04.10.16
Geraldo Bessa Victor - Sanzala Sem Batuque
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Geraldo Bessa Victor (1917-1985), Sanzala Sem Batuque (1967).
Essencialmente poeta, o autor havia publicado antes deste livro, o seu primeiro de "prosa de ficção", diversos ensaios e volumes de poesia. A sua primeira obra poética - Ecos Dispersos, foi publicada em 1941. Ainda na poesia, seguiram-se Ao Som das Marimbas (1943), Debaixo do Céu (1949), Cubata Abandonada (1958), obra que recebera o prémio Camilo Pessanha no ano anterior, e Mucanda (1964).
Neste volume reunem-se oito contos - A Filha de Ngana Chica, Duelo de Gigantes, O Pecúlio, É Proibido Brincar, O Comboio e o Navio, Domingas ou as Duas Faces da Alma, Chiula Chitacumba, Estudante e Carnaval. Embora alguns registos narrativos rocem superficialmente o anedotário, como em Chiula Chitacumba, Estudante, alguns outros traduzem inopinados dramas sobre a natureza humana, como em O Pecúlio.
Formado em Direito e exercendo em Lisboa, depois de ter sido bancário em Luanda, Geraldo Bessa Victor não esqueceu, contudo, algumas das problemáticas e das tensões sociais que se sentiam em Angola, dedicando particular atenção às que poderiam advir da mestiçagem, tema central em A Filha de Ngana Chica e É Proibido Brincar.
Deste último conto transcrevem-se alguns parágrafos:
"Lembrava-se bem de certos factos que lhe não deixavam dúvidas sobre a índole maléfica da comadre. Esta orgulhava-se ostensivamente de ter um «marido» mulato e de ser mãe de um filho mulato («O meu marido é mulato». «Sim, como sabes querida Hortense, o meu Julião é mulato». «Existe muita diferença entre um garoto preto-fulo, que pode considerar-se mulato porque é filho de mulato, e outro preto retinto, filho de pai e mãe pretos, não é verdade?». «Bem, minha querida, mulato não é o mesmo que negro, não achas?». «Ah, filha, não tenhas a menor dúvida, o branco não fala para o mulato como fala para o preto!»).
Tantas vezes Hortense sentiu vontade de lhe dizer cara a cara: «O teu marido, não; o teu amante, o homem com quem vives. O Bernardo, meu marido, é terceiro oficial da fazenda, ao passo que o teu amante, o Julião, é simples amanuense, inferior hierárquico do meu Bernardo». Susteve-se, porém, dada a disciplina da sua educação. tinha medo da linguagem biliosa e desenfreada que a comadre desalojasse das vísceras.
Certa vez, desabafou, sorridente, dissimulando em palavras serenas a fúria que lhe crescia no íntimo:
– Se eu quisesse ter um amante mulato ou mesmo branco, tê-lo-ia com facilidade; mas quis casar-me, e porque gostei do meu Bernardo, que calhou ser negro como poderia doutra raça ou cor, casei com ele. É um homem de valor.
A outra contestou, também com sorriso simpático, mas venenoso, e com frases também vestidas de aparente serenidade, mas achincalhantes:
– Não te iludas, querida! Um mulato é sempre olhado indubitàvelmente como pessoa civilizada, quer pelos brancos quer pelos próprios negros; mas um preto, ainda que muito educado e instruído, tem de provar primeiro que é efectivamente civilizado, senão olham-no e tratam-no como um indígena qualquer.
Hortense percebeu onde a outra queria chegar.
Um domingo, de manhã, Bernardo e Julião passeavam juntos por altura do Maculusso, nessa Luanda dos anos 30, quando um sipaio, aparecendo-lhes de chofre, berrou:
– Xê! A tua cabeça?
Foi Bernardo, o negro, e não Julião, o mestiço, quem sentiu uma voz muito funda a segredar-lhe dos recessos da alma violentada: «aquilo é contigo». Altivo, redarguiu, com rebuscada firmeza:
– Eu não pago cabeça, sou civilizado.
O sipaio escarneceu-o, com uma gargalhada gutural de rancorosa bestialidade, ao mesmo tempo que lhe assentava no dorso duas rijas chibatadas para o amainar:
– Civrizado, hem? Civrizado, negro de merda! Ó seu cabrão, você se atreve, seu negro, intrujar a mim? Você és preto como eu, onde é que és civrizado? Você ainda és pior que a mim, seu monangamba!
Depois de lhe descarregar como remate uma formidável bofetada («leva já nesse mazumbo de mabeco!»), o sipaio agarrou-o e foi incorporá-lo, à esquina da rua, na muxinda de negros, alguns descalços e esfarrapados, que a rusga já caçara na sua ronda para seguir a caminho da esquadra. Aí apareceu meia hora depois o compadre Julião, que prudentemente não quisera interferir na operação policial e preferiu dirigir-se ao chefe, seu conhecido, para quem uma noite arranjara uma mulata boa em baile de rebita e de quem obteve a ordem de libertação de Bernardo.
Hortense sabia, desgostosa, que Genoveva narrava este incidente às amigas comuns, comentando-o e pondo nos olhos, como artista de comédia, uma expressão mista de magnanimidade e indignação:
– Não está certo! Até me revolto toda! O Bernardo, o meu compadre... Ele não é um preto qualquer, mas, sim, terceiro oficial da Fazenda! Mas, creiam, quando o meu marido falou como chefe da esquadra, seu amigo, este desfez-se em mil desculpas."
Este volume apresenta ainda, no final, uma lista de "vocabulário", com cinco páginas, onde se clarifica o significado de muitas expressões ou palavras de quimbundo empregadas ao longo das narrativas.
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