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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

31.01.15

Maria Perpétua Candeias da Silva - O Homem Enfeitiçado


blogdaruanove

Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas), O Homem Enfeitiçado (1961).

 

Nascida na região de Caconda, Angola, Maria Perpétua Candeias da Silva, recebeu em 1949 uma distinção pelo seu conto Nihova, num concurso organizado pela Câmara Municipal de Nova Lisboa (actual Huambo).

 

Posteriormente escreveu os contos A Mulher de Duas Cores e Falsos Trilhos, que haveriam de vir a ser publicados em 1959, num só volume que conjuga esses dois títulos e foi agraciado com o prémio Fialho de Almeida da Câmara Municipal de Sá da Bandeira (actual Lubango). Publicou ainda o conto Escrava, na antologia Novos Contos d'África (1962), o volume Navionga: Filha de Branco (1966) e o conto Ka-tenda, Morto-vivo, na antologia Contos Portugueses do Ultramar (1969).

 

Acerca de Navionga, um parecer da censura prévia para o programa Horizonte: Semanário de Letras e Artes, da Emissora Nacional, de 17 de Agosto de 1967, programa que era coordenado por Amândio César (1921-1987), refere: "O livro apresentado para ilustrar a rubrica da pag. 5 [O Livro da Semana], cheio de crendices, será de divulgar?"

 

A exemplo do que acontecia com outras publicações de literatura colonial, também o conto O Homem Enfeitiçado é complementado com um glossário de 12 vocábulos – êpuita, kefècô, lombi, lonamba, ngôma, ossolo, tchimbari, tchimbombô, tchissanga, vigundo, virombô, vitambero, que antecedem a seguinte consideração: "Aos diálogos travados em umbundo «língua que conheço bastante bem», interpretando-os para português, procuro sempre dar-lhes sentido exacto nunca fugindo à pitoresca fraseologia da língua. O mesmo acontece com os monólogos."

 

Já neste conto a autora abordava temas que haveriam de levar à questão colocada pelo censor de Navionga, encerrando o glossário e o volume com a seguinte observação: "O feitiço da cabaça, segundo os nativos, é a mais terrível magia que a raça umbundo conhece. O Tchimbundo (feiticeiro), coloca água límpida numa grande cabaça e nela deita uns pós. Espera, e momentos depois faz umas orações e vai evocando a imagem de qualquer pessoa a quem deseja fazer mal. Esta acaba por se reflectir na água e é espetada com uma agulha ou qualquer instrumento de ponta fina em qualquer dos sítios onde se alojam os órgãos. Se for no coração, a pessoa tem morte repentina. Se for no estômago, fígado, etc., terá doença incurável em qualquer daqueles órfãos [sic] e desse mal virá a falecer."

 

O enredo deste conto desenvolve-se em torno do drama interior que Salupassa alimenta a partir da sua condição de tchimbari – um negro educado nos costumes dos brancos. Um negro que não passara pelo ritual do ekuendgê (circuncisão) e que perante homens e mulheres da sua raça nunca seria um verdadeiro homem. Antes seria sempre um homem enfeitiçado, e um marginal, pois não tinha sido purificado nem fortalecido pelo ritual.

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos de O Homem Enfeitiçado:

 

"Acontecia-lhe, já, passar noites seguidas sem dormir e, sem ânimo, faltava ao serviço e faltava a Navita! O diabo era o que vinha depois: ralhos da patroa por julgar que ele faltava por motivo de bebedeira, e ralhos de Navita que o julgava de diversas maneiras, conforme lhe dava na cabeça. Até adquirira o costume de, por desconfiança, quando ele lhe faltava, sair de casa dela, que ainda ficava longe, e aparecer-lhe na cubata. E, se o encontrava estendido na esteira, logo se aconchegava ao lado dele, pondo-se a acariciá-lo e a apalpá-lo. E se ele, esquecido da sua desgraça de homem, acabasse por lhe retribuir ardorosamente aqueles afagos... logo Navita, embriagada de desejo, se principiava a despir, ficando-lhe nua nos braços.

 

Então é que eram elas: havia-se sentido na terra do mel para de lá sair cheio de dor e vergonha e dar entrada numa outra terra amarga de sal e gindungo! Pobre dele! No momento mais apetecido, largava brutalmente Navita e deitava a fugir como «bambi» à frente do caçador negro e enfiava pela floresta, escondendo-se onde a sua rapariga o não pudesse ver! Ali, dava largas à sua dor: mordia-se raivosamente, chorando como qualquer mulher. Como desejava sinceramente a morte naqueles momentos! E como amaldiçoava a hora em que nascera!

 

E quando voltava a ver Navita, seguia-se uma cena tremenda: se ele ia vê-la à casa onde ela habitava com a irmã e o cunhado, uma casa de adobe coberta de capim, a rapariga, se o bispava, corria a fechar-se dentro de casa e só saía depois de muito rogada a sua presença. Mas quantas vezes não aparecia como um redemoinho de vento?: pondo-se a andar de roda dele como uma doida e a largar da boca grandes palavrões:

 

– Que vens cá fazer, homem capado? Se não consegues fazer nada a uma mulher, por que não me deixas em paz?

 

Depois parava, começava a olhá-lo fixamente. Deitava-lhe a língua de fora e, tornando a caminhar de roda dele, Salupassa, e fazendo gestos obscenos com as mãos, voltava a falar:

 

– Por que não me deixas só? Deixa-me e nunca mais cá venhas! Eu quero um homem que seja homem de verdade! Todo aquele que nasce tem direito ao mel que a vida dá. E eu quero desse mel e tu não prestas para o dar. Vai-te embora daqui, anda, sai, estás à espera de quê? – e cada vez mais zangada, enfurecida, já, continuava: – Vai-te embora e que eu nunca mais te veja. Ânus podre da tua mãe, ânus podre do teu pai, estúpida toupeira. Vai-te embora – e empurrando-o com força: – Vai-te que cheiras mesmo a carne podre e a tua roupa cheira a mijo de rato...

 

Ele nada dizia, não tinha mesmo forças para dizer nada. Olhava-a e parecia-lhe ver na sua frente uma Navita diferente, uma peste em vez de uma mulher, em vez da jovem mulher a quem tanto queria. Navita ficava com as feições decompostas, dos lábios principiava a sair-lhe uma espuma esbranquiçada e os olhos pareciam inchar dentro das órbitos [sic]. Ficava quase como os diabos que os livros das igrejas dos brancos mostravam. E ele, cheio de nojo daquela rapariga e cheio de raiva contra si próprio, virava costas e, de cabeça baixa, ia direito à sua cubata."

 

© Blog da Rua Nove

02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

© Blog da Rua Nove