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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

01.11.16

Orlando da Costa - Sem Flores Nem Coroas


blogdaruanove

 

Orlando da Costa (1929-2006), Sem Flores Nem Coroas (1971).

 

Do II acto desta peça transcreve-se um pequeno excerto:

 

" (...)

 

Bostú    Partir? Para onde vão..., para onde a levam?

 

             A Filha sai de cabeça baixa, seguida da Mãe. Bostú fixa os olhos no Pai, insistentes e ansiosos.

 

Pai        (Afastando-se com ar despreocupado, mas com a voz séria.) Vou pô-la a salvo. É de esperar o pior... (Voltando-se, com ironia.) ...Ou você acha que não?

 

Bostú    (Procurando sorrir, ingénuo ou incrédulo.) O tio crê que os soldados vão oferecer resistência?, que combaterão o cerco que se aperta?

 

Pai        (Exaltando-se, solene.) Defenderão tudo e todos até ao último dos homens fardados!

 

Bostú    Mas isso é uma loucura... 

 

Pai        São ordens!

 

Bostú    (Continuando.) ... uma loucura assassina. (Sorri amargamente.) Até tombar o último homem fardado, quantos, quantos homens não fardados não cairão, mortos ou feridos, no chão desta terra, tio?... (A sua voz é angustiada.) E tudo isso para nada, já pensou?...

 

Pai         (Com firmeza.) Temos de nos sacrificar pelos que expõem as suas vidas na nossa defesa!

 

Bostú   (Num apelo de sinceridade.) Mas, tio!, não somos nós que vamos ser atacados!... Esta terra vai ser simplesmente...

 

Pai          (Impetuosamente.) ... Arrasada!

 

Bostú      (Tentando continuar.) ... Os soldados, desarmados...

 

Pai          ... Chacinados, como todos os outros – homens, mulheres, crianças...

 

Bostú      O tio acredita...

 

Pai          (Continuando, sem lhe dar ouvidos.) ... Nós... elas..., eu... Eu! Eu! (Repetirá, batendo com a mão no peito, enquanto Bostú fala.)

 

Bostú        ... consegue aceitar – já não digo acreditar – que as nossas crianças morram nesta noite ou na próxima..., que os nossos velhos e as mulheres... e a vida terminem da noite para o dia..., nesta terra que os viu nascer?

 

Pai              (Num lance desesperado.) Quem pode sobreviver a uma terra arrasada! Quem?...

 

Bostú          (Sufocado.) Arrasada?!

 

Pai              (Explodindo em fúria.) Sim, arrasada! São ordens!

 

Bostú          (Após um momento de silêncio.) Se esta terra vai ser arrasada de que vale tentar pôr a salvo a sua filha, de que vale juntar as jóias e fugir... (A sua voz ganha sùbitamente um tom intenso, inquisitorial...) É só para iludir a sua consciência?... enganar a nossa?... e diga-me uma coisa... (Gestos largos.) Fugir... fugir... para onde? (Acintosamente e apontando para a parede ao fundo.) A sua terra acaba aí, bem perto, no mar, o mar que já recebeu invasores e não receberá fugitivos!

 

Pai              (No limite da histeria.) Cale-se! Proíbo-lhe!...

 

Bostú          (Erguendo finalmente um gesto apaziguador.) Tio...

 

Pai              (Apopléctico.) Proíbo-lhe de falar..., de continuar nesta casa...

 

Bostú          ... mas... tio...

 

Pai              (Com rudeza.) Proíbo-lhe de continuar a chamar-me tio!...

 

(...) "

 

 

© Blog da Rua Nove

31.10.13

Orlando da Costa - O Signo da Ira


blogdaruanove

Sobrecapa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Orlando da Costa (1929-2006), O Signo da Ira (1962, 2.ª ed.).

 

Entre outras razões complementares, foi certamente devido ao activismo do autor e às suas posições políticas dissidentes, as quais haviam motivado a sua detenção pela PIDE e o seu encarceramento por três vezes no iníco da década anterior, que esta obra teve a sua circulação e distribuição suspensas.

 

Apesar disso, este livro, premiado com o prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências em 1961, ano da sua primeira edição, ainda chegou a atingir uma tiragem próxima dos dez mil exemplares.

 

Antes desta obra em prosa, Orlando da Costa tinha já publicado três volumes de poesia A Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955).

