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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

01.08.16

Alexandre Cabral - A Fula


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Alexandre Cabral (pseudónimo de José dos Santos Cabral, 1917-1996),  A Fula (1963).

 

O presente volume apresenta dois contos – A Fula e Daba-Goma, inserindo ainda, no final, um glossário com vinte e três "termos indígenas". Estas duas narrativas haviam surgido já no livro Histórias do Zaire (1956; http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/5109.html), embora o conto A Fula apresentasse ali o título A "Fula" Lubamba Desapareceu.

 

No referido glossário, o autor apresenta para o vocábulo Fula a seguinte entrada – "Negra de pigmentação clara. Aparecem com mais fequência nas Kasais."

 

Entre 1956 e 1963, Alexandre Cabral publicou ainda uma peça de teatro, As Duas Faces (1959), um romance, Margem Norte (1961) e um prefácio, sobre o autor que mais viria a marcar a sua ensaística posterior, na obra As Polémicas de Camilo - I (1962).

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos do conto que dá título ao volume:

 

"Uma tarde, a fula procurou-o na loja. Tinham combinado na véspera um passeio pela margem do Zaire para recordar uma certa noite em que ambos se amaram pela primeira vez. A fatalidade quis que as coisas se passassem assim, a menos que a cabra andasse já com a ideia virada para a safadeza. O patrão estava ao balcão, como era seu costume. No mesmo instante em que avistou a negra, despediu o freguês e chamou-o à parte.

 

«Mankolo, quem é aquela?»

 

«É Lubamba, a minha mulher.»

 

«Anh! Anh!»

 

Mankolo envaideceu-se na altura com a excitação do branco. Lubamba era uma boa mulher, sim senhor, mas pertencia-lhe. Ao fechar da loja, o mundele voltou ao assunto, com um palavreado meloso de quem oculta uma intenção.

 

«Escuta aqui, Mankolo. Não tens uma irmã assim bonita como a Lubamba?»

 

Falava, e os olhos fosforejavam-lhe de cupidez, como quando entrava no armazém indígena jeitosa, nova na região, e ele se esforçava por atraí-la com o mel das promessas ao interior da residência.

 

«Conheço uma pequena que te serve, mundele

 

«Bonita como a tua Lubamba?»

 

«Mundele, boa de verdade!»

 

Levou-lhe a Margueritte no dia imediato, depois de estipular tim-tim por tim as condições do negócio: a espórtula seria dividida em duas partes, ficando ele com uma. Não haveria partilha dos bilokos; estes pertenceriam por inteiro à rapariga.

 

A Margueritte não encontrara na aldeia homem que a quisesse; há muito tempo que se dedicava ao tráfico do amor com os viajantes ocasionais que circulavam pelo rio. Vivia da prostituição. Mas era ainda uma mulher apetitosa. Mankolo não contava com a reacção do branco, que se escandalizou com a má qualidade do fruto que lhe levara. «Naturalmente esperava uma mwana

 

O tempo passou e ambos esqueceram o episódio. Lubamba deu em aparecer assìduamente pelo armazém. Todos os pretextos lhe serviam. A negra é cabra como a branca, quando a cabeça vira para o mal. Nem mesmo quando o patrão lhe ofereceu uma vistosa peça de pintado, Mankolo desconfiou de que estavam a desfeiteá-lo. Evidentemente, os dois andavam de combinação.

 

Nessa manhã o branco mandou-o para o beach («Deixa limpezas, há mais que fazer.»), com a recomendação de aguardar o paka-paka de Kinshasa, que trazia um carregamento de pólvora. Esperou inùtilmente até ao fim da tarde. Ele sabia que não estava na hora de passar barco, mas não estranhou, porque os brancos conhecem com antecipação os acontecimentos pelas mukandas que recebem.

 

Cão tinhoso! Não voltaria a fazer pouco dele, não! Paciência não lhe faltava. Estava habituado às horas de longa espera, no topo das árvores, enquanto a caça não se aproximava. Tinha, porém, a vingança tão certa, como o bicho morto de sede procurar o rio para se dessedentar."

 

© Blog da Rua Nove

04.04.16

Vitor Silva Tavares - Hot e Etc.


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Vitor Silva Tavares (1937-2015), Hot e Etc. (1964).

 

Até à data de publicação desta obra, Vitor Silva Tavares havia desenvolvido, na metrópole, obra como pintor, repórter, colaborador literário de jornais e revistas, colaborador da RTP, onde também surgiu como actor, e cenógrafo. Já em Angola, foi jornalista em Benguela, onde colaborou com O Intransigente, e dirigente cine-clubista, tendo realizado, em 8mm., o filme Uma História do Mar.

 

Ecoando o título do opúsculo aqui apresentado, e transpondo homonimamente o título do magazine cultural do Jornal do Fundão, criado por si em 1967, e da revista que lhe sucedeu, entre 1973 e 1974, Vitor Silva Tavares fundou em 1974 uma pequena editora, denominada &etc, que durante mais de quarenta anos haveria de se tornar numa editora de culto e referência entre autores e leitores. 

 

Posteriormente, publicou 2 Textos à Pressão (sem data), prefaciou Como Quem Não Quer a Coisa (1978), de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004), bem como obras de diversos outros autores, particularmente nas edições &etc. A par da sua actividade editorial, que inclui ainda a direcção da Ulisseia na década de 1960, desenvolveu também extensa actividade como tradutor.

 

Foi ainda co-autor de Ara (1984), com Paulo da Costa Domingos (n. 1953) e Rui Baião (n. 1953), e Poesia em Verso (2007), com Afonso Cautela (n. 1933) e Rui Caeiro (n. 1943), colaborando também no Manifesto contra o desastroso encerramento das livrarias da Cidade de Lisboa no centenário da Livraria Sá da Costa (2013). Em 2015 publicou um conjunto de poemas intitulado Púsias.

