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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

30.07.22

Vimala Devi - Monção


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Vimala Devi (pseudónimo de Teresa da Piedade de Baptista Almeida, n. 1932), Monção (1963).

 

Antes desta obra em prosa, Vimala Devi havia publicado um livro de poesia, Súria (1962), a que se seguiram outras obras poéticas, como Hologramas (1969) e Telepoemas (1970), onde a praxis de uma modernidade discursiva e de uma contemporaneidade temática, perfeitamente traduzida nos próprios títulos dos volumes, se afirma e consolida, evidenciando a pertinência do trabalho de uma autora que se assume não apenas como sensível às vanguardas, mas se afirma, ainda, como diligente e competente intérprete das inovações e renovações literárias que elas podem implicar.

 

Juntamente com Manuel Seabra, Vimala Devi foi ainda autora dos dois volumes correspondentes à antologia A Literatura Indo-Portuguesa (1971), depois de na década anterior, durante a sua estadia em Londres, ter iniciado simultaneamente uma incursão pela pintura, que manteve ao longo de vários anos.

 

Como se constata, todas as publicações da autora surgiram após a integração dos antigos territórios da Índia Portuguesa na União Indiana, ocorrida em 1961, embora a mundividência patente nesta colectânea em prosa traduza realidades características do período anterior e da aculturação religiosa e social goesa ocorrida durante a presença portuguesa.

 

Um destes contos de Vimala Devi, Os Filhos de Jó, está também reproduzido integralmente na Antologia do Conto Ultramarino (1972), de Amândio César (1921-1987), onde, juntamente com Alberto de Menezes Rodrigues (?-1971), representa, segundo o autor, a literatura do "Estado Português da Índia".

 

Este volume apresenta treze contos – "Nâttak", O Genro-Comensal, Dhruva, Ocaso, Esperança, Padmini, O Futuro e o Passado, Os Filhos de Jó, Recordação do Tio Salú, A Droga, A Subvenção, Vénus e os seus Braços e Fidelidade, por onde perpassam diferentes visões, ora desoladoras, ora irónicas, sobre a condição da mulher e o matriarcado, mas também sobre as diferenças, as convenções e as contradições de uma sociedade que, embora supostamente católica e europeizada, não deixa de ser marcada pelo sistema de castas nem de ser atavicamente oriental.

 

Num livro de estreia na prosa, onde as narrativas, bem ritmadas, sólidas e cativantes, se articulam harmoniosamente, Vimala Devi consegue ainda surpreender ao retomar no seu último conto, Fidelidade, personagens e problemáticas que haviam sido já sido abordadas em Dhruva.

 

Do conto O Genro-Comensal transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Houve muitas idas e vindas entre Margão e Saligão para acertar pormenores, smpre difíceis em questões de dinheiro. Ti Aureliano foi incansável. Mas não deixou, um dia, de desabafar:

– Para que me meti eu nesta, hã? Palavra que nunca vi homem mais difícil de contentar. Quer saber tudo esmiuçado: as colheitas, o que há no godão, as jóias da casa, os cofres... Oxalá, ao menos, tudo saia bem e não venha ainda a arrepender-me!

Mas, ao cabo de tanta tormenta, realizaram-se finalmente as prendas, o casamento, a torna-boda e Franjoão, fora de si, não se conteve que não dissesse:

– Ti Aureliano, fique sabendo que lhe hei-de estar grato toda a vida. Devo-lhe a minha felicidade.

A felicidade era o casarão enorme como um mosteiro, bem recheado de loiças antigas, contadores lavrados, marfins, jóias, pedras, grossas manilhas de oiro, a dispensa bem fornecida, e boas propriedades de rendimento. Quanto à Teodolinda, era a melhor das quatro irmãs, embora já tivesse há muito murcho nas faces o verdor da juventude.

Foram passar a lua de mel à Índia Inglesa, a Bombaím, onde Franjoão gastou do seu, do que trouxera de Moçambique. Mas fê-lo de boa vontade, que os tempos tinham mudado. De boa vontade até lhe apresentarem a conta, porque teve ideia de hospedar-se no Taj Mahal. Felizmente, só lá estiveram uns dias, de contrário teria delapidado todas as suas economias de dez anos de África.

Foram ainda visitar o primo Roberto Fonseca a Belgão, e foi o que lhe valeu. Que os tempos tinham mudado, mas não tanto, como não tardou a verificar.

Andaram por lá quinze dias. Logo que chegaram, Franjoão virou-se para as cunhadas, cheio de entusiasmo perante a nova vida que ia encetar, e disse:

– Amanhã vou a Benaulim ver o estado em que está a propriedade!

