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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

29.12.23

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (I)


blogdaruanove

 

A presente antologia, com selecção de Baltasar Lopes (1907-1989), introdução de Manuel Ferreira (1917-1992) e comentários de António Aurélio Gonçalves (1901-1984), apresenta um conjunto de contos e excertos de romances da autoria de nove autores – António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Francisco Lopes (1932-2001), Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), Jorge Barbosa (1902-1971), Manuel Lopes (1907-2005), Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) e Virgílio ("Djila") Pires (1935-1985).

 

Prosseguindo com o critério de mencionar em primeiro lugar autores cuja obra ainda não tenha sido transcrita neste espaço, destaca-se hoje o trabalho de Francisco Lopes, representado nesta colectânea com dois contos – Chuva de Agosto, que havia sido publicado no Boletim Cabo Verde, em Outubro de 1958, e O Ourives (inédito).

 

Francisco Lopes frequentou o liceu no Mindelo, licenciando-se posteriormente em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa. Regressou em 1959 a Cabo Verde, onde foi docente no Liceu Gil Eanes até 1960, e, a partir desse ano, na Escola Industrial e Comercial do Mindelo, onde veio a desempenhar os cargos de subdirector, até 1974, e director, até 1988.

 

Uma vez que havia frequentado também o curso de Direito, exerceu ainda as funções de Procurador Geral da República na comarca do Barlavento, entre 1961 e 1963, e, entre 1964 e 1974, as de juíz substituto no Tribunal de S. Vicente. Depois da independência de Cabo Verde, veio a ser director regional de educação para as ilhas do Barlavento e presidente da Câmara Municipal de S. Vicente. Entre diversos outros cargos, foi também director da Rádio Barlavento.

 

Em 1960 co-organizou, com Baltazar Lopes, o número 9, o último, da revista Claridade, onde publicou o conto O Resgate. No cinquentenário da mesma revista, celebrado em 1986, contribuiu para uma edição comemorativa, extra-série, com o conto Bisca Interrompida.

 

Do conto Chuva de Agosto, traduzido para língua inglesa em 1972, aquando da sua publicação na África do Sul, e para língua russa em 1983, aquando da sua publicação na URSS, transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Uma atmosfera pegajenta, como só acontece nos dias que precedem as grandes chuvas de Agosto, amortalhava a ribeira. Parecia que o céu se unia à terra, àquela terra boa e generosa, num abraço de calor molhado, sufocante, que vinha de um ror de nuvens carregadinhas de humidade que cavalgavam por cima do vale, como alimárias desenfreadas, semm deixar cair pingo d'água. Um relâmpago cortou o céu em requebros de centopeia, seguido de um grande estrondo. O trovou reboou pela ribeira, cresceu, ganhou força, e, entrechocando-se pelas vertentes, desabou sobre a povação. Lá longe as cumieiras da Rocha Grande devolveram o eco num rugido sinistro.

 

Simão Toca estava sentado no alto do cabeço. Olhou para o céu, semicerrando os olhos feridos pela intensa claridade. Quedou-se assim por algum tempo, vasculhando as nuvens com a vista, a abanar a cabeça devagarinho, devagarinho, como quem escuta uma conversa com atenção. Aquilo era linguagem de chuva de Agosto que não tardava a cair. O que o aborrecia era a questão do dique. Tinha feito uma plantação mesmo a meio da ribeira e a única esperança de a salvar era o dique ficar pronto antes de as-águas. Simão Toca fez um sinal a André, que andava perto, metido numa moita. André aproximou-se.

 

– Boas-horas, nhô Simão – disse numa voz despreocupada. Simão Toca mal lhe respondeu e continuou ali especado, numa posição característica, pernas afastadas, mãos debaixo do queixo, apoiadas numa bengala de nós grossos que se espetava verticalmente no chão, direita como fio de prumo. Simão Toca repuxou os olhos para cima e encarou André.

 

– Então, esta obra no dique fica pronta antes da chuva de Agosto, não? – André rodava o boné entre as mãos.

 

– Trabalho vai indo, nhô Simão, vai indo – respondeu. Dificuldade é o dique ter de passar dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto, no lado norte. Simão Toca mal ouviu a resposta. Levantou-se de repente, como que sacudido por uma ideia luminosa e apontou para a ribeira.

