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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

11.03.16

A Mulher e a Sensibilidade Portuguesa (I)


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Capa de Gracinda Candeias (n. 1947).

 

A Mulher e a Sensibilidade Portuguesa (1970).

 

Antologia organizada por Ivone Maria Gabriel Pinheiro da Silva (datas desconhecidas) e publicada em Luanda, no ano de 1970 (embora o cólofon registe Julho de 1971), pelo Comissariado Provincial da Mocidade Portuguesa Feminina.

 

Com 816 páginas, este volume apresenta um conjunto de prosa e poesia de inúmeros autores de língua portuguesa, incluindo escritores de Angola, Cabo Verde, Índia (Goa), Moçambique, S. Tomé e Príncipe e Timor.

 

Apresenta ainda dezenas de ilustrações, gravuras e fotografias, entre as quais surgem reproduzidas pinturas de diversos artistas europeus, bem como obras dos pintores angolanos Gracinda Candeias e Neves e Sousa (1921-1995).

 

Transcrevem-se hoje dois poemas desta colectânea, um de Alda do Espírito Santo (1926-2010), de São Tomé, intitulado Lá no Água Grande, outro de Mário de Oliveira (1934-1989), de Angola, intitulado "Água Grande".

 

 

LÁ NO ÁGUA GRANDE

 

Lá no "Água Grande" a caminho da roça

Negritas batem que batem co'a roupa na pedra.

Batem e cantam modinhas da terra.

 

Cantam e riem em riso de mofa

Histórias contadas, arrastadas pelo vento.

 

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra

E põem de branco a roupa lavada.

 

As crianças brincam e a água canta.

Brincam na água felizes...

Velam no capim um negrito pequenito.

 

E os gemidos cantados das negritas lá do rio

Ficam mudos lá na hora do regresso...

Jazem quedos no regresso para a roça.

 

Óleo de Neves e Sousa.

 

 

"ÁGUA GRANDE"

 

Nas águas do "água-grande",

Onde coqueiros balanceiam,

Lavam as lavadeiras

Que contam tristes histórias

do vento e da "gravana"

Enquanto seus filhos brincam

Nas águas do "água-grande"

Que passam e limpam tudo,

Até confissões de dor...

 

E as lavadeiras lavam sempre,

Cantando no "água-grande",

Suas ilusões de amor.

 

© Blog da Rua Nove

30.04.15

Reis Ventura - Cidade e Muceque


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  Capa de Haydée Moniz (datas desconhecidas).

 

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade e Muceque (1970).

 

Apresentando sete contos – O Homem das Sete Caras, Um Negócio bem Montado, Gente do Subúrbio, A Estalagem do Leão, O Cadillac, O Velho Bernardo, Tschimolonga, Carabina de Precisão e Olhos Assustados, este volume retoma ficcionalmente a temática dos trágicos acontecimentos de 1961 que o autor já havia tratado em Sangue no Capim (1962).

 

Esta abordagem é, aliás, explicitada nos textos que compõem as badanas, onde fica também evidente o compromisso ideológico do autor, a sua defesa do regime, e o orgulho perante a dinâmica civilizacional portuguesa implementada em Angola, como se constata nas seguintes passagens:

 

"A Luanda destes contos é a da década de sessenta, que já vai no meio milhão de habitantes, e já ergue prédios com mais de vinte andares, e já nos mostra um tráfego automóvel semelhante ao de Lisboa ou Porto, e já por vezes reune, na placa de estacionamento do seu aeroporto, quatro ou cinco grandes jactos intercontinentais. Esta é a Luanda de hoje, toda ela uma orgulhosa resposta ao desafio do terrorismo.

 

Por isso mesmo, insensìvelmente, sem um plano preconcebido nem uma prévia selecção de assuntos, todos os contos deste livro, menos um, são directa ou indirectamente relacionados com os acontecimentos e consequências da agressão cometida contra Angola."

