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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

27.02.15

Castro Soromenho - Nhári (I)


blogdaruanove

 

Castro Soromenho (1910-1968), Nhári: O Drama da Gente Negra (1938).

 

Nhári, primeiro livro publicado por Castro Soromenho após a sua saída de Angola, onde nunca mais voltou, havia sido antecedido por duas outras curtas publicações do autor – Aves do Além (1934?) e Lendas Negras (Cadernos Coloniais, 20. Lisboa: Editorial Cosmos, 1936?), que vieram a ser integradas neste volume.

 

Galardoado em 1939 com o 2.º prémio da Agência Geral das Colónias, e, por sua expressa vontade, nunca mais publicado em vida do autor, este livro apresenta, numa primeira parte, cinco narrativas, intituladas O Último Batuque, Gando – O Feiticeiro!, Angústia, O Milagre do Ganga, e Nhári, e numa segunda parte, que ostenta o subtítulo Lendas Negras, cinco outras narrativas – Os Embaixadores à Côrte do Além, Terra da Amizade, Para Além da Vida, Aves do Além, e A Lagoa Maldita.

 

Em O Último Batuque narra-se o declínio do poder e da autoridade de um soba bângala, Xá-Congo, que veio a ser escravizado como capinge pela soba Mona-Capenda. Posteriormente libertado, apesar de voltar a reunir a sua antiga gente nunca mais recuperou a anterior dignidade, o que fora pressagiado pelas melembas que plantara na delimitação da sua nova senzala e que jamais folharam, acabando por se enforcar.

 

Gando – O Feiticeiro! enfatiza a impassibilidade de um velho que, perante o prenúncio de uma desgraça, posteriormente materializada na morte da sua filha, devorada por um jacaré, se refugia na liamba como único meio de suportar as fatalidades da vida. Contracenando com este "fumador de quimeras" encontramos um escravo luena que simbolicamente se liberta tocando no seu quissange uma "canção saüdosa e fatalista" que traduzia "o chôro eternamente dolente desta raça triste."

 

A fatalidade é novamente focada no conto Angústia, que nos apresenta uma variante do complexo de Édipo. A reescrita da tragédia grega, que deu origem a este conceito de psicanálise, surge aqui como forma de sublinhar que um escravo lunda, apesar de ter direito a um nome – Candala, não tem direito ao amor ou à família.

 

O Milagre do Ganga descreve a influência de um feiticeiro, Ganga, que ardilosamente sabe aproveitar-se das superstições de um soba, Quissueia, e do seu povo para consolidar o seu estatuto e receber a dádiva sacrificial da sobrinha do soba. Tal oferenda permitiu-lhe, assim, falar com os mortos e acalmar o espírito do falecido soba Muenha-Quinguri, que assombrava o seu sobeta Quissueia por este o haver enganado com uma das suas mulheres.

 

O quinto conto relata o trágico destino de uma menina de dez anos – Nhári, que é dada por seu tio maternal a um velho fumador de liamba. No entanto, o irmão de Nhári, um caçador quioco chamado Murique, tencionava dá-la a um ganguela. Perpetrando o assassinato do velho, com a ajuda do caçador Xassuana, inicia depois uma jornada, com este e com sua irmã, através de uma planície que parecia não ter fim. Ao longo da simbólica jornada – "Esta planície é imensa, dolorosamente imensa, e aquela árvore está só. (...) Ergue-se sôbre a sua própria dor, amarrada a silêncio profundo. Silêncio, silêncio, só silêncio. Antes gritasse!", Nhári é também entregue por seu irmão a Xassuana, o qual surge como alternativa para se tornar seu senhor caso o ganguela a venha a recusar.

 

O valor simbólico, ritual e erótico do batuque, aqui destacado em dois contos – O Último Batuque e O Milagre do Ganga, havia também sido particularmente tratado por António Botto (1897-1959), num poema, o segundo do Livro Terceiro – Piquenas Esculturas, das suas famosas Canções (http://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/5377.html).

 

Num posterior artigo abordar-se-ão as cinco narrativas de Lendas Negras, transcrevendo-se agora os últimos parágrafos de Nhári:

 

"Nhári, débil criança de lindos olhos negros, cheios de dolência, sempre a olhar, perdidamente, para o infinito, pequenina escrava, talvez inconsciente da sua própria escravidão, – tu és o símbolo das mulheres da tua raça.

 

Sôbre a terra escaldante tombou a sombra da noite.

 

E ainda paira no ar e na vacuidade da vida da escrava aquela pregunta [sic] inútil e afrontosa:

 

– Queres, Nhári, ser mulher do Xassuana?

 

A criança, sempre com os olhos esquecidos em tristeza, que mais parecia boneca de ébano do que mulher para o trabalho rude da terra e fêmea obrigada a dar-se ao prazer sensual do seu senhor, marchava atrás dos homens que a iam mercadejar.

 

As três silhuetas desapareceram na noite."

 

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