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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

23.04.10

Leonel Cosme - A Dúvida


blogdaruanove

 

 

Leonel Cosme (n. 1934), A Dúvida (1961).

Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

"O zumbido das asas de milhões de insectos começava a encher os ares. Os primeiros elementos da guarda-avançada investiram contra o fumo e foram bater ruidosamente de encontro às pessoas. A nuvem volante encobriu o Sol e um banho frio de sombra caiu sobre a terra.

 

– Peguem fogo ao capim! – gritou o padre, algures, entre a fumarada.

 

O médico levou as mãos à cara, protegendo a vista da chuva de gafanhotos que se despenhava furiosamente contra o solo. As crianças choraram. Supondo inúteis todos os esforços para invalidar o ataque, Carlos Melo lançou-se para as bandas da represa, donde lhe parecera terem vindo os gemidos dos garotos. A invasão processava-se em toda a forma, deixando na terra um tapete viscoso e movediço.

 

– As crianças para casa! – conseguiu dizer, antes de parar, esgotado, no meio do vendaval.

 

A barreira de fumo adensava-se à sua volta. Encontrou-se isolado entre o negrume. Entreabriu os dedos com que protegia os olhos dos golpes dos insectos, calculou o caminho e quis romper a cortina de metralha viva, em vão. O fumo invadiu-lhe os pulmões, a vista marejou-se-lhe de lágrimas ardentes.

 

– Dotor! Dotor!

 

Ouviu o chamamento e, num supremo esforço, atirou-se para a frente, ao acaso, agarrando desvairadamente a garganta em brasa. Não podia mais. Os pés recusaram-se-lhe, atolados na massa oleosa e lamacenta que inundara o terreno. Alguém abrira a comporta da represa. De repente, assistido por um pensamento único, deixou-se cair e mergulhou a cara no chão inundado, sorvendo àvidamente a humidade.

 

– Dotor! Estou a vê-lo! Avance! Um pouco mais!... Mais!... Mais!...

 

Ergueu-se, cambaleante, e tentou um último arranco. Ganhara alguns metros. Sentiu um braço enroscar-se-lhe na cintura e uma mão puxando-o pelos ombros. O piso tornou-se firme, pôde respirar."

 

© Blog da Rua Nove

14.02.10

Eduardo Teófilo - Cacimbo em Angola


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Eduardo Teófilo (1923-1980), Cacimbo em Angola (1966).

 

Tal como aconteceu com muitos dos autores que nasceram na então metrópole, e posteriormente se deslocaram para África, Eduardo Teófilo iniciou a sua carreira literária com textos cujas temáticas reflectiam essas origens.

 

Sendo essencialmente poeta e ficcionista, o autor começou, contudo, por publicar um conjunto de crónicas sob o título Alentejo não tem Sombra (1954), a que se seguiu o volume de poemas Vida ou Pecado (1955). Já em Angola, onde chegara em 1954, Eduardo Teófilo lançou o seu primeiro volume de contos, Estrelas da Noite Escura (1958), sob a égide das Publicações Imbondeiro, que aliás editaram posteriormente os seus contos Tempestade (1960) e O Regresso do Emigrante (1961). O autor publicara entretanto a colectânea de contos Quando o Dia Chegar (1962), que recebera o prémio Fialho de Almeida, concluindo a sua produção como contista com o volume Contos Velhos (1971). A sua produção poética veio a incluir ainda Primeiro Livro de Horas (1964).

 

Apesar da longa estadia em África (1954-1975), Eduardo Teófilo não reproduziu exclusivamente essa experiência na maior parte da sua obra escrita no continente africano. Cacimbo em Angola, um conjunto de "notas, contos, crónicas e narrativas" de acordo com a classificação do próprio autor, surge com um livro de conteúdo obviamente heterogéneo. Aí se publicam contos dos anos 50 e republicam narrativas de anos posteriores, entretanto saídas nas publicações Imbondeiro. Aí surgem também informações e reflexões importantes sobre a colecção Imbondeiro, os seus dinamizadores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (n. 1934), e as vicissitudes que entretanto afectaram a editora. Aí surgem, finalmente, extraordinárias e inesperadas considerações, como aquelas que encontramos na "nota" Missão Sagrada – "Já quase deixei de ler jornais, quer nossos quer dos outros. A Rádio, já a não escuto. (...) E são páginas exaltadas dos nacionalismos de uns, cheirando a neo-fascismo odiento, ou frases empoladas de um marxismo ortodoxo, ultrapassadas e que já não convencem, palavras que mais cavam os abismos fundos, abertos, a dividir os homens, que mais acendem ódios, em lugar de unir e empolgar."

 

 

 

© Blog da Rua Nove