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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.02.19

Nuno Bermudes - Gandana


blogdaruanove

Capa e ilustrações de José Pádua (n. 1934).

 

Nuno Bermudes (1924-1997), Gandana e Outros Contos (1959).

 

Primeiro volume da Colecção Prosadores de Moçambique, um projecto editorial do jornal Notícias da Beira continuado com Cães da Mesma Ninhada (1960; cf. https://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/339350.html), de Ascêncio de Freitas (1926-2015), esta obra surge prefaciada por Fernando Couto (1924-2013) que, num dos seus parágrafos, evoca e homenageia vários escritores moçambicanos:

 

"Que tenhamos fundadas esperanças [que algo de importante se está a processar na vida espiritual moçambicana] nada o impede; antes pelo contrário: Afonso Ribeiro, Rodrigues Júnior, Eugénio Lisboa, Vieira Simões, Ilídio Rocha, Guilherme José de Melo, Cordeiro de Brito, Rui Knopfli, Jorge Vila, Nuno Bermudes, José Craveirinha, Joaquim Sabino, Noémia de Sousa, Carlos Lança, As Cêncio de Freitas, Virgílio de Lemos, Artur M. Costa, Alberto de Lacerda e outros, são hoje presenças que é preciso ter em conta, ou porque já começaram a construir uma obra válida ou porque dentro em breve a apresentarão. E dos que a morte nos roubou não podemos esquecer Rui de Noronha e Reinaldo Ferreira."

 

Para além do que já foi referido em outros artigos sobre este autor, registe-se para a sua biografia que Nuno Bermudes nasceu em Macequece, Moçambique, tendo-se mudado aos cinco anos para o que então se designava como Metrópole. Regressou posteriormente, em 1947, a Moçambique. 

 

Como já foi anteriormente referido, extraíram-se deste volume os contos Uma Gota de Chuva e A Visita que posteriormente surgiram no opúsculo Uma Gota de Chuva (1964), publicado na Colecção Imbondeiro.

 

Os restantes contos que integram a presenta obra são Gandana, Pedra de Fogo, Um Pedaço de Vida, Os Amantes Inocentes, O Redactor de Serviço e Ciganos, o único que não apresenta um enredo de inspiração africana.

 

Do conto Gandana transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Sem fim, sem horizonte e sem caminhos, é o mato. Nele, a doçura não existe. A própria polpa dos frutos é ácida e ardente. O sol, uma ferida vermelha que não sara nunca e, de cada vez que reabre na pele cinzenta do céu, os habitantes do mato procuram a frescura negada nas florestas sombrias onde a ribeira corre e a nascente faz ouvir o seu murmúrio. Só a charu, a mamba e a jibóia se deixam ficar no capim dos tandos e as rolas sussurram na copa despida do arvoredo.

 

O mato não termina nunca. Toda a espécie de árvore e planta enche o mato sem fim, sem horizonte e sem caminhos. A micaia agreste, abrindo para o alto os dedos afiados e hostis, a maçala carregada de frutos cujo coração é áspero e azedo, o cajueiro bravio e perfumado. Léguas e léguas de desolação e aqui e além o grito colorido de uma flor desafiando a sonolenta monotonia.

 

Só quando a noite vem e a lua paira, grande e redonda como um disco de âmbar, só então os habitantes do mato deixam as florestas e surgem a vagabundear na planície. As cigarras  e os grilos iniciam a sua cega-rega e o sapo-boi atira pela noite dentro com o seu grito rouco e dissonante.

 

E esse é o mato. Esse é o mundo indecifrável e misterioso dos bichos que desafia o pé humano que o pisa a violar os seus recantos naturais que apenas os felinos, os répteis e os antílopes conhecem.

 

Ali, na orla da lângua, Gandana parou. Sob o sol brilhante que enchia de cintilações douradas a verde planície, a pele do negro luzia como aço, com estranhas reverberações azuladas e vermelhas. Dentro da sua cabeça, os pensamentos queriam ordenar-se, mas quando roçavam uns nos outros, como os ombros de uma multidão apressada, ora se repeliam ora se fundiam.