 

O presente volume, que, numa nota introdutória, anunciava ter Vitor Silva Tavares em vias de publicação o livro Exposições de Poemas (de que não foi encontrada notícia posterior), reune três textos em prosa – Nada de Importância, Hot e Bop, por onde perpassam, até na sua estrutura narrativa, nítidas influências musicais, particularmente do jazz, e referências a figuras como Frank Sinatra, Miles Davis, Mozart, The Jazz Messengers e Vivaldi.

 

Do conto/crónica Bop transcreve-se a parte final do seu único parágrafo:

 

" (...) O largo despovoa-se, estamos sós, a cidade foi dormir, amanhã há negócios a tratar. Falemos. O cronista não consegue registar o que quer que seja. Também ele está gasto de tanta palavra gasta. Gozemos com Pimpão. Jaimito desforra-se e zurze o orgão cardíaco do bom gigante. Mais cerveja e a festa anima. Decidimos visitar a boite do Hotel. Jaimito, que tal um show? Cá vamos, cantando e rindo. A boite exibe um ar diabólico, pintalga de labaredas toda a fauna. Conferimos as finanças e pedimos um só uísque. Vão roubar gatunos! Encostamo-nos ao balcão do bar. O pianista tecla uma melodia a carácter. Há três pares de atrasados mentais a deslizar na pista. Tudo muito chato. Às tantas, empurramos Jaimito para a bateria. Os românticos vão apanhar ar (que está húmido e fedorento) e começa a função. Jaimito mostra-se um tanto contraído, inclina-se para os tambores, busca a intimidade. Agora vê-se que descobriu qualquer coisa, os músculos distendem, já sorri para a malta. Vamos, seu Jaime, isso mesmo, está bem, está bom, YES SIR! Vem o gerente e recomenda compostura, muito gerentemente. Compostura, o raio que o parta! Saímos. Pimpão, não se arranja um carro? Só se for o da professora, mas já é tão tarde... Que se lixe! Vamos bater à porta da professora, uma cinquentona camarada. Ainda não se deitou, manda-nos entrar, oferece-nos ginguba e cerveja. Quanto ao carrinho, sim senhor, está muito bem, mas cuidado, an? É escusado recomendar, beijinhos à professora, by by. Voamos para o Benfica. Há festa cabo-verdiana, o petromax desenha um rectângulo de luz na escuridão da rua. Marchinhas brasileiras, em 78: a inconcebível geringonça sonora berra o ritmo popular e há camaradas autóctones a dar à perna. E pó e suor e olhos doces e dentes a luzir. Vamos a isto! Encontro-me enfaixado num corpo sinuoso e deixo-me abandonar. Cresce o frenesim, duas tipinhas imitam a dança do ventre e eu já não sei de que terra sou, no literal sentido da expressão. Há alguém que paga uns copos e todos bebemos a mistela, que é de estalo, pois então!... Um cara promete valente churrascada para o almoço de amanhã, mata porco, recebeu verde do Puto e quer reunir tropa à sua mesa. OK, português! A fraternidade escorre dos poros com o suor. A minha parceira chama-se Rosa e eu tenho pena dela e amo-a, amo-te Rosa, sabes?, a sério mesmo, e ela olha-me com aqueles seus olhos africanos e eu fico perplexo, à porta de um segredo, é só entrar e criar raízes. Ouço agora um escarcéu dos demónios e vamos ver o que é. Dois cow-boys resolveram armar sururu e o mais rabioso puxa do revólver e há gritos e fugas histéricas. Devo estar a sonhar. Um tiro rebenta com o petromax e a Rosa pisga-se-me dos braços. Amalgamado de corpos delirantes, deixo-me desaguar na rua. Que festa mais formidável!... A companhia já está no carrro e pomo-nos na alheta, num explosão de pó. Rumo: Lobito. Há um bar que fecha lá para as quatro da manhã, bar de marítimos. Pimpão, tens massas? E tu, Jaimito? Eu tenho 12 angolares e o Mário 7. Dá para umas Cucas. Aterramos no bar, há um alemão muito grosso, muito deutsch, a rosnar por mais bier e o empregado diz-nos ao ouvido que aquele tipo tem já a sua conta, de modo que vá beber a «birra» para a terra dele. O problema é do alemão, claro, também os alemães têm direito a problemas, razão por que nos sentamos pacatamente e bebemos Cucas, enquanto o louro germano dá murros no tampo da mesa. O ambiente está miserável e o melhor que temos a fazer é regressar a Benguela, home sweet home. Entramos na cidade a 120, contornamos a Praça da Câmara e, num banzé apreciável, travamos junto à cancela da nossa casa. Pimpão quer ouvir o Frank Sinatra naquela da solidão, mas mandamo-lo lixar e salta o Jazz Massengers [sic] para o prato. Mário vai buscar o que resta do VAT, Jaimito estira-se no divã e eu estou a coçar o joanete, que me doi como o raio! Ora bem: a África crepita e nós respiramos o ar da maldição. Já nascemos nesta atmosfera, atrofiados de imbecilidade histórica. O reino do silêncio e da vergonha. Quem ouvirá os nossos gritos? E quando? E onde? A conversa está melodramática, pelo que, com vossa licença, vamos despir as farpelas (excepto o Jaimito, por óbvias razões), enfiar os slips e mergulhar no Atlântico. Mergulhar mesmo. Mergulhar. Mergulhar."

 

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31.05.15

Cândido da Velha - Equador


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Cândido da Velha (Cândido Manuel de Oliveira da Velha, n. 1933), Equador (1961).

 

Tendo nascido em Ílhavo, Cândido da Velha rumou a Luanda em 1957, data a partir da qual colaborou em diversos jornais angolanos, como A Província de Angola, ABC, Jornal de Angola, Notícias de Angola, e revistas, como Cultura. Colaborou ainda na revista brasileira Brasília do Sul. Anteriormente, impulsionara já, em Lisboa, a publicação dos cadernos culturais Atitude. 