Mas Soledade retorquiu logo, apressada:

– Não se rale, Franjoão. As coisas vão a correr muito bem. Não faz três dias que lá estive.

– Sim? – exclamou ele, passando a mão pelo queixo, pensativo. – Então vou a Divar ver os arrozais!

– Deixe. Não vale a pena. Do que o mano precisa é de descansar. Descanse. Estive lá a semana passada...

– E Dongrim? – perguntou ainda.

– Agora não há nada a fazer por lá. Só para meio do próximo mês, quando começar a monda...

Franjoão encolheu os ombros e dirigiu-se para a porta. E ia já a sair quando avistou, em cima da mesa, uma enorme manga amarela e cheirosa. Voltou atrás, pegou-lhe, tomando-lhe o peso, e começou a comê-la. Claudina quase deu um grito:

– Mano Franjoão!

Ele virou-se, assustado, sujando a cara de sumo.

– Que há? Que há? Que foi?

– Está a comer a manga à mão!

– Pois claro! Então como queria a mana que comesse?

Então Soledade interveio, com a sua autoridade de mais velha:

– Franjoão, quero dizer-lhe que se Barretos é boa família, Fonsecas não ficam atrás. E em nossa casa sempre comemos  mangas com talher! É bom que se vá habituando aos usos da casa!

Franjoão ficou rubro, hesitante, sem saber que responder ou que atitude tomar. Mas era preciso tomar uma atitude. Balbuciou umas palavras ininteligíveis e, num gesto de raiva impotente, lançou a manga meio descascada para o chão, saindo da sala furioso.

À noite, disse-lhe a mulher:

– Que coisa, Franjoão! Como pudeste ofender assim minhas irmãs!

– Não sou nenhum garoto, – respondeu, ainda sentido. – Se me apetecer comer a fruta à mão, hei-de comer mesmo! Farto de erres e efes venho eu de África...

– Mas tu tens que dar o respeito, Franjoão! – respondeu Teodolinda, carinhosa. – Sabes como é a criadagem. Contam tudo lá fora. Ficava  toda a gente a saber que comemos à mão. Temos de manter nossa consideração, percebes?

Franjoão ficou a olhar para ela de boca aberta. Depois, honestamente, disse que sim, que percebia.

– Amanhã pedes desculpa à Soledade?

Ele resmungou e não respondeu.

Mas, na manhã seguinte, quando foi tomar o pequeno almoço, econtrou na mesa uma bandeja de mangas e pratinhos com talheres. Sentou-se, em silêncio, e começou a comer, olhando de soslaio para as cunhadas. Quando acabou, meteu os polegares no cós das calças e disse, como se não tivesse acontecido nada:

– Hoje estava a apetecer-me jagrada de lentilhas!

Viu, de repente, quatro pares de olhos muito abertos em cima de si.

– Que gosto, mano Franjoão! – exclamou Dejanira. – Jagrada de lentilhas!

Ia a responder, mas Soledade cortou imediatamente a conversa pela raiz:

– Não pode ser. Hoje temos ailé-belé!"

 

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01.11.16

Orlando da Costa - Sem Flores Nem Coroas


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Orlando da Costa (1929-2006), Sem Flores Nem Coroas (1971).

 

Do II acto desta peça transcreve-se um pequeno excerto:

 

" (...)

 

Bostú    Partir? Para onde vão..., para onde a levam?

 

             A Filha sai de cabeça baixa, seguida da Mãe. Bostú fixa os olhos no Pai, insistentes e ansiosos.

 

Pai        (Afastando-se com ar despreocupado, mas com a voz séria.) Vou pô-la a salvo. É de esperar o pior... (Voltando-se, com ironia.) ...Ou você acha que não?

 

Bostú    (Procurando sorrir, ingénuo ou incrédulo.) O tio crê que os soldados vão oferecer resistência?, que combaterão o cerco que se aperta?

 

Pai        (Exaltando-se, solene.) Defenderão tudo e todos até ao último dos homens fardados!

 

Bostú    Mas isso é uma loucura... 

 

Pai        São ordens!

 

Bostú    (Continuando.) ... uma loucura assassina. (Sorri amargamente.) Até tombar o último homem fardado, quantos, quantos homens não fardados não cairão, mortos ou feridos, no chão desta terra, tio?... (A sua voz é angustiada.) E tudo isso para nada, já pensou?...

 

Pai         (Com firmeza.) Temos de nos sacrificar pelos que expõem as suas vidas na nossa defesa!

