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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

20.04.22

Jorge Ferrão Cardoso - Caravana


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Jorge Ferrão Cardoso (datas desconhecidas), Caravana (1948).

Desenho da capa de Raúl Coelho (datas desconhecidas).

 

Tal como haveria de vir a suceder com o seu segundo livro, já aqui referido (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/ferrao-cardoso-terra-sol-e-aventura-23828), Terra, Sol e Aventura (1956), igualmente uma colectânea de contos, o presente volume incorpora dois contos cuja acção decorre em Trás-os-Montes – Vida Silenciosa e Entardecer Tranquilo, este último espacialmente localizado entre Carrazedo de Montenegro e Santa Maria de Émeres, e dois outros com cenários e enredos exóticos – Trono de Marfim e Doze Horas em Honolulu, verificando-se que apenas três dos seus doze contos apresentam referências africanas ao longo da acção – Do Diário de António Firmino, Mocambos ao Luar e Angústia.

 

Do conto intitulado Do Diário de António Firmino transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Há festa na senzala do lado de lá do rio. Os tambores sôam sincopadamente. No silêncio que nos envolve, aquele ruído surdo trás até nós algo de misterioso e ardente.

De cá, vemos brilhar as labaredas da fogueira. É um clarão avermelhado onde, esfumadas e imprecisas pela distância, se recortam silhuetas negras, trementes de sensualidade na dança erótica.

Os meus ganguelas, anichados em redor do fôgo, fitam sonolentamente o clarão longínquo e quedam-se num  mutismo que tem algo de feroz e primevo.

Mais tarde, um deles fala. Murmura imperceptìvelmente. Conta a história de «Saleia, a pantera», a mesma lenda que escutei numa noite de sangue, no Baixo-Cuito.

«... Saleia veio, de noite, do alto da montanha e roçou a planície. Malala, o feiticeiro, deu a sua carne seca na penúltima hora escura e agora que Saleia tinha provado sangue humano, os seus rugidos eram mais fortes e mais próximos, e os seus olhos brilhavam contìnuamente por  entre os troncos da floresta.

Naquela noite Bangu teve festa. Pela anhara imensa veio gente dos outros povos, e a sagrada fogueira iluminou a senzala.

O batuque durou toda a noite. A capata toldou os espíritos, e o pirão com belos «condutos» alimentou os corpos negros, estuantes de sensualidade.

O som cavo dos tambores num ritmo bárbaro ecoava pela selva, e lá longe, nos outros povos, a gente velha escutava e dizia: «Ouvi! Há festa em Bangu!»

Na penúltima hora da noite, Malala tomou o fogo que havia de incendiar a anhara. Ele invocou Saleia, a deusa do Fogo, e correu para o mato. Quando na planície se começaram a erguer chamas rubras, Malala caiu morto. Todos tinham visto que a pantera enfrentara o fogo. Ela era a Deusa! Acaso teme o fogo o próprio fogo? Era Saleia! Saleia, a deusa! 

Saleia voltou depois, durante muitas noites. Ela gostava de Bangu, e da selva próxima os seus rugidos vibravam no ar e chegavam até à senzala. A Deusa queria carne! Desde que provara sangue humano, todas as noites os seus urros sequiosos acordavam Bangu...»

Não ouço o fim da história. é como se outro ser estivesse  dentro do meu, roubando-me o sossego. Aqueles ganguelas ingénuos contam sucessos raros, e eu, embora seja mais culto do que eles, não consigo apreender todo o sentido de tão estranhas narrações. Sinto-me como se não tivesse pátria!"

 

© Blog da Rua Nove

21.10.16

Castro Soromenho - A Maravilhosa Viagem


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Castro Soromenho (1910-1968), A Maravilhosa Viagem (1961).

 

 

Da Primeira Parte, Capítulo Quarto, transcrevem-se três parágrafos:

 

"Vieram do Bailundo distante os primeiros homens que viveram nestas terras com o nome tribal de Sambos. Mas há mais de dois séculos que aqui vieram parar os Nhembas. O seu chefe edificou cubatas no alto de um outeiro, no meio de vasta planície cruzada por rios e riachos. Eram oleiros e viviam da sua indústria, mas também criavam gado e lavravam terras ribeirinhas. Um dia, guerreiros Bailundos, fugidos à ira do seu soba que, mesmo depois de lhes ter morto o chefe, não cessava de os perseguir, pararam no sopé do outeiro e intimaram os Nhembas a abandonarem a aldeia, porque esse lugar só podia ser morada de fidalgos, deles que eram filhos do chefe Sambo, morto na guerra. Medrosos, os pacíficos Nhembas desceram o monte e nesse dia os atabaques dos filhos do Sambo tocaram aos ventos altos da aldeia abandonada, e o povo fugitivo dançou o batuque dos mortos, para que a alma de sambo descansasse em paz.

 

Eram seis os filhos do soba Sambo, cinco rapazes, caçadores de elefantes e hipopótamos, e a moça Alemba, que os irmãos escolheram para rainha. Ali, ela fundou a libata e deu ao país conquistado sem sangue o nome de seu pai Sambo. Tempos depois, Alemba casou com um caçador Ganguela que ousara levantar o fogo das caçadas na planície do Sambos e depois agasalhara na aldeia do outeiro para nunca mais de lá sair, preso nos braços da dona da terra. Seguindo os passos desse jovem caçador, muitos Ganguelas seus amigos vieram morar no país do Sambo e nunca mais regressaram à terra de além Cubango. De outra banda, vieram guerreiros Galangues que trouxeram de presente a Alemba punhados de terra branca, que «é o símbolo da vida e preserva da morte». Ganguelas, Galangues e Sambos cruzaram-se entre si.

 

Alemba morreu de velha, mas ficou viva para sempre na memória e na saudade do seu povo. E treze sobas reinaram no país que ela fundou. Os filhos do último chefe foram educados numa missão católica e ganharam como baptismo nomes europeus. Mas não esqueceram os velhos deuses africanos. E nos momentos de desgraça, é para eles que se voltam, implorando aos «espíritos bons» que intercedam em seu favor junto desses deuses. E sempre que o soba encontra na libata uma serpente, o povo dá-se em sacrifício aos deuses, porque é a alma de Alemba que voltou à terra no corpo da serpente para exigir sacrifícios humanos. Então, os Sambos adoram a serpente. Corre o sangue do sacrificado e a serpente desaparece – e a alma de Alemba regressa ao seu mundo misterioso... O povo baila doidamente nos fadáros dos batuques e cantam-se velhas canções em louvor de Alemba, que é a alma do próprio povo... E a paz desce de novo sobre a terra que recebeu o sacrifício de sangue."

 

© Blog da Rua Nove

 

02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

© Blog da Rua Nove