carregava mais.

 

Falcato falava:

 

– Ora, sim senhor, meus amigos! Nem era preciso a carta! Aqui a nossa porta está sempre aberta para os vizinhos! Não é Isabel?

 

Ela encolheu o corpo. Sorriu.

 

– Os vizinhos são poucos... – articulou, e era o sorriso que falava. – Os mais próximos, até agora, que os senhores vieram, vivem a setenta quilómetros. A última vez que aqui estiveram foi há dois meses. Mas é, Alberto, a nossa porta está sempre aberta.

 

O marido alongou-se sobre a luta mantida durante quinze anos, antes de lograrem alcançar tudo aquilo, toda aquela reconfortante sensação de segurança e estabilidade. Anastácio e Ramiro bebiam-lhe as palavras, mentalmente tentavam identificar-se com ele, seguir-lhe os passos, conquistar a mesma vitória.

 

Júlio fumava em silêncio, distante das palavras que rodopiavam pela sala, os olhos perdidos na noite, que descera agora completamente, para lá da janela.

 

E, repentinamente, deu pelo olhar de Isabel fito em si, agarrado na sua carne como um ferrão persistente, doloroso. A princípio, aborreceu-o a insistência, imaginava-se, sabendo-se socialmente abaixo dela, sendo avaliado e depreciado pela interpretação patrícia da mulher citadina. Depois, duas ou três vezes, os seus olhos encontraram-se e nos dela Júlio viu, admirado, o apelo do náufrago que procura, nas ondas tumultuosas, uma ilha ou apenas um destroço. Viu, e nunca mais olhou. A impressão era agora outra, atingia-o de maneira diferente, não a conseguia explicar."

 

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