 

Apesar de tudo, Reis Ventura não deixa de manifestar ainda uma certa preocupação humanitária e de preconizar uma particular ideia de convívio e irmandade anti-racista, particularmente no conto Olhos Assustados, onde se evocam alguns contornos das chacinas de 1961 e a variante de um episódio já narrado em Sangue no Capim.

 

Já nos contos O Velho Bernardo e Tschimolonga surgem retratos da aculturação dos autóctones de raça negra, que se assumem como contraponto aos denominados matumbos, por um lado, e, por outro, aos terroristas.

 

Mas é no conto Carabina de Precisão, de que se transcrevem abaixo alguns parágrafos, que se desenvolve a mais complexa e expressiva tensão interior em uma única personagem, através da narrativa de uma situação de combate, contexto que até então apenas tinha tido equivalente, na literatura colonial portuguesa deste período, em Aquelas Longas Horas (1968), de Manuel Barão da Cunha. 

 

"Assim se agitava na teia complicada dos seus amargos pensamentos, quando reparou que o combate já durava tempo demais. Normalmente ele dava o primeiro tiro, sempre que a patrulha portuguesa vinha ao nível de pelotão. O bando disparava então todas as suas armas e fugia logo, pois todos sabiam que os soldados portugueses eram rápidos e implacáveis na resposta.

 

Mas, agora, o combate ainda durava. E ao crepitar das metralhadoras, juntava-se, de vez em quando, o sopro ardente das bazucadas.

 

Com o seu instinto de bom soldado, o homem da carabina de precisão regressou de repente à consciência do perigo circundante. Apurou o olhar em redondo e apercebeu-se de que algo de especial estava a acontecer. O seu bando não fugira porque estava cercado. Os emboscados afinal eram eles.

 

Com infinita cautela, passando de ramo em ramo com a silenciosa agilidade dum gato selvagem, espreitou para todos os lados, com aquela agudeza visual que era uma das suas melhores qualidades de combatente. E teve um sobressalto ao concluir que havia, no cerco aos terroristas, mais de um pelotão. Sentiu na água dos olhos e no tutano dos ossos o álgido frio do medo à morte. Porque ele também estava dentro do cerco e sabia que os portugueses o procuravam há longos meses, para lhe cobrar o preço dos alferes abatidos. E verificava que ele e o seu bando, cujo comando aliaz lhe não pertencia, (os grandes cabecilhas do terrorismo não estavam bem seguros dele, porque ninguém confia muito num desertor, não é?...) – verificava agora que ele e o seu bando tinham de se haver com dois pelotões, talvez com uma companhia inteira.

 

Então havia, pelo menos, mais dois alferes.

 

Retezou os músculos, como a hiena que prepara o salto, e pôs-se à procura dos oficiais. Da sua posição elevada pode confirmar que um segundo pelotão avançava do lado contrário à picada, vindo do interior da mata. E pronto! – lá começava o fogo de morteiro...

 

Compreendeu que o seu bando estava fechado num círculo de fogo. E não se esquecia de que a tropa portuguesa sabia fazer as coisas... Se fosse o comandante do bando, teria ordenado o «salve-se quem puder!» Mas não era o comandante do bando. Nunca lhe tinham confiado o comando dum grupo de combate. Era apenas um atirador de pontaria infalível, com uma carabina de precisão..."

 

© Blog da Rua Nove

25.11.13

Reis Ventura - Cidade Alta


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Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade Alta (1958).

 

Segundo volume de uma trilogia romanesca que, na senda de modelos oitocentistas e queirosianos, se agrupava sob a designação "Cenas da Vida em Luanda", este romance havia sido publicado inicialmente sob o formato de folhetim no jornal diário "a província de Angola", estrutura que se reflecte na significativa quantidade de capítulos desta obra, trinta e seis, os quais apresentam ainda subtítulos, bem com na brevidade de cada um deles.

 

Seguindo uma habitual trama de intriga e maledicência, romance e crime, esta obra traça, apesar de tudo, um certo retrato optimista da sociedade luandense das décadas de 1940 e 1950.