 

– Olha ali, André, olha-me para aquele milheiral lá em baixo. Não notas nada? André fez um aah! inexpressivo, como quem não conseguia perceber. Ali moço – ali no caminho do dique. É aquela rocha, moço, é aquela rocha. Basta um fogo de dinamite para a deitar abaixo. Desviamos a rota da ribeira e nem é preciso acabar o dique no lado norte. André só então percebeu para onde Simão Toca apontava. Olhou para ele, olhou para a rocha, voltou a olhar para ele e arriscou numa voz hesitante:

 

– Mas nhô Simão aquele milheiral é já dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto e se a gente der fogo ele não vai ficar contente. Pode até dar contenda judicial.

 

Simão Toca voltara a sentar-se. Deu uma gargalhada e estendeu o braço para André.

 

– Qual contenda, qual quê. Eu tenho Djoquinha de Nhuto dentro da minha mão. Assim – disse – carregando na última sílaba e fechando o punho num gesto significativo. Dentro da minha mão – ouviste? André pediu licença e afastou-se lentamente. De longe Simão Toca ainda lhe gritou:

 

– Passa pela ribeira e põe os homens a trabalhar bem. Quero o dique pronto antes da chuva de Agosto."

 

© Blog da Rua Nove

12.11.13

António Aurélio Gonçalves - Pródiga


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

António Aurélio Gonçalves (1901-1984), Pródiga (1962).

 

Este número duplo (35 e 36) da Colecção Imbondeiro apresenta dois contos – Pródiga e O Enterro de Nhâ Candinha Sena, e uma introdução à obra do autor, intitulada António Aurélio Gonçalves - Esboço de Retrato, pelo escritor Manuel Ferreira (1917-1992).

 

Nessa introdução, o autor de Hora di Bai declara – "E seria pela mão de Baltasar Lopes que viria a conhecer o António Aurélio Gonçalves, um homem seco de carnes, tez sobre o escuro, cabeça avantajada num corpo de estatura meã, olhar vivo, sagaz, ainda quando naquele seu jeito peculiar de semi-cerrar os olhos no vago, como dessa arte melhor situasse todas as suas antenas de captação."


Nascido em S. Vicente, António Aurélio Gonçalves estudou no Seminário de S. Nicolau e posteriormente em Lisboa, onde se licenciou em Histórico-Filosóficas. Já em Lisboa colaborou com, entre outras publicações, Batalha, Seara Nova e O Diabo. Em 1940 regressou a Cabo Verde, para exercer a docência no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente.

 

Embora hoje essa ligação pareça estar esquecida por alguns (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Claridade), foi membro destacado do movimento Claridade, que entre 1936 e 1966 editou em Cabo Verde nove números da revista homónima, sendo a sua obra extremamente admirada por outros elementos do movimento, como Manuel Ferreira e Baltasar Lopes (1907-1989).

 

O prestígio literário das suas exíguas publicações era tal que nem um crítico inequivocamente ligado ao regime salazarista, Amândio César (1921-1987), se coibiu de declarar em Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina (1971): "Em fins de 1971 saía dos prelos cabo-verdianos mais uma obra-prima do, para mim, maior ficcionista português contemporâneo: António Aurélio Gonçalves. E não atiro ao acaso esta afirmação. Porque, efectivamente, passando em revista os nossos maiores e mais representativos escritores, sua obra, no volume individual ou no conjunto, não supera as quatro noveletas que, em Cabo Verde, escreveu e publicou António Aurélio Gonçalves; por muito que pese ao brio dos escritores do espaço de língua portuguesa."

 

Os dois contos aqui reunidos, que, como já vimos, alguns também classificam de novelas, haviam já saído separadamente, em 1956 (Pródiga) e 1957, tendo o autor publicado, posteriormente, ainda na área da ficção, Noite de Vento (1970) e Virgens Loucas (1971). Juntamente com alguns destes volumes saíram também os contos A Consulta e História de Tempo Antigo. Postumamente, foram editados os volumes Recaída (1993) e Terra da Promissão (1998). Na área do ensaio publicara Aspectos da Ironia de Eça de Queirós (1937) e A Centelha – Cadernos de Estudo (1938), saindo postumamente o volume Ensaios e Outros Escritos (1998).

 

Pródiga é um conto cujo título claramente indica que o seu enredo se baseia na célebre parábola bíblica do regresso a casa do filho pródigo. Aqui é Xandinha que, depois de atravessar o purgatório de uma vida sofrida – um namoro contestado pela mãe, a gravidez que resulta num filho falecido pouco depois, a separação do pai desse filho com quem não chegara a casar, um abandono à vida fácil que marinheiros e outros homens proporcionavam às mulheres do Mindelo, regressa, ainda jovem, a casa de sua mãe, Nhâ Ludovina, e irmãs, Isabel e Augusta.