 

Na Colecção Imbondeiro havia sido co-autor, com Luís Ataíde da Silva Banazol (n. 1919), do volume número 8, publicado em 1960, onde surgiu o seu poema Quero-te Intangível, África. No presente volume, que ostenta no interior uma ilustração de Hipólito Andrade (1933-2015), anuncia-se a existência de dois livros inéditos de Cândido da Velha – O Menino de Mãos Brancas e Poemas da Hora Diferente, de que não foi possível encontrar qualquer registo ulterior com estes títulos.

 

Posteriormente, o autor publicou As Idades de Pedra (poemas, 1969), Corporália (1972), Signo do Caranguejo (1972), Memória Breve de uma Cidade (1988), Navio Dentro do Mapa (1994) e Lugares do Vento Suão – Baixo Alentejo, 1976-1986 (1998), tendo também organizado uma Antologia de Contos - 31 Autores (1997).

 

Do conto O Homem e a Paisagem transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Tudo se fora do lugar maldito. Só a terra é que ficara. Ele também. Como abandoná-la se fazia parte integrante de si  mesmo? Vira-a ficar verde  e amarela, ora alagada, intransitável, ou mudada em cratera perdida do olhar de Deus. Mas afeiçoara-se «àquilo», à medida que os anos iam pesando na balança do séculos. Sofria tão desesperadamente como o plaino abandonado, estéril. Também ele se sentia «improdutivo». Jerónimo e os Gambos tinham feito família. Por isso não debandara com os outros. E também por uma voz íntima que, pela primeira vez, vinha à superfície como um ser, tangível, clara, perturbadora...

 

Num acto instintivo cuspiu nas mãos, esfregou-as depois uma na outra. Forcejou por desencravar a enxada. Deitou-a ao ombro e prosseguiu trôpego dos anos e das derrocadas. As árvores suplicavam clemência, contraídas para cima.

 

A porta chiou. Deixou-se cair pesadamente no banco; fincou os cotovelos nos joelhos e apoiou a fronte nas mãos. Um insecto entrou pela janela, zumbiu e abateu-se a pouca distância. Distraído, absorveu-se na contemplação do bicho que rodopiava aflitivamente, na semi-obscuridade do aposento, tentando recomeçar o voo. Em verdade não era o moscardo agonizante que ele via. Era a sua própria existência que se escoava como um frémito de asas quebradas.

 

A seca tornara-se num incidente banal. Também a vida e a morte deixaram de ter significado. Tinha fechado os olhos ao velho Tomaz, sem «pensar» nele, tal como fizera ao cachorro buliçoso que se disparava direito ao infinito para regressar daí a pouco, a excitação gasta, feliz da corrida e da liberdade. Não os depusera longe. Semeara-os perto da cubata, ali no quintal, debaixo dos magros ramos da acácia.

 

Havia ainda um problema: «não ter um vizinho a talhar-lhe a cova».

 

Bem pressentia que a estiagem seria a derradeira para ele. «Desapareces aos poucos, sabes? Este cangalho de ossos já não te deve preocupar» – monologava –. «Viste como a terra morre? É mesmo! Depois as chuvas fartam tudo e as plantas encolhidas nas raízes estremecem, constipadas, e espirram para fora. É o que farás, velho.» Ergueu-se para desentorpecer as pernas. O corpo do insecto era já um ponto negro familiar. Empurrou-o ao de leve com o pé e voltou a sentar-se. Reatou o fio dos sentimentos. – «É isso.... Hás-de dar um espirro monstro até a lama cobrir-se de montões exuberantes de capim.»

 

Pensava assim, pois recordava-se da vegetação, a crescer com mais furor, nos locais onde escondera das aves Tomaz e o cão.

 

Levantou-se e explorou o armário. À parte umas teias de aranha, duas moscas aprisionadas nos fios traiçoeiros, poderia  considerar-se «devoluto». De costas para o móvel, fixou os olhos na porta numa «esperança» antecipadamente malograda.

 

Nenhum auxílio humano à sua espera. Nenhuma voz de gente para a sua solidão.

 

Contrariara o destino, vendo todo o mundo desaparecer, assistindo àquele êxodo quase irreal que parecia desintegrar-se na luz excessiva do meio-dia. E o destino era partir com eles; aspirar o pó das picadas, tombar, por vezes, e para sempre, nas margens dos rios, depois de muitas léguas arrastadas em desespero e renúncia..."

 

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22.03.15

Madi - Missangas de Cor


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Cristiano Valcorba (n. 1937), Vicente (1963); Madi (n. 1940; pseudónimo), O Livro da Primeira Classe, Missangas de Cor (1963).

 

Cristiano Valcorba, que havia nascido em Ponta Delgada, Açores, exercia a profissão de empregado de comércio. De acordo com a nota bibliográfica apresentada neste opúculo, até então havia publicado poesias e estudos ensaísticos na imprensa local, não havendo notícia de que tenha publicado posteriormente qualquer outra obra.

 

Por sua vez, Madi (obviamente um pseudónimo ou diminutivo) havia nascido em Elvas, Alentejo, tendo-se radicado em Luanda no início da década de 1950. A exemplo do que acontece com Valcorba, não há qualquer outro registo de publicações posteriores, apenas se sabendo, pela nota bibliográfica, que tinha particular interesse por literatura infantil e colaborava no jornal a província de Angola.

 

O conto Vicente narra-nos o episódio de um vagabundo, Vicente, que, num domingo e numa cidade quase deserta, após dezoito horas sem comer, recusa a oferta de pão com doce porque lhe apetecia pão com queijo. Reflexão sobre algumas causas da mendicidade e da caridade, esta é também uma reflexão sobre a dignidade e a liberdade individual.

 

Os dois contos de Madi colocam-nos perante inesperados e peculiares actos de maldade. No primeiro, encontramos dois ardinas que procuram poupar o suficiente, 17$50, para comprar um livro através do qual possam aprender a ler. Quando o conseguem, o tio de um deles descobre o livro, espezinha-o e agride o sobrinho por este não lhe ter entregue as suas economias. No segundo conto encontramos a ingénua Macuto, que acaba por ser despedida devido a um maquiavélico mal-entendido provocado pelo ciumento Sucuri.