 

Recorrendo frequentemente à citação de datas específicas, como 23 de Julho de 1954, dia da ocupação do enclave indiano de Dadrá (cf. http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/17627.html), ou 13 de Maio de 1955, dia do anúncio oficial da primeira descoberta rentável de petróleo em Angola, o autor parece procurar conferir à sua narrativa uma verosimilhança que a aproxime dos modelos realistas do século XIX.

 

Contudo, nesta obra em particular, tal aproximação traduz uma visão da sociedade angolana que se restringe quase exclusivamente à população branca, embora haja um breve formulação da problemática social e afectiva com que se defrontam mestiços e mulatos, na personagem do dr. Valadim, filho de pai incógnito e de uma "mulata-cabrita da Gabela", filha do Tenente Valadim.

 

Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos deste romance:

 

"Na lenta evolução da cidade de Luanda, que só recentemente, com a euforia do café, ganhou um ritmo mais rápido que o da maior parte das cidades europeias, têm aparecido cenáculos, localmente celebrados e temidos.

 

Primeiro foi o «Clube dos Pés Frios», na Cervejaria «Biker», assim chamado porque dele participavam veneráveis senhores de idade, todos com uma língua de prata, mais corrosiva que o ácido prússico.

 

Depois nasceu o «Canal de Moçambique», à sombra alcoviteira dessa mulemba da «Portugália», tão robusta e respeitável que tem resistido à sanha arboricida de centenas de vereações municipais. Também ali se passou a pente fino a vida citadina. E até os governadores se interessavam em saber como se comentava, no «Canal de Moçambique», o último Diploma Legislativo ou a mais recente discussão no Conselho do Governo.

 

Últimamente surgiu o grupinho do «Polo Norte». Dom José de Monte-Santo chama-lhe a «esquina do pecado».

 

La se reunem, pela tardinha, uns moços das redacções dos jornais e das tertúlias artísticas, lançando olhares vorazes às mulheres que passam e comentando os acontecimentos locais, com uma irreverência só comparável ao escândalo do «rock and roll». E assim como nos saltos acrobáticos da dança endiabrada, as moças histéricas revelam as mais íntimas fímbrias das suas rendadas calcinhas, assim nesse grupo de candidatos a uma esquiva ironia, não há véus de conveniências nem preconceitos sociais que escapem ao rasgão repulsivo ou à tesourada vingativa.

 

São uns demolidores terríveis, quase todos com a desculpa da mocidade e alguns com a ressalva do talento. Dizem muitas asneiras e algumas verdades como punhos. Preferem aplaudir uma imbecilidade nova a perfilhar uma genialidade velha. Odeiam cordialmente o antigo. São a gente nova com todos os seus defeitos e com todas as suas qualidades. Dão-se generosamente ao paradoxo e ao sarcasmo, com abomináveis concessões à risota fácil e à chalaça grosseira.

 

Na sua adoração do moderno, acontece às vezes iludirem-se e reeditarem, como novas, velhas coisas do tempo dos faraós. Mas fazem-no com uma grande sinceridade e com uma inconsciência enternecedora."



"O Saraiva declarou que abundava nas mesmas ideias (de repetir o peru) e aproveitou para contar a sua conversa com o Fraga.


– Eu chuchei com o homem – mas, aqui para nós, dou-lhe razão. Três contos não é vencimento que se pague, nos tempos que correm...


– O funcionalismo ganha pouco, para o que precisa; mas ainda ganha demais, para o que faz – sintetizou o Pedralva, sarcástico.


E logo o eng. Soutello atalhou que nem era justo generalizar a apreciação merecida por alguns calaceiros, nem lhe parecia sensato fazer espírito com um problema sério.


– A insuficiência dos vencimentos dos funcionários – explicou – arrasta consigo o nível geral dos salários em Angola. Resultado: o aviltamento do valor do trabalho humano, com todo o seu cortejo de misérias materiais e morais. Porque é fundamentalmente injusto que o trabalho honesto de um homem não pague uma vida decente do agregado familiar...