 

Então, ele disse para dentro de si:

 

 –Gandana, você não vai 'guentar...

 

No entanto, ele sabia que era só atravessar a lângua e a floresta, para alcançar a montanha e ficar livre como um chango. Via a linha de luz que, do outro lado da planura, poisava sobre a cumiada roxa do arvoredo e ouvia o manso arrulhar das rolas. Mas, insistia:

 

– Gandana, você não vai chegar na serra...

 

Deitou-se de bruços, afastou o capim e afundou os beiços na terra escura e ensopada, bebendo, com as mãos enormes e patudas cravadas no matope, de cada lado da cabeça. Parecia, assim, naquela grotesca posição, um gigantesco escaravelho acachapado."

 

© Blog da Rua Nove

31.01.14

Reis Ventura - Caminhos


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Capa de Raul Machado (datas desconhecidas).

 

Reis Ventura (1910-1988), Caminhos (1959).

 

Iniciando-se com um deslize de (ausência de) revisão que nos apresenta o protagonista como tendo nascido em 1893 e ficado órfão, aos 15 anos, após o falecimento do pai "numa das primeiras incursões monárquicas" [o regime republicano foi implantado em 1910, a primeira incursão ocorreu em 1911], este romance, com o subtítulo Vida e Paixão dum Motorista de Angola, acaba por fazer esquecer aos leitores tais deslizes através de uma narrativa ritmada e de um enredo atraente, se bem que facilmente antecipável na sua evolução e conclusão.

 

Recorrendo a uma estrutura folhetinesca de capítulos curtos, que já havia sido utilizada em Cidade Alta (1958), Reis Ventura cruza neste romance a descrição de vários locais de Angola, desde a Gabela a Benguela, ou de Cabinda, e da floresta do Maiombe, a Luanda, com uma problemática de fundo que assenta nos conceitos de crime e justiça, de consciência e culpa.

 

A esta problemática, recorrendo ao imaginário criado à volta da eventual descendência mestiça do Tenente Valadim (1856-1890), aqui ficticiamente evocado como Tenente Alpedrim e transposto da sua real intervenção em Moçambique para o cenário romanesco de Angola, um imaginário já anteriormente abordado pelo autor, Reis Ventura acrescenta a problemática da mestiçagem, personificada pela figura do Dr. Alpedrim, e de sua mãe, D. Beatriz, mulher do protagonista, João do Souto.

 

Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Era pelas seis horas da tarde, quando os mirones do café «Polo Norte» despem, com os olhos, as raparigas que saem dos empregos e as senhoras perliquitetes que voltam das compras.

 

Fui encontrar o Teiga na praça de taxis fronteira à Livraria Lello, num grupo de chauffers que palestravam, aguardando freguês, à beira dos carros estacionados.

 

Esta gente constitui, em Luanda, uma classe bem definida. Homens sem papas na língua, falam, entre eles, uma linguagem ajindungada de pragas sonoras e de piadas brejeiras. Mas, pelas exigências da profissão, sabem ser delicados e corteses no serviço.

 

Pobres e laboriosos, ainda isentos da subserviência da gorjeta, não usam as vénias e rapapés dos seus colegas de Lisboa ou Porto. Conhecem os podres de muita gente e comentam-nos entre si, mas raramente assoalham perante elementos estranhos à classe.

 

Os que exploram carro próprio, conseguem algumas vezes amealhar economias, com a ajuda do trabalho da mulher e uma severa economia familiar. E há muito rico que lhes deve dinheiro...

  

Lamentam a quota que pagam ao seu Sindicato e odeiam o uso do boné que ele lhe impôs, vingando-se com a crítica mordaz de todas as direcções, passadas, presentes e futuras.

 

Correm atraz do freguês, como perdigueiros de bom faro. E ultrapassam os pechotes das cartas de turismo, em manobras atrevidas, sobressaltando os nervos frágeis das meninas bem, que rodam em carrinhos utilitários para os chás das amigas ou para coisas menos inocentes...