 

Posteriormente, publicou as obras Podem Chamar-me Eurídice (1964), Sem Flores nem Coroas (1971), Canto Civil (1979), A Como Estão os Cravos Hoje? (1984), Os Netos de Norton (1994), O Último Olhar de Manú Miranda (2000), e Vocações Evocações (2004).

 

A acção deste romance decorre durante a II Grande Guerra, na então denominada Índia Portuguesa. Dos vários enclaves e ilhas que constituíram o antigo império português sobreviveram, até ao século XX, Dadrá e Nagar Haveli, reintegrados na Índia em 1954, e Damão, Diu, e Goa, reintegrados precisamente em 1961.

 

A influência neo-realista não deixa de se reflectir neste romance, onde não se retrata apenas a rígida estratificação traduzida pelas castas locais – curumbins, sudras, batcarás, mas também a intromissão protagoniza neste sistema pelos expedicionários portugueses, os paclés.

 

Por entre um ambiente de opressão e miséria, motivado pela prepotência das castas superiores, mas também pelo clima e pelas condições agrícolas, surgem as personagens femininas como se fossem a última das últimas castas. Mas são estas, particularmente Coinção, que se suicida, Natrél, e Quitrú, que se assumem como opositoras ao destino e à tradição, revelando uma força interior e uma atitude de revolta que não se encontra nos homens.

 

A título de curiosidade refira-se que o recentemente reeleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa (n. 1961), é filho de Orlando da Costa.

 

Trancrevem-se de seguida alguns parágrafos desta obra:

 

"A idade e a miséria traçavam desde muito cedo o destino daquela gente. Quando os músculos começam a ceder, voltam os olhos para os filhos. Amarram-se a eles até onde podem, implorando ao seu trabalho de servos a subsistência das suas vidas. Não pedem mais do que estes lhes haviam pedido, quando crianças.

 

E, todos os sábados, velhos e velhas, partilhando um mesmo destino na terra da sua nascença e da sua morte, descem à cidade num lúgubre cortejo de andrajos e orações, de chereta estendida à porta dos batcarás. Sob os panos e camisas encardidas, descarnados e ressequidos, os peitos dos homens e das mulheres assemelham-se. Uma voz única eleva-se daquelas bocas sumidas e ossudas – Ômanmari... –, ecoando tristemente de porta em porta. Um punhado de arroz cai nas cheretas em troca da oração e o cortejo prossegue, arrastando-se devagar naquele ritual semanal, em que os filhos mais humildes da terra imploram aos céus altíssimos bênçãos para os seus senhores.

 

Durante seis dias da semana a mulher de Pedrú, encolhida a um canto do casebre, entre gemidos, torturada por uma doença que ninguém no povoado logrou ainda curar, e com a lucidez dos predestinados a agonizar lentamente, ganha forças para aos sábados erguer-se como uma sombra e juntar-se a custo ao caudal de velhos maltrapilhos e estropiados que, de mão estendida num gesto sem revolta, ficam remoendo com as próprias entranhas uma oração de todo o sempre...

 

«Quando chegará a sua vez?...», pensa de olhos tristes a velha Bostian. «Já não falta muito...». Com a mão encarquilhada esmaga os olhos disfarçadamente e depois passa pelos lábios secos aquele sabor a sal que fica na sua pele enrugada. «Não deve faltar muito». É sabido que ela, também, não deixará de cumprir o seu destino, o destino deles todos. Voltará, dentro em pouco, aos sábados, ao tombar da noite, vergastada pela canseira das estradas percorridas, as veias inchadas à flor da pele, a poeira e o suor coalhados nas rugas do seu corpo. Junto à cintura, aconchegados, talvez alguns punhados de arroz. «Mas agora... até para os velhos que mendigam... a vida vai mal!...» À porta dos batcarás já não lhes dão arroz. As cheretas seguras por aquelas descarnadas mãos de pedintes recolhem os poiçás que lhes vão dando de porta em porta.

 

– Não há arroz, nem para os batcarás! – dizia-se agora e era verdade.

 

– Tomem lá quatro anás. É para todos.

 

– Meia rupia. É bab Ligôr que manda dar, é para distribuir por todos.

 

Ômanmari... – e a oração de agradecimento, dita à beira dos balcões das casas, soa mais triste e trágica naquele coro de mendigos."

 

© Blog da Rua Nove