– É essa a doutrina do grande Leão XIII! –ajudou o senhor cónego Salema.


– A política dos salários baixos não só é cruel e anti-cristã – ponderou o dr. Almada – é também prejudicial ao desenvolvimento económico, na medida em que entrava a movimentação da riqueza. E o pequeno movimento comercial conduz fatalmente aos preços altos...


– Altíssimos! – reforçou a D. Esmeralda. – O sr. dr. Valadim já provou os croquetes? Olhe que foram feitos pela Ri..."

 

© Blog da Rua Nove

23.09.13

Eugénio Ferreira da Silva - Arco-Íris


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Eugénio Ferreira da Silva (1917-), Arco-Íris (1962).

 

Formado na área de Belas-Artes, Eugénio Ferreira da Silva integrou as equipas de escultores que intervieram na Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa  no ano de 1940, trabalhando sob a direcção dos conhecidos escultores João Fragoso (1913-2000) e Vasco Pereira da Conceição (1914-1992).

 

Executou também, no campo da escultura, o monumento ao padre Agostinho Antunes de Azevedo (1876-1933), erigido em Vila do Conde, e os trabalhos em bronze do antigo café Palladium, em Lisboa.

 

Embora tenha colaborado com diversos órgãos da imprensa regional da então denominada Metrópole, foi este volume o seu primeiro trabalho publicado na área da literatura, sendo também o único livro seu de que parece haver registo.

 

Ao longo dos textos de todo este volume perpassa uma sólida linha traçada por uma educação de índole cristã paradoxalmente combinada com um latente paganismo e animismo de tradição africana.

 

Ocorre ainda, no conjunto formal e conceptualmente conservador desta poesia, a inusitada heterodoxia do poema intitulado Batuque na Sanzala, onde uma exclusiva composição onomatopaica remete quer para o primeiro modernismo português quer para as composições de inspiração dadaísta.

 

Transcreve-se deste volume o poema Folclore Enfeitiçado:

 

"Casas velhas dos Muceques

 tão cheias de pitoresco...

 feito de assombros, profundo...

 Beleza que de outro mundo

 ali decora o coqueiro...

 Divertimento fagueiro,

 na gíria dos seus «moleques»,

 a ver quem os trepa primeiro...

 O exótico imbondeiro,

 com os seus tortuosos braços,

 lembrava a angústia e os cansaços

 de úberes ventres de Terra... 

 No terreiro a petisada

 tão ranhenta e barriguda...

 Gritos de jaspe a sorrir

 abrindo a boca carnuda...

 

 .......................................................

 .......................................................

 

 Buscas alguém em Luanda?!

 Alguém que tu não descubras?...

 Então não vás à Mutamba,

 não vás à Maianga,

 não vás à Angambota...

 mas vai à Chicala!...

 Procura-o que encontras,

 ouvindo um batuque

 na velha sanzala

 do querido Muceques [sic] ...

 Muceques das quitandeiras,

 das lindas «Acácias Rubras»...

 dos coqueiros expressivos

 dançando «Trópico» aos ventos...

 E que soberbos lamentos

 deixa ali a ventania...

 A velha negra tirando

 fumaças do seu cachimbo...

 Um velho de «Capolana»

 com receio do cacimbo...

 Oh meu antigo Muceques [sic]!

 Oh folclore de Luanda;

 Oh Mouraria africana,

 trago-vos no coração!...

 Desde as negrinhas Cafekos,

 negras de veste escarlata...

 Da carpideira à mulata

 a esses travessos moleques."

 

© Blog da Rua Nove

05.04.10

Reis Ventura - Filha de Branco


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Reis Ventura (1910-1988), Filha de Branco (1960).

Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Romance que completa uma trilogia de Reis Ventura – Cenas da Vida de [em; cf. citação abaixo] Luanda, que inclui as obras Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958), para além do presente título, e antecede o ciclo das suas narrativas que já traduzem a realidade da luta pela independência, Filha de Branco é um retrato politicamente engajado e datado, mas notável, da mestiçagem, da vida nos bairros limítrofes de Luanda e do crescimento da cidade, entre as décadas de 1920 e 1950.