 

Como nota curiosa, refira-se que a ausência de concordância no género e número das palavras, ou as incorrectas conjugações verbais, recurso estilístico utilizada por Madi nos seus dois contos para acentuar o discurso das personagens nativas, muitas vezes ridicularizado e apontado pelos europeus como exemplo da sua ignorância, tem uma irónica contrapartida na palavra utilizada para o título de um dos seus contos, pois o vocábulo missangas, muito compenetrada e superiormente utilizada pelos falantes de Português, encerra em si um duplo plural – em Quimbundo, missanga é, de facto, o plural da palavra (u)sanga.

 

Do conto Missangas de Cor transcrevem-se de seguida alguns parágrafos:

 

"A mulher tirou as mãos das ancas e refilou, ameaçadora, cuspindo o chão.

 

– Teu pai é que ter razão, você só gosta brincar. Quando você aprende falar como pissoa?

 

– Mamã não zanga – pediu – mas eu sabe que faz.

 

Mamã gritou-lhe mais zangada ainda.

 

– Não sabe! Por isso eu vai dizer.

 

Macuto tornou a encolher os ombros, olhando-a resignada.

 

– Fala.

 

– Sinhor António gosta pretas, você vai ter cuidado, eu está te avisar. Minino não, esse anda namorar com minina branca, bonita mesmo, não vai ligar no preta, anda no liceu, é educando [sic].

 

Macuto, enrolando os panos melhor a si, contou o que a senhora lhe prometera.

 

– Dona Mariquinhas disse dispôs mi vai dar vistidos.

 

A mulher voltou a cuspir o chão, incrédula.

 

– E você acreditou?

 

– Sim. E sandaletes com correias. Sinhora diz não quer preta de panos no seu casa.

 

– Mas você não vai ficar vaidosa? Rapariga vaidosa fica vadia dipressa.

 

– Haka, mamã!

 

– Você não seja mal inducanda [sic], seu pai no quiria deixar ir no você porque o seu cabeça ainda não presta e disse se você vier vadia não recebe no seu casa.

 

Quando esfregava a roupa, debruçada no tanque grande ao fundo do quintal, Macuto pensava sempre naquelas palavras. – «É priciso não dar confiança nos brancos nem nos pretos.» – «Sinhor António gosta di pretas, minino não, é educando [sic].»

 

Sucuri, o cozinheiro, no primeiro dia, enquanto lhe ensinava onde estava o sabão, onde devia ir buscar a roupa suja, o carvão para passar, também lhe dissera:

 

– Minina, eu já conhece você muito tempo; por isso eu lhe vai dizer qui pricisa ter muito juízo.

 

Macuto rira-se dele.

 

– Você não tem medo, eu sabe lavar bem e engomar, mamã me ensinou, eu já lavar roupa muito tempo no meu casa.

 

Sucuri ficara desarmado; aquela rapariga era mesmo parva, parva sim, estúpida, não fora isso que ele quisera dizer.

 

Pegou-lhe num braço para a chamar à atenção por outras palavras.

 

– Minina...

 

– Haka! Tira à mão, rapaz – disse, dando-lhe uma palmada e recuando – mamã disse para eu não dar confiança nos brancos nem nos pretos.

 

– Sua mãe disse isso?

 

– Disse, por isso você vai pôr pata noutro sítio, Macuto não é preta vadia com quem você costuma andar."

 

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31.01.15

Maria Perpétua Candeias da Silva - O Homem Enfeitiçado


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Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas), O Homem Enfeitiçado (1961).

 

Nascida na região de Caconda, Angola, Maria Perpétua Candeias da Silva, recebeu em 1949 uma distinção pelo seu conto Nihova, num concurso organizado pela Câmara Municipal de Nova Lisboa (actual Huambo).

 

Posteriormente escreveu os contos A Mulher de Duas Cores e Falsos Trilhos, que haveriam de vir a ser publicados em 1959, num só volume que conjuga esses dois títulos e foi agraciado com o prémio Fialho de Almeida da Câmara Municipal de Sá da Bandeira (actual Lubango). Publicou ainda o conto Escrava, na antologia Novos Contos d'África (1962), o volume Navionga: Filha de Branco (1966) e o conto Ka-tenda, Morto-vivo, na antologia Contos Portugueses do Ultramar (1969).

 

Acerca de Navionga, um parecer da censura prévia para o programa Horizonte: Semanário de Letras e Artes, da Emissora Nacional, de 17 de Agosto de 1967, programa que era coordenado por Amândio César (1921-1987), refere: "O livro apresentado para ilustrar a rubrica da pag. 5 [O Livro da Semana], cheio de crendices, será de divulgar?"

 

A exemplo do que acontecia com outras publicações de literatura colonial, também o conto O Homem Enfeitiçado é complementado com um glossário de 12 vocábulos – êpuita, kefècô, lombi, lonamba, ngôma, ossolo, tchimbari, tchimbombô, tchissanga, vigundo, virombô, vitambero, que antecedem a seguinte consideração: "Aos diálogos travados em umbundo «língua que conheço bastante bem», interpretando-os para português, procuro sempre dar-lhes sentido exacto nunca fugindo à pitoresca fraseologia da língua. O mesmo acontece com os monólogos."

 

Já neste conto a autora abordava temas que haveriam de levar à questão colocada pelo censor de Navionga, encerrando o glossário e o volume com a seguinte observação: "O feitiço da cabaça, segundo os nativos, é a mais terrível magia que a raça umbundo conhece. O Tchimbundo (feiticeiro), coloca água límpida numa grande cabaça e nela deita uns pós. Espera, e momentos depois faz umas orações e vai evocando a imagem de qualquer pessoa a quem deseja fazer mal. Esta acaba por se reflectir na água e é espetada com uma agulha ou qualquer instrumento de ponta fina em qualquer dos sítios onde se alojam os órgãos. Se for no coração, a pessoa tem morte repentina. Se for no estômago, fígado, etc., terá doença incurável em qualquer daqueles órfãos [sic] e desse mal virá a falecer."

