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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

09.07.16

Orlando de Albuquerque - Alda Lara: A Mulher e a Poetisa


blogdaruanove

 

Orlando de Albuquerque (1925-1997), Alda Lara: A Mulher e a Poetisa (1966).

 

Volume de homenagem a Alda Lara (1930-1962), apresenta uma biografia da escritora, uma breve introdução à sua poesia e uma pequena antologia, intitulada Os Poemas Preferidos de Alda, onde se trancrevem treze dos seus poemas. 

 

Organizada pelo também médico, moçambicano radicado em Angola e seu marido, Orlando de Albuquerque (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/4664.html), este opúsculo apresenta ainda, em extra-texto, seis fotografias de Alda Lara, seus quatro filhos e sua família, sendo a última uma imagem da poetisa e seu marido, e da restante equipa cirúrgica, em pleno labor numa sala de operações em Cambambe.

 

No final deste volume refere-se ainda o seguinte – "O produto integral da venda deste livro, edição e propriedade do autor, destina-se à Fundação Alda Lara de Albuquerque, instituição em organização". Embora esta obra ostente na sua abertura a data de 1966, o seu cólofon regista os seguintes dados – "Composto e impresso na / Gráfica da Huíla, Lda. / Sá da Bandeira – 1967".

 

Recorde-se que, já depois de 25 de Abril de 1974, Amândio César (1921-1987) publicou um estudo sobre esta poetisa (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/658.html) e note-se, ainda, que a poetisa Alda Lara era irmã do escritor Ernesto Lara Filho (1932-1977).

 

Transcreve-se de seguida o poema Presença Africana, escrito em Benguela e datado de 1953:

 

"E apesar de tudo,

 ainda sou a mesma!

 Livre e esguia,

 filha eterna de quanta rebeldia

 me sagrou.

 Mãe-África!

 Mãe forte da floresta e do deserto,

 ainda sou,

 a Irmã-Mulher

 de tudo o que em ti vibra

 puro e incerto...

 

 A dos coqueiros,

 de cabeleiras verdes

 e corpos arrojados 

 sobre o azul...

 

 A do dendém

 nascendo dos abraços das palmeiras,...

 A do sol bom, mordendo

 o chão das Ingombotas...

 A das acácias rubras,

 salpicando de sangue as avenidas,

 longas e floridas...

 

 Sim!, ainda sou a mesma.

 A do amor transbordando

 pelos carregadores do cais

 suados e confusos,

 pelos bairros imundos e dormentes

 (Rua 11!... Rua 11!...)

 pelos negros meninos

 de barriga inchada e olhos fundos...

 

 Sem dores, nem alegrias,

 de tronco nu

 e corpo musculoso,

 a raça escreve a prumo,

 a força destes dias...

 

 E eu revendo ainda, e sempre, nela,

 aquela

 longa história inconsequente...

 

 Minha terra...

 Minha, eternamente...

 Terra das acácias, dos dongos,

 dos cólios baloiçando,

 mansamente...

 Terra!

 Ainda sou eu a mesma.

 Ainda sou a que num canto novo

 puro e livre,

 me levanto,

 ao aceno do teu povo!"

 

© Blog da Rua Nove

02.07.16

Manuel Ferreira - Morna


blogdaruanove

 

Manuel Ferreira (1917-1992), Morna (1948; presente ed., 2.ª, 1967).

 

Autor dos aclamados Morabeza (1958; prémio Fernão Mendes Pinto) e Hora di Bai (1962; prémio Ricardo Malheiros), Manuel Ferreira publicou ainda, na área da ficção, o livro de contos Grei (1944) e o conto Nostalgia do Senhor Lima (1971), bem como os romances A Casa das Motas (1956) e Voz de Prisão (1971). Em 1972, os livros Morna e Morabeza foram reunidos num único volume, sob o título Terra Trazida.

 

Na área da literatura infantil, publicou O Sandinó e o Corá (1964), No Tempo em que os Animais Falavam (1970), A Maria Bé e o Finório Zé Tomé (1970), A Pulseirinha de Oiro (1971), Vamos Contar Histórias? (1971; volume posteriormente editado sob o título O Gato Branco e o Gato Maltês [1977]), e Quem Pode Parar o Vento? (1972).

 

Depois do 25 de Abril de 1974, Manuel Ferreira foi docente universitário na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde introduziu a cadeira Literatura Africana em Língua Portuguesa. Foi também autor de inúmeros ensaios e publicações nesta área, devendo-se aqui destacar a sua obra Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, editada em dois volumes, pelo ICALP, em 1977.