 

Tão significativa e expressiva como esse retrato é a introdução que o autor faz ao romance e que por isso se transcreve abaixo, quase na íntegra. Para uma breve apreciação genérica da obra de Reis Ventura ver http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/431.html e para referências particulares a outras obras ver A Grei (1941), http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/5206.html, e Engrenagens Malditas (1964), http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/10891.html.

 

"Com este romance, fecha-se o tríptico literário de cenas da vida em Luanda. Em 'Quatro contos por mês' esbocei figuras da classe média. Em 'Cidade Alta', tentei dar uma imagem da gente grada, com as suas virtudes e  vícios. Mas a parte mais original da cidade é a vasta área dos muceques. S. Paulo, Vila Clotilde, Muceque Rangel, Casa Branca – um formigueiro humano em que caldeia a Angola do futuro.

 

Existe um centro nervoso desta zona de contrastes: a Rua de S. Paulo. Ainda não é bem cidade; e já não pode chamar-se muceque. Há por ali lavadeiras pretas aposentadas, com casa arrendada ao branco. Mas quando reclamam a renda atrazada, tratam o inquilino por 'patrão'...

 

Bairros de transição, cheios de pitoresco e de imprevisto. Enorme lagar onde fermenta o país luso-tropical do porvir. Cubatas de adobe ao lado de vivendas modernas. Lojas do tempo da borracha e altos prédios de cimento armado. O branco fura-vidas, o preto civilizado, o calcinhas presumido, o mestiço e os seus complexos. A ronda dos esfomeados sexuais. A prostituição de várias cores. A luta pela vida. Tudo numa natural fusão das raças. Brancos e pretos na mesma rua, à mesma mesa, na mesma cama. – Uma ponte entre a cidade e o sertão. 

 

Larga e acolhedora ponte, aberta a todos os matizes de cor, a todos os graus de civilização e a todos os vícios e virtudes do homem. Ganância, coragem, iniciativa, lealdade, luxúria, egoísmo e crime. Um formidável cadinho humano!"

 

 

"Filha de branco, esta Luanda dos Muceques é uma estranha mistura de arraial minhoto e de batuque de sanzala, de mercado indígena e de feira algarvia. No seu panorama humano, juntam-se o rufia de Lisboa, o taberneiro da Beira, o preto da Liga Africana e o filho do antigo guerreiro dembo, que veio servir na casa do branco, trazendo uma medalha, que lhe deu o missionário, e uma tatuagem que lhe fez o feiticeiro...

 

Por entre os adultos, a população infantil acusa o progresso da fusão racial: crianças pretas, quase nuas, com umbigos do tamanho de nozes e garotos brancos, quase nus, de pele tostada pela ardência do sol – todos juntos, brincando com a areia das ruas sem asfalto, baptizados na mesma igreja, frequentando a mesma escola.

 

Pelas soleiras das portas, nos dois ou três degraus que sobem para as cubatas, velhas quitandeiras, catando os netos; nas ruas, moças bem torneadas, espreitando o homem; funcionários negros aposentados, gastando o tempo. Nos botequins e tabernas, rapazolas olheirudos, rentando a fêmea; 'bimbos' recém-chegados da Metrópole, à cata de emprego; mulatas donairosas, bamboleando os quadris; colonos do interior, discutindo negócios. Por toda a parte, a chusma preta, lidando ou preguiçando: contínuos, lavadeiras, criados, operários, cambuladores...

 

Balcões enodoados de vinho vendido a copo. Montras com panos garridos e quinquilharias vistosas. O grazinar constante das bicicletas motorizadas, a música alta dos rádios, o barulho insolente das carrinhas sonoras. De longe em longe, um polícia paternal e bonacheirão, com um pistolão que nunca sai do coldre.