 

Bostú   (Num apelo de sinceridade.) Mas, tio!, não somos nós que vamos ser atacados!... Esta terra vai ser simplesmente...

 

Pai          (Impetuosamente.) ... Arrasada!

 

Bostú      (Tentando continuar.) ... Os soldados, desarmados...

 

Pai          ... Chacinados, como todos os outros – homens, mulheres, crianças...

 

Bostú      O tio acredita...

 

Pai          (Continuando, sem lhe dar ouvidos.) ... Nós... elas..., eu... Eu! Eu! (Repetirá, batendo com a mão no peito, enquanto Bostú fala.)

 

Bostú        ... consegue aceitar – já não digo acreditar – que as nossas crianças morram nesta noite ou na próxima..., que os nossos velhos e as mulheres... e a vida terminem da noite para o dia..., nesta terra que os viu nascer?

 

Pai              (Num lance desesperado.) Quem pode sobreviver a uma terra arrasada! Quem?...

 

Bostú          (Sufocado.) Arrasada?!

 

Pai              (Explodindo em fúria.) Sim, arrasada! São ordens!

 

Bostú          (Após um momento de silêncio.) Se esta terra vai ser arrasada de que vale tentar pôr a salvo a sua filha, de que vale juntar as jóias e fugir... (A sua voz ganha sùbitamente um tom intenso, inquisitorial...) É só para iludir a sua consciência?... enganar a nossa?... e diga-me uma coisa... (Gestos largos.) Fugir... fugir... para onde? (Acintosamente e apontando para a parede ao fundo.) A sua terra acaba aí, bem perto, no mar, o mar que já recebeu invasores e não receberá fugitivos!

 

Pai              (No limite da histeria.) Cale-se! Proíbo-lhe!...

 

Bostú          (Erguendo finalmente um gesto apaziguador.) Tio...

 

Pai              (Apopléctico.) Proíbo-lhe de falar..., de continuar nesta casa...

 

Bostú          ... mas... tio...

 

Pai              (Com rudeza.) Proíbo-lhe de continuar a chamar-me tio!...

 

(...) "

 

 

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07.06.16

Miguel de Noronha de Paiva Couceiro - Diu e Eu


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Miguel António do Carmo de Noronha de Paiva Couceiro (1909-1979), Diu e Eu (1969).

 

O autor, que também criou a ilustração para a capa e os 21 desenhos a preto e branco que surgem extra-texto, exerceu as funções de governador de Diu entre Agosto de 1948 e Julho de 1950.

 

Do capítulo Hospitalidade Indiana transcrevem-se alguns parágrafos:

 

     "Em Goa, grandes povoações que nós chamaríamos vilas, designam-se por aldeias e, coaldeanos se consideram os que lá nasceram. Boa metade dos Goeses luta pela vida longe do berço em que se criou e só, de longe em longe, as grandes festividades familiares os reunem no seu ninho paterno: os casamentos, os baptizados – também os funerais, pois, como se diz em Espanha, «el muerto al hoyo y el vivo al bollo». À roda da mesa sólida, a família se congrega, na casa de jantar imensa. E lá correm os sarapateis, os xacutis, a bebinca, etc. – eu tive a ocasião de seguir este ritual fagueiro em Chandor, em casa do meu amigo Francisco Egídio Fernandes e apetecia-me lá voltar enquanto as enzimas trabalharem a preceito!

 

Nas grandes mansões, àparte, está a casa de hóspedes, aonde as suas comodidades são atendidas, respeitando escrupulosamente os hábitos peculiares de cada um. No «Manaranjan», em Junagadh, mantinham-se a posto três cozinheiros, um Hindu, outro Muçulmano e o terceiro Cristão, e nunca chouriço, nem orelheira, iriam macular a mesa do leitor do Corão!

 

Fui, com o Comandante Luís Cardoso, visitar o Visconde de Pernem, aos seus domínios lá para os confins nortenhos de Goa. Recebeu-nos fidalgamente, envergando o seu «pudvem», e mostrou-nos a vasta residência, os longos aposentos, deslumbrando-nos com os arreios do seu elefante de cerimónia, tauxiados de prata. Ainda que na cavalariça – aliás elefantariça – faltasse o paquiderme, sacrificado a algum motor de explosão.

 

E apareceu-nos outro palácio: «a casa de hóspedes», explicou o Visconde. «Quantos pode alojar?» – perguntei. «Quatro», foi a resposta sucinta e insisti: «quatro pessoas?!» – «Não, quatro famílias». E, para quem conheça a extensão das famílias indianas, a resposta é elucidativa.