 

O enredo deste conto desenvolve-se em torno do drama interior que Salupassa alimenta a partir da sua condição de tchimbari – um negro educado nos costumes dos brancos. Um negro que não passara pelo ritual do ekuendgê (circuncisão) e que perante homens e mulheres da sua raça nunca seria um verdadeiro homem. Antes seria sempre um homem enfeitiçado, e um marginal, pois não tinha sido purificado nem fortalecido pelo ritual.

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos de O Homem Enfeitiçado:

 

"Acontecia-lhe, já, passar noites seguidas sem dormir e, sem ânimo, faltava ao serviço e faltava a Navita! O diabo era o que vinha depois: ralhos da patroa por julgar que ele faltava por motivo de bebedeira, e ralhos de Navita que o julgava de diversas maneiras, conforme lhe dava na cabeça. Até adquirira o costume de, por desconfiança, quando ele lhe faltava, sair de casa dela, que ainda ficava longe, e aparecer-lhe na cubata. E, se o encontrava estendido na esteira, logo se aconchegava ao lado dele, pondo-se a acariciá-lo e a apalpá-lo. E se ele, esquecido da sua desgraça de homem, acabasse por lhe retribuir ardorosamente aqueles afagos... logo Navita, embriagada de desejo, se principiava a despir, ficando-lhe nua nos braços.

 

Então é que eram elas: havia-se sentido na terra do mel para de lá sair cheio de dor e vergonha e dar entrada numa outra terra amarga de sal e gindungo! Pobre dele! No momento mais apetecido, largava brutalmente Navita e deitava a fugir como «bambi» à frente do caçador negro e enfiava pela floresta, escondendo-se onde a sua rapariga o não pudesse ver! Ali, dava largas à sua dor: mordia-se raivosamente, chorando como qualquer mulher. Como desejava sinceramente a morte naqueles momentos! E como amaldiçoava a hora em que nascera!

 

E quando voltava a ver Navita, seguia-se uma cena tremenda: se ele ia vê-la à casa onde ela habitava com a irmã e o cunhado, uma casa de adobe coberta de capim, a rapariga, se o bispava, corria a fechar-se dentro de casa e só saía depois de muito rogada a sua presença. Mas quantas vezes não aparecia como um redemoinho de vento?: pondo-se a andar de roda dele como uma doida e a largar da boca grandes palavrões:

 

– Que vens cá fazer, homem capado? Se não consegues fazer nada a uma mulher, por que não me deixas em paz?

 

Depois parava, começava a olhá-lo fixamente. Deitava-lhe a língua de fora e, tornando a caminhar de roda dele, Salupassa, e fazendo gestos obscenos com as mãos, voltava a falar:

 

– Por que não me deixas só? Deixa-me e nunca mais cá venhas! Eu quero um homem que seja homem de verdade! Todo aquele que nasce tem direito ao mel que a vida dá. E eu quero desse mel e tu não prestas para o dar. Vai-te embora daqui, anda, sai, estás à espera de quê? – e cada vez mais zangada, enfurecida, já, continuava: – Vai-te embora e que eu nunca mais te veja. Ânus podre da tua mãe, ânus podre do teu pai, estúpida toupeira. Vai-te embora – e empurrando-o com força: – Vai-te que cheiras mesmo a carne podre e a tua roupa cheira a mijo de rato...

 

Ele nada dizia, não tinha mesmo forças para dizer nada. Olhava-a e parecia-lhe ver na sua frente uma Navita diferente, uma peste em vez de uma mulher, em vez da jovem mulher a quem tanto queria. Navita ficava com as feições decompostas, dos lábios principiava a sair-lhe uma espuma esbranquiçada e os olhos pareciam inchar dentro das órbitos [sic]. Ficava quase como os diabos que os livros das igrejas dos brancos mostravam. E ele, cheio de nojo daquela rapariga e cheio de raiva contra si próprio, virava costas e, de cabeça baixa, ia direito à sua cubata."

 

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30.03.14

Eduardo Teófilo - Quando o Dia Chegar


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), sob ideia de Eduardo Teófilo.

 

Eduardo Teófilo (1923-1980), Quando o Dia Chegar (1962).

 

Como já foi referido anteriormente (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/2711.html), embora Eduardo Teófilo tivessse chegado a África na década de 1950, mais precisamente em 1954, a sua ficção não reflectiu de imediato essa experiência.

 

De facto, a sua produção da década de 1960 ainda se dividia entre uma temática especificamente evocativa dessa experiência africana e uma temática mais genérica, que poderia traduzir cenários e problemáticas aparentemente mais universais.

 

Este volume, editado pelas publicações Imbondeiro, de Sá da Bandeira, Angola, e galardoado com o prémio Fialho de Almeida, testemunha essa mesma divisão.

 

Dos vinte contos aqui publicados, apenas metade traduzem ou evocam uma temática ou um cenário africano – Batuque, Briga Antiga, D. Rodrigo, Passageiro Clandestino, Encontro, Retorno, A Sorte Grande, Um Colo de Garça Negra, O Regresso e Um Caçador.

 

Do conto Batuque transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Os sons continuam a vir, cavos e monótonos, num ritmo sempre igual, mas mais percutido, mais acelerado, os braços caindo rápidos e descontraídos sobre as peles esticadas dos tambores, ou sobre os fundos das latas, cabeças dos músicos marcando o compasso, para cima e para baixo, num frenesim, enquanto, em volta das chamas que se erguem para as estrelas, os bailarinos se agitam, se contorcem, unindo a cabeça com os joelhos, em saltos impossíveis, mexendo os braços para trás e para a frente, numa mímica difícil de compreender, empurrando-se uns aos outros, seguindo em fila, lançando gritos, assobios, enquanto que uma melopeia de fundo se escuta, monocórdica, sempre igual, sempre as mesmas palavras, talvez o mesmo verso ou a mesma lenda. Há crianças, também, pitorros nus, de três e quatro anos, que esbracejam, revoluteiam, se enrodilham entre os pés dos maiores, que os não vêem sequer, alucinados pelo ritmo, sempre cada vez mais desenfreado, dos tambores e latas. São depois as mulheres, jovens e velhas, enroladas nos panos coloridos de desenhos estravagantes, que cantam e dançam à volta dos homens. As crianças param, olham as mães e ficam-se, sentadas à roda do lume, junto aos músicos que transpiram por todos os lados, mas não se cansam de entoar sempre a mesma melodia e de bater, cada vez mais desenfreadamente, os fundos das latas e os couros das seixas e dos veados.