 

E comércio, comércio, comércio! Uma taberna a cada esquina. Lojas a todo o correr das ruas. O branco atento às predilecções do preto. Os descendentes dos decobridores, servindo os netos dos antigo sobas rebeldes. O vinho alegre do Douro, embebedando pescadores da Ilha ou estivadores do porto. Mãos que arremessaram azagaias ou manejam a catana, agarradas a copos fabricados em Leiria. Velhos europeus das colunas de João de Almeida, aviando fregueses que lutaram na tropa fandanga do Caculo Caenda.

 

Zona de contínua fermentação. Excitante como um vinho mosto! Ambiciosa como rapariga mestiça, que tem no sangue a turbulência dos batuques, mas só quer um branco.

 

Filha de branco, que ficou só, e de preta que não quis resistir..."

 

 

© Blog da Rua Nove

19.03.10

Reis Ventura - Engrenagens Malditas


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Capa de António Lino (1914-1996).

 

Reis Ventura (1910-1988), Engrenagens Malditas (1964; o cólofon indica que acabou de se imprimir em Fevereiro de 1965).

 

Com este romance, Reis Ventura inicia um percurso que se afasta da literatura com espaços narrativos exclusivamente centrados em África e em Angola, característica da sua produção do final da década anterior e do início da década de 1960.

 

Primeira obra ficcional do autor publicada depois do início da guerra colonial, procura traduzir uma reflexão sobre as engrenagens que levaram ao estabelecimento de uma nova ordem mundial, e a um reequilíbrio de poderes, após a II Guerra Mundial.

 

O próprio texto introdutório da obra reconhece ser esta uma obra de viragem no percurso do autor, ao afirmar – "Reis Ventura inicia, com este romance, uma nova incidência da sua actividade literária."

 

É de facto uma nova incidência, que marca uma ruptura com a anterior homogeneidade e qualidade literária da sua obra.

 

Ao lançar como protagonista do romance um jornalista angolano que relata as suas deslocações pelo mundo e regista as suas reflexões sobre as engrenagens malditas da política e da sociedade, que poderão estar na origem das sublevações em Angola, e no mundo, Reis Ventura perde-se num romance que aspira colocar demasiadas questões.

 

Do mesmo modo perde também a espontaneidade e harmonia de outras obras anteriores, prefigurando o exemplo do romance de antecipação Um Homem de Outro Mundo, também ele um livro onde o talento anteriormente demonstrado pelo autor se dispersa e perde.

 

Com Engrenagens Malditas, Reis Ventura obteve, na sua edição de 1965, o prémio Fernão Mendes Pinto da Agência Geral do Ultramar.

 

Transcreve-se de seguida um pequeno excerto do romance:

 

"Nos escritórios da grande cadeia de jornais, instalados num décimo-quinto andar, não muito longe do Palácio de Vidro, o "ovo cósmico", como todos chamávamos ao nosso espertíssimo e calvíssimo administrador-delegado, desceu os pés da borda da secretária, estendeu-me apressadamente a mão bem tratada e convidou-me a entrar para o compartimento imediato, que era a sala das sessões. Na sala das sessões estavam todos os restantes membros do conselho de administração, menos o Presidente, que andava de visita à Alemanha Ocidental.

Era um grupo notável. Incluía o gordo Stevens, que tinha poços de  petróleo no Texas, o magríssimo Harold, considerado o melhor causídico de Nova Iorque, o melífluo Vaganou, de origem francesa, e o tonitroante Vaterplatz, nascido de emigrantes prussianos e agora dono da mais moderna aciaria do Ohio.

– Então a coisa começou em Angola? – disparou Stevens sem mais preâmbulos. – Conte-nos os factos.

– Há pouco para contar – respondi, surpreendido com a seriedade daquela conferência. E em meia dúzia de palavras, relatei-lhes o assalto de 4 de Fevereiro e o motim do Cemitério Novo.

– Muita tropa, em Luanda? – fez Vaganou displicentemente, enquanto acendia um dos seus caros charutos.

– Quase nenhuma. E a pequena guarnição de Luanda é constituída quase só por nativos.