 

Transportando pobres e ricos, em corridas de urgência ao hospital, em passeatas de fim de semana, ou em excursões nocturnas pelas espeluncas mal afamadas dos muceques ou pelas «boites» caras da cidade, aprenderam a olhar a vida com uma filosofia própria. Sempre há muito burro nesta terra!» [sic] – pensam, ao deixar certos velhotes perfumados no «Mambo» ou no «Bambi-Bar». Mas tudo está bem, desde que lhe paguem a corrida. O resto já não é com eles. E, não obstante a concorrência a que obriga a luta pela vida, são dos que melhor sentem a solidariedade de classe. Até as pedrinhas da calçada se levantam, se algum colega lhes rouba deslealmente o freguês. Mas ajudam, de bom grado, aqueles que se encontram em transe de aflição."

 

© Blog da Rua Nove

12.03.10

Manuel Lopes - O Galo [Que] Cantou na Baía [...]


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Capa de Cipriano Dourado (1921-1981).

 

Manuel Lopes (1907-2005), O Galo [Que] Cantou na Baía [...] (1959).

 

Este volume de seis contos – O Galo Que Cantou na Baía..., O Jamaica Zarpou, As Férias do Eduardinho, No Terreiro do Bruxo Baxenxe, O "Sim" da Rosa Caluda, Ao Desamparinho, representa de certo modo um contraponto à temática da obra anterior, Chuva Braba (1956), e da que se lhe seguiu, Os Flagelados do Vento Leste (1960).

 

Embora nestes contos se recuperem personagens do romance Chuva Braba – Eduardinho, Mané Quim, Rui,Tuca, que se movem na mesma paisagem desolada, o tratamento e a caracterização das relações humanas nestas narrativas curtas ficam aquém da tensão e do dramatismo que envolve as personagens dos romances e as atrai para uma espiral de degradação e sofrimento.

 

Tal como anteriormente acontecera com Chuva Braba, este livro veio a ser galardoado com o prémio Fernão Mendes Pinto da Agência Geral do Ultramar, desta vez na edição de 1959.

 

Do conto As Férias do Eduardinho transcrevem-se dois parágrafos:

 

"Em frente do muro, num pequeno rectângulo de terreno com escassa dúzia de regos de pouca largura, pés de mandioca entrecruzam os longos pecíolos tesos em cujas extremidades os limbos parecem mãos espalmadas. Para lá do último rego, o mandiocal transborda e desce rúpidamente [sic] pela ladeira íngreme, de socalco em socalco, até um pequeno bosque de cafeeiros. Sobre as copas dos cafeeiros a vista ganha distância. As árvores, as casas, os polígonos verdes dos regadios formam quadros em miniatura espalhados ao acaso. As "chãs" de plantio, os "tapumes" de pastagem rala, sucedem-se, como gigantescos tombadilhos de navios dispostos lado a lado e irrompendo das montanhas com as proas dirigidas para  saída do vale, a leste da ilha.

 

Corgos profundos cortados a pique, com rebanhos de figueiras bravas ao longo do leito, separam as chãs, como vagas revoltas dum verde esbranquiçado. Dum lado e do outro, nos terrenos ladeirentos, socalcos de cana sacarina, bananeiras e feijoeiros congo. Aqui e ali, a esmo, tufos de verdura viva, manchas brancas de lapili pomítico, oásis de árvores frondosas, laranjeiras e manqueiras [sic] espalhadas como marcos; colinas contorcionadas e estéreis de arestas ásperas e nuas, grandes manchas de terra queimada, esquadrões de monólitos graníticos irrompendo do solo em posturas de monstros pensativos, surpreendidos pela erosão. A servir de pano de fundo, ora por cima das linhas das colinas, ora caindo a prumo sobre os últimos tapumes, a cordilheira circular, à direita e à esquerda, com os altos cumes rendilhados, a perder de vista."

 

© Blog da Rua Nove