 

E as mulheres bailam de roda dos homens, atiram-se-lhes para a frente, chegam-se-lhes, afastam-se-lhes, requebrando os rins, remexendo o ventre, numa fúria cada vez maior, numa dança de amor, talvez. Algumas trazem os filhos de mama, enrolados nos panos, às costas. As crianças dormem e as mães bailam. E elas parece começarem já a apreciar a dança por instinto, por sugestão, embaladas no seu sono pelos requebros e meneios das costas balançando.

 

Procuro com a vista o soldado que se honra como batuque festivo. Não dança. Bebe vinho de palma com os chefes, enquanto os seus olhos parecem rir da ingenuidade do bailado, ele que já viu muito mundo, que dançou danças de brancos pelas cidades da costa e pelos portos por onde tocou, que conheceu raças diferentes da sua e dos brancos que os seus conhecem, que viu outras cores de peles noutros rostos de mulheres. Ele é um sábio para o seu povo, pois que sabe contar histórias de outras gentes, de outras terras que os seus nunca viram e desconhecem. Os chefes bebem-lhe as palavras, enquanto ele fala num ar superior, e inventa, talvez, histórias que nunca conheceu.

 

– Uma vez, lá em Goa, fomos numa dança grande de indianos. As mulheres não são negras nem brancas. A sua pele tem a cor do capim a secar e é macia, mas não tanto como a das nossas mulheres. E os olhos são grandes e fundos e quando olham a gente parece quererem entrar no nosso coração, pelas janelas dos olhos da gente.

 

E, enquanto fala, o púcaro do «marufo» adocicado nas mãos grandes, fita, de olhos esgaseados as mulheres da sua raça, que não têm a pele de azeitona, mas de negro retinto, e que rodopiam sem cessar, balançando, balançando."

 

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02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

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21.12.13

Nuno Bermudes - Uma Gota de Chuva


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

Nuno Bermudes (1924-1997), Uma Gota de Chuva (1964).

 

Funcionário, em Moçambique, do Banco Nacional Ultramarino, Nuno Bermudes foi redactor do jornal Notícias da Beira, desde o início da década de 1950, tendo ainda desempenhado as funções de chefe de redacção do jornal Notícias, de Lourenço Marques [actual Maputo], em 1958.

 

Para além de ter publicado as obras anteriormente referidas (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3842.html), em 1964 tinha já obtido o primeiro prémio de reportagem de Moçambique com Gorongosa – No Reino dos Animais Bravios, e publicado Um Machangane Descobre o Rio – Crónicas de viagem ao Rio de Janeiro.

 

Neste volume reunem-se dois contos – Uma Gota de Chuva e A Visita, originalmente publicados em Gandana e Outros Contos (1959), cujo enredo se baseia essencialmente numa recorrente analepse evocativa de violência e instinto face ao sentimento de desonra, que alterna com o presente de um caçador, Rodrigo, na primeira narrativa.

 

Na segunda narrativa, as desafiantes decisões do passado surgem como a origem de um caminho levando à presente desilusão e desalento de Isabel, mulher casada com um fazendeiro e afastada da sua origem urbana, que já não encontra qualquer razão para os sacrifícios a que se submeteu. 

 

Do conto A Visita transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Subiam agora as escadas de casa. Falcato abriu a porta de rede e empurrou a de madeira. Entraram e ele distribuiu-os pelas várias cadeiras da sala. Chamou a mulher e apresentou-a. Apesar da roupa mal feita, do cabelo descuidado, do abandono de todo o seu corpo prematuramente amolecido, os Serpas sentiram-na diferente.

 

Ela sorriu-lhes, Júlio reparou-lhe nos dentes alinhados e pequenos, Ramiro no seios que arredondavam a blusa.

 

Enquanto bebiam o uísque, Isabel Falcato, com um cigarro entre os dedos longos, amarelecidos pela nicotina, olhava-os de frente, observando-os, estudando cada um deles, com um desembaraço que os fazia desviar a vista. Dizia, aqui e ali, uma frase amável, marcando a presença, alisava a saia sem gosto, num gesto automático e vago. Andava pela casa dos trinta e cinco e na linha sinuosa da boca havia uma leve sombra de amargura que o sorriso, em vez de desanuviar, ainda carregava mais.

 

Falcato falava:

 

– Ora, sim senhor, meus amigos! Nem era preciso a carta! Aqui a nossa porta está sempre aberta para os vizinhos! Não é Isabel?

 

Ela encolheu o corpo. Sorriu.

 

– Os vizinhos são poucos... – articulou, e era o sorriso que falava. – Os mais próximos, até agora, que os senhores vieram, vivem a setenta quilómetros. A última vez que aqui estiveram foi há dois meses. Mas é, Alberto, a nossa porta está sempre aberta.

 

O marido alongou-se sobre a luta mantida durante quinze anos, antes de lograrem alcançar tudo aquilo, toda aquela reconfortante sensação de segurança e estabilidade. Anastácio e Ramiro bebiam-lhe as palavras, mentalmente tentavam identificar-se com ele, seguir-lhe os passos, conquistar a mesma vitória.

 

Júlio fumava em silêncio, distante das palavras que rodopiavam pela sala, os olhos perdidos na noite, que descera agora completamente, para lá da janela.