 

Mostrava-nos os seus jardins e, de súbito, aponta para o que me parecia qualquer roseira mal cuidada, dizendo, perentório: «hortaliça – quiabos». Eu tinha chegado na véspera do Chiado e não vinha disposto a engolir a primeira história de cobras que me quiséssem impingir. Já andava desconfiado com a do visconde que, ao meio-dia, me aparecia embrulhado no que, a mim, me parecia um lençol de cama... De modo que aceitei polidamente mais esta da hortaliça, sem a tomar demasiadamente a sério.

 

Mas vim a verificar, mais tarde, que os tais quiabos, bem refogados, são o melhor acompanhamento dum caril e o Visconde de Pernem pagara os direitos de mercê e, de turbante e jóias, tinha um dia esmagado os mirones de Lisboa!"

 

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31.10.13

Orlando da Costa - O Signo da Ira


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Sobrecapa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Orlando da Costa (1929-2006), O Signo da Ira (1962, 2.ª ed.).

 

Entre outras razões complementares, foi certamente devido ao activismo do autor e às suas posições políticas dissidentes, as quais haviam motivado a sua detenção pela PIDE e o seu encarceramento por três vezes no iníco da década anterior, que esta obra teve a sua circulação e distribuição suspensas.

 

Apesar disso, este livro, premiado com o prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências em 1961, ano da sua primeira edição, ainda chegou a atingir uma tiragem próxima dos dez mil exemplares.

 

Antes desta obra em prosa, Orlando da Costa tinha já publicado três volumes de poesia A Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955).

 

Posteriormente, publicou as obras Podem Chamar-me Eurídice (1964), Sem Flores nem Coroas (1971), Canto Civil (1979), A Como Estão os Cravos Hoje? (1984), Os Netos de Norton (1994), O Último Olhar de Manú Miranda (2000), e Vocações Evocações (2004).

 

A acção deste romance decorre durante a II Grande Guerra, na então denominada Índia Portuguesa. Dos vários enclaves e ilhas que constituíram o antigo império português sobreviveram, até ao século XX, Dadrá e Nagar Haveli, reintegrados na Índia em 1954, e Damão, Diu, e Goa, reintegrados precisamente em 1961.

 

A influência neo-realista não deixa de se reflectir neste romance, onde não se retrata apenas a rígida estratificação traduzida pelas castas locais – curumbins, sudras, batcarás, mas também a intromissão protagoniza neste sistema pelos expedicionários portugueses, os paclés.

 

Por entre um ambiente de opressão e miséria, motivado pela prepotência das castas superiores, mas também pelo clima e pelas condições agrícolas, surgem as personagens femininas como se fossem a última das últimas castas. Mas são estas, particularmente Coinção, que se suicida, Natrél, e Quitrú, que se assumem como opositoras ao destino e à tradição, revelando uma força interior e uma atitude de revolta que não se encontra nos homens.

 

A título de curiosidade refira-se que o recentemente reeleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa (n. 1961), é filho de Orlando da Costa.

 

Trancrevem-se de seguida alguns parágrafos desta obra:

 

"A idade e a miséria traçavam desde muito cedo o destino daquela gente. Quando os músculos começam a ceder, voltam os olhos para os filhos. Amarram-se a eles até onde podem, implorando ao seu trabalho de servos a subsistência das suas vidas. Não pedem mais do que estes lhes haviam pedido, quando crianças.

 

E, todos os sábados, velhos e velhas, partilhando um mesmo destino na terra da sua nascença e da sua morte, descem à cidade num lúgubre cortejo de andrajos e orações, de chereta estendida à porta dos batcarás. Sob os panos e camisas encardidas, descarnados e ressequidos, os peitos dos homens e das mulheres assemelham-se. Uma voz única eleva-se daquelas bocas sumidas e ossudas – Ômanmari... –, ecoando tristemente de porta em porta. Um punhado de arroz cai nas cheretas em troca da oração e o cortejo prossegue, arrastando-se devagar naquele ritual semanal, em que os filhos mais humildes da terra imploram aos céus altíssimos bênçãos para os seus senhores.

 

Durante seis dias da semana a mulher de Pedrú, encolhida a um canto do casebre, entre gemidos, torturada por uma doença que ninguém no povoado logrou ainda curar, e com a lucidez dos predestinados a agonizar lentamente, ganha forças para aos sábados erguer-se como uma sombra e juntar-se a custo ao caudal de velhos maltrapilhos e estropiados que, de mão estendida num gesto sem revolta, ficam remoendo com as próprias entranhas uma oração de todo o sempre...

