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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

08.12.16

Castro Soromenho - A Voz da Estepe


blogdaruanove

 

Castro Soromenho (1910-1968), A Voz da Estepe (s.d. [c. 1956]).

 

Este opúsculo de 48 páginas republica dois contos do autor – A Voz da Estepe e Samba, que anteriormente haviam sido incluídos na sua obra Rajada e Outras Histórias (1943). 

 

Do conto que dá o título a este volume transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Um som vibrante de tambor quebrou o ar e foi levado pelo eco que o atirou planície fora. Matembele ainda tinha punhos fortes, mas ele próprio se surpreendeu com a violência com que tocara o atabaque.

 

– Velho, tu ainda estás novo! – disse-lhe um dos caçadores, o Capua, que desde rapaz só o tratava por velho.

 

Matembele riu e, entusiasmado como uma criança, recomeçou a martelar o tambor, para que todos ouvissem bem que começara a caçada a fogo de Dumba-iá-Cuito.

 

– O vento está bom – disse o velho, com a boca e os olhos a rirem.

 

E, entregando o tambor a um moço, empunhou o fuzil e dirigiu-se para o rio, abrigando-se à sombra da árvore, junto ao ancoradoiro.

 

Na linha azul do horizonte, começou a desdobrar-se uma serpentina de luz alaranjada, que em breve se transmudou numa faixa vermelha, como uma estrada de fogo entre o céu e a terra. De repente, rolou sobre essa faixa uma onda rubra que incendiou o céu, como um pôr de sol, e um rumor de mar encapelado correu sobre a planície, e com ele o vento trouxe uma onda de ar quente. E, de pronto, a voz da estepe acordou em todos os recantos.

 

Do capinzal largaram bandos de borboletas, de lindas e variegadas cores, em demanda da frescura rio, inquietadas com os rumores da planície. Matembele ficou-se a olhá-las com olhos de criança. Um grande pássaro negro riscou o espaço, batendo ruidosamente as asas sobre a cabeça do velho, e lançou um grito agoirento; e como se esse grito fosse aviso de desgraça a todos os pássaros da planície, logo o céu se encheu de asas das mais variadas cores, que se perderam para além do Cuilo.

 

Agora já não se enxerga a linha azul do horizonte. No céu que tomba sobre a terra reflectem-se as vagas de chamas que o vento ondula na planície. Ouve-se, num rumor distante, a respiração ardente da estepe. Os caçadores estão excitados com os rumores que vêm da planície e com a espera da caça. Para as bandas do rio, cruzam-se gritos de alegria selvagem, comentando a marcha do fogo e a violência do vento. Mas ainda não há sinal de caça, nas terras ribeirinhas e nas faixas que de um lado e do outro dividem a planície e são barreiras para o fogo e pontos de apoio de caçadores, porque, se o vento mudar de direcção, atirando com o fogo para ali, toda a caça que foge, em tropel, à frente do fogo, irá ao seu encontro.

 

Uma corpulenta pacaça e três tímidas gazelas, deitaram a cabeça para fora fora do capinzal, mas, logo que viram um dos caçadores, retrocederam precipitadamente. Ninguém deu um passo em sua perseguição, esperando pelo momento em que elas se viessem entregar à morte, quando já não pudessem suportar o calor ou açodadas pelo fogo. De repente, nas terras nuas da margem do rio surgiram, fugidos do capinzal, centenas de ratos, soltando guinchos e correndo como loucos, o que causou grande alegria aos caçadores que, por divertimento, os perseguiam com gritos e os chibatavam."

 

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