 

E, repentinamente, deu pelo olhar de Isabel fito em si, agarrado na sua carne como um ferrão persistente, doloroso. A princípio, aborreceu-o a insistência, imaginava-se, sabendo-se socialmente abaixo dela, sendo avaliado e depreciado pela interpretação patrícia da mulher citadina. Depois, duas ou três vezes, os seus olhos encontraram-se e nos dela Júlio viu, admirado, o apelo do náufrago que procura, nas ondas tumultuosas, uma ilha ou apenas um destroço. Viu, e nunca mais olhou. A impressão era agora outra, atingia-o de maneira diferente, não a conseguia explicar."

 

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12.11.13

António Aurélio Gonçalves - Pródiga


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

António Aurélio Gonçalves (1901-1984), Pródiga (1962).

 

Este número duplo (35 e 36) da Colecção Imbondeiro apresenta dois contos – Pródiga e O Enterro de Nhâ Candinha Sena, e uma introdução à obra do autor, intitulada António Aurélio Gonçalves - Esboço de Retrato, pelo escritor Manuel Ferreira (1917-1992).

 

Nessa introdução, o autor de Hora di Bai declara – "E seria pela mão de Baltasar Lopes que viria a conhecer o António Aurélio Gonçalves, um homem seco de carnes, tez sobre o escuro, cabeça avantajada num corpo de estatura meã, olhar vivo, sagaz, ainda quando naquele seu jeito peculiar de semi-cerrar os olhos no vago, como dessa arte melhor situasse todas as suas antenas de captação."


Nascido em S. Vicente, António Aurélio Gonçalves estudou no Seminário de S. Nicolau e posteriormente em Lisboa, onde se licenciou em Histórico-Filosóficas. Já em Lisboa colaborou com, entre outras publicações, Batalha, Seara Nova e O Diabo. Em 1940 regressou a Cabo Verde, para exercer a docência no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente.

 

Embora hoje essa ligação pareça estar esquecida por alguns (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Claridade), foi membro destacado do movimento Claridade, que entre 1936 e 1966 editou em Cabo Verde nove números da revista homónima, sendo a sua obra extremamente admirada por outros elementos do movimento, como Manuel Ferreira e Baltasar Lopes (1907-1989).

 

O prestígio literário das suas exíguas publicações era tal que nem um crítico inequivocamente ligado ao regime salazarista, Amândio César (1921-1987), se coibiu de declarar em Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina (1971): "Em fins de 1971 saía dos prelos cabo-verdianos mais uma obra-prima do, para mim, maior ficcionista português contemporâneo: António Aurélio Gonçalves. E não atiro ao acaso esta afirmação. Porque, efectivamente, passando em revista os nossos maiores e mais representativos escritores, sua obra, no volume individual ou no conjunto, não supera as quatro noveletas que, em Cabo Verde, escreveu e publicou António Aurélio Gonçalves; por muito que pese ao brio dos escritores do espaço de língua portuguesa."

 

Os dois contos aqui reunidos, que, como já vimos, alguns também classificam de novelas, haviam já saído separadamente, em 1956 (Pródiga) e 1957, tendo o autor publicado, posteriormente, ainda na área da ficção, Noite de Vento (1970) e Virgens Loucas (1971). Juntamente com alguns destes volumes saíram também os contos A Consulta e História de Tempo Antigo. Postumamente, foram editados os volumes Recaída (1993) e Terra da Promissão (1998). Na área do ensaio publicara Aspectos da Ironia de Eça de Queirós (1937) e A Centelha – Cadernos de Estudo (1938), saindo postumamente o volume Ensaios e Outros Escritos (1998).

 

Pródiga é um conto cujo título claramente indica que o seu enredo se baseia na célebre parábola bíblica do regresso a casa do filho pródigo. Aqui é Xandinha que, depois de atravessar o purgatório de uma vida sofrida – um namoro contestado pela mãe, a gravidez que resulta num filho falecido pouco depois, a separação do pai desse filho com quem não chegara a casar, um abandono à vida fácil que marinheiros e outros homens proporcionavam às mulheres do Mindelo, regressa, ainda jovem, a casa de sua mãe, Nhâ Ludovina, e irmãs, Isabel e Augusta.

 

É também uma narrativa que traduz certo destino incontornável de algumas mulheres, pois Nhâ Ludovina havia sido mãe-solteira, tal como as suas filhas vieram a ser, sem que isso afecte a sua noção de família e unidade.

 

O conto O Enterro de Nhâ Candinha Sena desenvolve-se através da revisitação da infância como espaço de afecto e serve de leit-motiv para abordar a saída do arquipélago como uma inevitabilidade que acaba quase sempre por confluir para outra inevitabilidade – o saudoso regresso definitivo a Cabo Verde.

 

A aridez de alguns recantos da ilha e os aspectos quase insuportáveis do clima acabam por ser contrabalançados, aqui, por aquilo que de melhor o autor encontra em Cabo Verde – a vivacidade das personagens, o ambiente familiar, o convidativo enredar de todas as vidas, presentes e passadas, num inesquecível conjunto que surge como paradigma da perene vivacidade das gentes e memórias cabo-verdianas.

 

Para alguns aspectos e memórias da vida familiar de António Aurélio Gonçalves veja-se: http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/32688.html.

 

 

Do conto Pródiga transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Xandinha tinha chegado a um largozinho formado de terrenos vagos, de onde partiam as ruas de uma encruzilhada. Desviou-se para um beco, que vinha do Lombo-de-Trás a torcer-se em meandros escusos. Uma lâmpada debruçava-se sobre ela, vibrava o seu centro forte sobre o solo e batia cruamente as paredes opostas; depois, a sua luz atenuava-se numa degradação lenta, agonizava infindàvelmente no largo e, incerta, dormente, escorria por ruelas coleantes, enlividecia a aresta das esquinas, deixava planos cair na sombra; mais longe, à direita, um quadrante negro absorvia toda a claridade, ao passo que, para a esquerda, apanhava-se, recortada num pequeno quadrado, a vista da iluminação de uma rua transversal, e esta tomava o ar de um pequeno pano de fundo flamejando pretenciosamente debaixo de um foco intenso.