 

«Quando chegará a sua vez?...», pensa de olhos tristes a velha Bostian. «Já não falta muito...». Com a mão encarquilhada esmaga os olhos disfarçadamente e depois passa pelos lábios secos aquele sabor a sal que fica na sua pele enrugada. «Não deve faltar muito». É sabido que ela, também, não deixará de cumprir o seu destino, o destino deles todos. Voltará, dentro em pouco, aos sábados, ao tombar da noite, vergastada pela canseira das estradas percorridas, as veias inchadas à flor da pele, a poeira e o suor coalhados nas rugas do seu corpo. Junto à cintura, aconchegados, talvez alguns punhados de arroz. «Mas agora... até para os velhos que mendigam... a vida vai mal!...» À porta dos batcarás já não lhes dão arroz. As cheretas seguras por aquelas descarnadas mãos de pedintes recolhem os poiçás que lhes vão dando de porta em porta.

 

– Não há arroz, nem para os batcarás! – dizia-se agora e era verdade.

 

– Tomem lá quatro anás. É para todos.

 

– Meia rupia. É bab Ligôr que manda dar, é para distribuir por todos.

 

Ômanmari... – e a oração de agradecimento, dita à beira dos balcões das casas, soa mais triste e trágica naquele coro de mendigos."

 

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09.04.10

Gustavo Barroso - A Senhora de Pangim


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Gustavo Barroso (1888-1959), A Senhora de Pangim (1940).

 

Embora de um autor brasileiro, A Senhora de Pangim (1932; presente edição oficial portuguesa, 1940) é uma obra que aqui se refere para ilustrar a apropriação que o Estado Novo fez de todos os textos que pudessem servir a sua propaganda ao conceito de Império.

 

Este romance, de um autor que publicou dezenas de obras nas mais diversas áreas e foi membro de várias academias, ficcionaliza a vida de Maria Ursula de Abreu Lencastre, brasileira que em 1700 assentou praça em Lisboa, sob o nome Baltasar do Couto Cardoso,  e teve uma aventurosa vida militar na Índia, até ser nomeada, em 1718, senhora do paço de Pangim.

 

A narrativa tenta reconstruir fielmente a vida e a sociedade na transição do século XVII para o século XVIII, tornando-se o desenvolvimento do enredo algo exasperante pela manifesta insistência do autor em ser fidedigno às fontes e em fundamentar a narrativa numa multiplicidade de vocábulos que ilustrem o seu conhecimento dos textos da época, dificultando assim a imediata descodificação textual e a fluência narrativa.

 

Conceptualmente, contudo, é uma obra que serve perfeitamente o propósito imperial, uma vez que o enredo se desenvolve em quatro continentes – América, Europa, África e Ásia.

 

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08.02.10

Maria Ondina Braga - Eu Vim para Ver a Terra


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Maria Ondina [Braga] (1932-2003), Eu Vim para Ver a Terra (1965).

 

Embora vários autores portugueses dos séculos XIX e XX tenham passado pelo Oriente e reflectido, de maneira directa ou indirecta, essa estadia na sua literatura – vejam-se os casos de Wenceslau de Moraes (1854-1929), Camilo Pessanha (1867-1926) e Joaquim Paço d'Arcos (1908-1979), entre outros, Maria Ondina Braga surge no século XX como a principal autora portuguesa de ficção ligada a Macau, em particular, e à China em geral.

 

Este seu livro de estreia, Eu Vim para Ver a Terra, apresenta-nos um conjunto de textos sobre Angola, Goa (precisamente em 1961) e Macau, mas são as crónicas de Angola – A Terra, De Luanda a Salazar, De Salazar a Malanje, A Chuva, Cacimbo, Flor da Terra, Mãe Preta, Mercado Indígena, Velho Roque, Nova Lisboa, A Missão do Lombe e as Castanholas da Irmã Manuela, Páscoa – 1961, mais do que as de Macau, que acabam por nos cativar na sua sensibilidade e nos deixam a promessa de toda a literatura notável que a autora haveria de produzir posteriormente.

 

Surgem nestas crónicas fragmentos particularmente belos. A Chuva, Cacimbo, Flor da Terra, Mãe Preta e Mercado Indígena oferecem-nos a expressão de um lirismo a que não podemos ficar insensíveis e deixam-nos impressões de mundos que a maioria de nós apenas pressente. Como se a empatia da autora tivesse absorvido a fugacidade de universos momentâneos e os tivesse cristalizado em toda a sua beleza – a frescura dos aromas e das cores, a humidade e o calor da terra, a alegria e o sofrimento das gentes, criando um políptico perene que retira do húmus dessa terra o seu carácter profundamente humano.

 

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