– Hé! hé! hé!... – gargalhou ruidosamente Vaterplatz. – Os seus compatriotas são um pouco inconscientes, não são?...

– Os portugueses não se assustam com pouco – retorquiu [sic] serenamente. – Estão em África há vários séculos...

– Respeito o seu brio nacional – sussurrou Harold, com aquele ar tímido com que gostava de iniciar as suas grandes tiradas forenses. – Mas receio que os portugueses não estejam por muito mais tempo em Angola... Julgo até que muitos deles já o compreenderam. Parece que há pânico em Luanda...

– Não há pânico em Luanda e ninguém pensa em abandonar Angola! – afirmei, vincando bem as palavras. – Os últimos acontecimentos são destituídos de qualquer importância e não afectaram o moral das populações."

 

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11.03.10

Reis Ventura - A Grei


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Reis Ventura (1910-1988), A Grei (1941)

Capa de Rui Vieira da Costa (datas desconhecidas)

 

Reis Ventura esteve involuntariamente envolvido em 1934 numa célebre polémica sobre galardões literários, quando o seu livro A Romaria (que assinou como Vasco Reis) obteve o prémio Antero de Quental do SPN. Inicialmente, a obra de um outro escritor tinha sido preterida e, aparentemente, só a intervenção pessoal do director do SPN, António Ferro (1895-1956), apaziguou o clima de contestação que se gerou – através da sua intervenção, nesse ano foram concedidos, excepcionalmente, dois galardões ex-aequo. O livro preterido tinha sido Mensagem, de Fernando Pessoa (1888-1935).

 

Tendo abandonado a vocação sacerdotal na década de 1930, Reis Ventura fixou-se em Luanda, Angola, onde veio a publicar o seu segundo livro, A Grei (cuja edição refundida receberia em 1964 o título Soldado que Vais à Guerra). Embora nas suas obras iniciais tenha evidenciado preferência pela poesia e pela realidade portuguesa da então metrópole, Reis Ventura notabilizou-se pela escrita em prosa que retratou a realidade angolana da época, nomeadamente através da colectânea de narrativas Sangue no Capim (1962 e 1963), da colectânea de contos Cidade e Muceque (1970), e dos romances Quatro Contos por Mês (1955), Fazenda Abandonada (1965), Caminhos (1965) e Engrenagens Malditas (1965), entre outros. Publicou também um romance de ficção científica, Um Homem de Outro Mundo (1968), em que o protagonista, Thull, um ser do planeta Mil, efectua um périplo pela Terra depois de aterrar nos arredores de Luanda.

 

Escritor cuja produção foi sempre conotada com a defesa do Estado Novo e do regime colonial, Reis Ventura é actualmente um autor marginalizado e esquecido, tanto em Angola como em Portugal. De A Grei, uma elegia ao povo, como o título deixa transparecer, transcrevem-se as três primeiras estrofes:

 

 

   "Primeira Parte – Friso de Almas

 

 

 

    O Ti-Zé

 

 

    Os seus olhos são olhos portugueses,

    duma clara viveza e formosura;

    olhar firme e leal, de tam afeito

    a olhar sempre a direito

    a vida

    tantas vezes

    batida

    pelas vagas da amargura...

 

 

    Olhos de português – olhos de artista,

    de terem sempre à vista

    essa beleza

    da Virgem-Natureza,

    suave, e doce, e meiga como a lua;

    essa carne da terra

    que, no seu ventre, encerra,

    a vida forte e  bela, verdadeira e nua;

    e, em frémitos de amor,

    é bondade que alegra

    a face duma pedra

    e o cálix perfumado duma flor...

 

 

    – Olhos de português... as mãos bem calejadas,

    feridas ao contacto das enxadas,

    são as mais dignas, preciosas, mãos

    de todos nós, irmãos

    pela alma imortal, dentro do ser

    da nossa humanidade;

    são as mãos do trabalho, as virgens da bondade,

    as mais puras e dignas de viver..."

 

 

© Blog da Rua Nove