 

O vento passava com a sua farfalha incessante nos ouvidos de Xandinha. Não era fácil saber-se onde ia ele tomar impulso e força para estas arrancadas frenéticas, mas as lufadas impetuosas, duradoiras, pareciam baixar do nordeste, dos lados da Assomada do João d'Évora, da Salamança. Irrompiam do escuro, enrodilhavam-se como em novelos de cordas possantes e pareciam rodopiar no mesmo sítio com a rapidez de turbilhões antes de se lançarem definitivamente na sua fuga para o sul. O Lombo, assim escuro, ventoso e húmido, é triste. Quem passa não pára, não se ouve uma voz de rapariga, uma brincadeira de crianças, um arpejo de cavaquinho, portas e janelas fecham-se e uma ou outra luzinha brilha através de uma vidraça.

 

De face para o candeeiro, um grupinho encostava-se à parede, uns de pé, outros assentados, para fugir ao frio. Duas mulheres faziam o seu negócio e tinham tabuleiros à frente, com pão de milho, rebuçados de mel, açucrinha, etc. Dois rapazitos brincavam. A Benedita, negra de boa plástica, rapariga-de-vida bem conhecida no Lombo, silenciosa, fitava a rua. Todos se encolhiam, braços cruzados, procurando um agasalho para as mãos nuas e ninguém, a não ser os dois rapazitos que palravam, dizia palavra.

 

Xandinha aproximou-se dos tabuleiros e galhofou:

 

– Que é que vocês têm por aí, meninas? Que é que vocês me guardaram? Não me gaurdaram nada?

 

Uma das mulheres propôs-lhe:

 

– Compra-me um pãozinho de milho. Estão bonzinhos, menina. Queres? Dois tostões. Compra metade; só um tostão.

 

Xandinha debruçou-se a observar de perto os pães e, com a ponta dos dedos, tacteava-lhes a resistência:

 

– Agorinha assim, deu-me uma fraqueza na boca do estômago. Deveras! Ainda não jantei. Não me fias um, anh, Joana? Só até amanhã pela manhã. O teu dinheiro fica certo, menina. Podes estar descansada.

 

A Joana ajeitou os pães novamente no tabuleiro e, de cabeça baixa, resmungava:

 

– Minha filha, se fosse por fiado, fiava um a mim mesma. Vontade não falta."

 

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30.08.13

Luandino Vieira - Duas Histórias de Pequenos Burgueses


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

Linóleo de Luandino Vieira (n. 1935).


Luandino Vieira (pseudónimo de  José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), Duas Histórias de Pequenos Burgueses (1961).

 

Este conjunto de textos, publicado na Colecção Imbondeiro com um título sem qualquer relação com os dois contos apresentados – Inglês à Hora e O Sábado, As Raparigas e o Gato, apresenta duas narrativas datadas por Luandino Vieira de 2 de Julho de 1954 e 20 de Abril de 1955, respectivamente.

 

Segundo o autor, o título escolhido indiciaria "os momentos que atravessei e atravessaram os adolescentes da minha geração – melhor, da minha idade – perdidos nos quadros duma classe social cujas perspectivas já pressentiam ou sentiam ultrapassadas." Concluindo a sua introdução a este volume, Luandino Vieira declara – "O pequeno-burguês será, em breve, um animal pré-histórico."

 

Embora tal conceito remeta já para as posições que o autor haveria de desenvolver na sua obra mais célebre, Luuanda (1963), na continuidade de uma consciência idiossincrática de África com eventuais raízes num certo ideal social preconizado pelo grupo da Seara Nova e, posteriormente, pelo neo-realismo, estes contos abordam efectivamente a problemática da adolescência e da insegurança adolescente no seu relacionamento com o sexo oposto, evocando muita da temática que havia sido abordada por autores presencistas.

 

Luandino Vieira publicara até àquela data alguns dos seus textos em duas colectâneas – Contistas Angolanos (1960) e Poemas Angolanos (1961), havendo publicado anteriormente, também, o volume de contos A Cidade e a Infância (1954).

 

Residindo actualmente em Portugal, Luandino Vieira recusou em 2006 o prémio Camões, ano em que publicou o primeiro romance da anunciada trilogia De Rios Velhos e Guerrilheiros – O Livro dos Rios.

 

 

Do conto Inglês à Hora transcrevem-se os últimos parágrafos:

 

"Olhou-o. Notou um leve desprezo nos lábios dela. Mas porquê aquilo do marido? Estaria ela a fazer jogo claro, ou seria outra inconsciência?...

 

– Leia mais um bocadinho.

 

Ele recomeçou:

 

"I'm going to get out of this town" Nick said

 

"Yes" said George "That's a good thing to do"

 

Sim, o melhor é ir-me embora, senão perco a cabeça. Que quererá ela dizer com aquela conversa de marido? O meu marido... Era isso, oferecia e negava. Negava e oferecia. Era o seu jogo. Jogo um pouco perigoso porque oferecia tanto como negava.

 

– No próximo dia você tem outro conto: "The Devil and Daniel Webster".

 

Portanto, no próximo seria o Diabo... Ela olhava-o com o mesmo sorriso luminoso, trocista, cheio de sensualidade. Entreabriu os lábios, uns lábios grossos, sensuais. Fechou os olhos. Depois, abriu-os e sorriu. Ele não teve coragem... Mas talvez no próximo dia...

 

– ... "O Diabo e Daniel Webster" – disse ela.

 

Sim, o Diabo... Talvez o Diabo e Sr. Lima!

 

– Boa noite, Sr. Lima!

 

– Boa noite...

 

Os seus olhos ficaram espiando-se. Ela sorriu-lhe. Como ele ia ser feliz no estrangeiro!

 

Cá fora um negro bateu com o portão. Perto, na casa ao lado, o rádio atirava para o ar Al Martino e a sua voz de ouro...

 

"Here in my heart..."

 

Ele sumiu-se na sombra e ela ficou olhando a escuridão dos passos dele."

 

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