 

No volume Morna apresentam-se nove contos – Puchinho; O Cargueiro Voltou ao Porto; Nhô Luís, Pai de Rosita - ou Uma Flor entre os Cardos; Bèlinha foi ao Baile pela Primeira Vez; Nhô Vicente, Essa História como Foi?; Antonieta; D. Ester, Chá das Cinco; A Visita de Nha Joana e Tão Velho era Nhô João, transcrevendo-se deste último alguns parágrafos:

 

 

"De manhã a sol pôr, e pela noite dentro, andava tudo num sobressalto. Os tambores rufavam num rumor de luta que repercutia pelos subúrbios e se perdia para lá das redondezas da cidade. O impulso a loucura vinham daí. Do anúncio madrugador do troar ininterrupto que galgava de lés a lés e sobre a noitinha galvanizava novos e velhos, sobretudo as mulheres que pulavam gritavam felizes e azougadas.

 

Era. Quando em dias de São João os tambores irrompiam, de madrugada, dos acumes do Mindelo, vibrando pelos recantos da cidade, o povo ficava em pé de guerra.

 

Isto nos tempos antigos. Ou mais pròpriamente, como vão ter ocasião de ver, nos tempos da mocidade de nhô João. No tempo desse velho tão velho que pode contar histórias inverosímeis que fala de gente que muitos já não conhecem porque ele é dos mais velhos se não o mais velho de todos os velhos ali da Ribeira Bota.

 

«Nha gente, fiquem sabendo, festa dagora não presta para nada. Mesmo nada. Noutro tempo era sabe de-mundo. tambor sem dança é mesmo que nada. Tambor quer-se acompanhado mulher còlando mulher batendo direito e com força.»

 

Em boa verdade, os bons tempos de coladeira – aonde já vão? Aonde já vão eles, os tempos grandes de coladeira, gente? Hoje os tambores ecoam os tambores lançam a fúria pelos esconsos da cidade, em dia de São João, e lá no centro da ilha montuosa, nas terras de Manel Cantante, aí na deserta planície, fechada pelos montes, atiram à desgarrada, quentes bárbaros, uma toada de batuque degradado mas vivaz. Um grito desesperado de quem anda no mundo à procura da sua terra em busca da sua gente.

 

O Administrador proibiu a dança. E que é tambor sem dança, se ela nasceu com o tambor? Pergunta, e bem, nhô João. Só  mesmo um tipo veio lá de longe podia ter tamanha salienteza. Só mesmo um estranho. O que é tambor sem coladeira?

 

Na véspera, quem dormia? O sol a romper, e os tambores de todo o lado, como se fosse bicho endiabrado, o povo numa impaciência desabalada. Tambores de Salamanza, de Pé de Verde, de Monte, de Lazareto. De todo o lado. Havia mesmo tocador de tambor que era um demónio. Por exemplo, nhô Amazo. Um homem que pedia comida porque não tinha trabalho mas quando lhe davam trabalho dizia que não tinha tempo nem modo. Pois quando nhô Amazo se agarrava ao tambor ou se debruçava sobre ele tocando hora e hora, aquele  mundão de gente quem o segurava? Ali na Ribeira Julião mandava ele. Vocês sabem, tambor bem tocado, bem batido mete-se no corpo da gente e arranca a gente da engoneação.

 

Dês, noutros tempos Ribeira Julião era um mar de gente, comendo bebendo gritando pulando dançando. Tam tam, tam tam, eh còlá còlá na Sonjom!, bacia de uma na bacia de outra, tchope!, tchope!, para cá, para lá, eh còlá, aqui, ali, oh nha mãe! oh nha pae!, tam tam, tam tam, oh sabe! còlá còlá còlá na Sonjom!, tchope!, tchope, ih!, ih!, oh nha Bia! oh nha Armanda!. còlá!, tambor de nhô Amazo, tamborinho endiabrado, tamborinho desaforado, retumbando numa tocata una num clamor ensombrado, igualzinho a uma caixa de guerra criando o desassossego a loucura a alucinação, oh sabe! Dia de São João, oh dia grande desta nossa terra sabe!

 

Tudo isto já lá vai. Esse Administrador que manda na ilha proibiu a coladeira. E o povo nesse dia bebe grogue come cachupa peixe frito empastado de poeira mordiscado das moscas chalaceia fornica tonto azougado embriga-se briga não trabalha dança a morna ouve tambor mas não pode dançar a coladeira. Dia de São João vem aí – que adianta?

 

O Administrador matou o povo. O povo gosta de coladeira como se fosse comida bebida coisa sagrada da vida. O povo gosta e sente a falta. O povo agora vai sentindo  falta de muita coisa que lhe vão tirando, sim senhor."

 

© Blog da Rua Nove