 

É também uma narrativa que traduz certo destino incontornável de algumas mulheres, pois Nhâ Ludovina havia sido mãe-solteira, tal como as suas filhas vieram a ser, sem que isso afecte a sua noção de família e unidade.

 

O conto O Enterro de Nhâ Candinha Sena desenvolve-se através da revisitação da infância como espaço de afecto e serve de leit-motiv para abordar a saída do arquipélago como uma inevitabilidade que acaba quase sempre por confluir para outra inevitabilidade – o saudoso regresso definitivo a Cabo Verde.

 

A aridez de alguns recantos da ilha e os aspectos quase insuportáveis do clima acabam por ser contrabalançados, aqui, por aquilo que de melhor o autor encontra em Cabo Verde – a vivacidade das personagens, o ambiente familiar, o convidativo enredar de todas as vidas, presentes e passadas, num inesquecível conjunto que surge como paradigma da perene vivacidade das gentes e memórias cabo-verdianas.

 

Para alguns aspectos e memórias da vida familiar de António Aurélio Gonçalves veja-se: http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/32688.html.

 

 

Do conto Pródiga transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Xandinha tinha chegado a um largozinho formado de terrenos vagos, de onde partiam as ruas de uma encruzilhada. Desviou-se para um beco, que vinha do Lombo-de-Trás a torcer-se em meandros escusos. Uma lâmpada debruçava-se sobre ela, vibrava o seu centro forte sobre o solo e batia cruamente as paredes opostas; depois, a sua luz atenuava-se numa degradação lenta, agonizava infindàvelmente no largo e, incerta, dormente, escorria por ruelas coleantes, enlividecia a aresta das esquinas, deixava planos cair na sombra; mais longe, à direita, um quadrante negro absorvia toda a claridade, ao passo que, para a esquerda, apanhava-se, recortada num pequeno quadrado, a vista da iluminação de uma rua transversal, e esta tomava o ar de um pequeno pano de fundo flamejando pretenciosamente debaixo de um foco intenso.

 

O vento passava com a sua farfalha incessante nos ouvidos de Xandinha. Não era fácil saber-se onde ia ele tomar impulso e força para estas arrancadas frenéticas, mas as lufadas impetuosas, duradoiras, pareciam baixar do nordeste, dos lados da Assomada do João d'Évora, da Salamança. Irrompiam do escuro, enrodilhavam-se como em novelos de cordas possantes e pareciam rodopiar no mesmo sítio com a rapidez de turbilhões antes de se lançarem definitivamente na sua fuga para o sul. O Lombo, assim escuro, ventoso e húmido, é triste. Quem passa não pára, não se ouve uma voz de rapariga, uma brincadeira de crianças, um arpejo de cavaquinho, portas e janelas fecham-se e uma ou outra luzinha brilha através de uma vidraça.

 

De face para o candeeiro, um grupinho encostava-se à parede, uns de pé, outros assentados, para fugir ao frio. Duas mulheres faziam o seu negócio e tinham tabuleiros à frente, com pão de milho, rebuçados de mel, açucrinha, etc. Dois rapazitos brincavam. A Benedita, negra de boa plástica, rapariga-de-vida bem conhecida no Lombo, silenciosa, fitava a rua. Todos se encolhiam, braços cruzados, procurando um agasalho para as mãos nuas e ninguém, a não ser os dois rapazitos que palravam, dizia palavra.

 

Xandinha aproximou-se dos tabuleiros e galhofou:

 

– Que é que vocês têm por aí, meninas? Que é que vocês me guardaram? Não me gaurdaram nada?

 

Uma das mulheres propôs-lhe:

 

– Compra-me um pãozinho de milho. Estão bonzinhos, menina. Queres? Dois tostões. Compra metade; só um tostão.

 

Xandinha debruçou-se a observar de perto os pães e, com a ponta dos dedos, tacteava-lhes a resistência:

 

– Agorinha assim, deu-me uma fraqueza na boca do estômago. Deveras! Ainda não jantei. Não me fias um, anh, Joana? Só até amanhã pela manhã. O teu dinheiro fica certo, menina. Podes estar descansada.

 

A Joana ajeitou os pães novamente no tabuleiro e, de cabeça baixa, resmungava:

 

– Minha filha, se fosse por fiado, fiava um a mim mesma. Vontade não falta."

 

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