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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

04.03.24

Novos Contos d' África (I)


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Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

© Blog da Rua Nove

27.09.16

Reis Ventura - A 100.ª C. Cmds.


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  Capa de J. A. Preto Pacheco (datas desconhecidas).

 

 

Reis Ventura (1910-1988), A 100.ª C. Cmds. (1970).

 

Na literatura colonial, o conflito armado que deflagrara na década de 1960 havia já sido explicitamente abordado pelo próprio Reis Ventura nos dois volumes de Sangue no Capim (1962), que o autor classifica como sendo volumes de contos, embora estes textos se aproximem mais da crónica, eventualmente ficcionada, e cheguem a incluir fotografias contemporâneas das chacinas e da actividade armada, e por Manuel Barão da Cunha (n. 1938) na obra Aquelas Longas Horas (1968), onde o autor evoca a sua vivência militar em Angola e na Guiné.

 

Na presente obra, de forma distinta do que acontecia naquelas, Reis Ventura cria um ambiente predominantemente ficcional, onde a acção de uma hipotética companhia de comandos traduz aquelas que seriam as eventuais acções reais desta tropa especial em Angola. Ao contrário do que acontecia em Sangue no Capim, não são centrais, aqui, as vivências e preocupações de colonos e civis; do mesmo modo, não tendo sido militar, Reis Ventura não poderia traduzir uma vivência do quotidiano semelhante à que Barão da Cunha experimentara.

 

Entrecruzam-se nesta obra narrativas da acção militar com enredos e relatos amorosos, transcrevendo-se de seguida uma passagem relativa a estes últimos:

 

"A notícia da «captura do Soutello», como logo chamaram ao avançado namoro do alferes, causou o maior espanto entre militares e civis: os militares representados por todos os camaradas da 100.ª Companhia de Comandos, e os civis pelas formosas «mini-saias» que também o queriam.

 

– Vocês já sabem a grande novidade deste século? – lançou o alferes Maninho, numa roda de amigos que saboreavam, no Restaurante Ilha, as famosas gambas grelhadas.

 

– Os marcianos desceram em Nova Iorque? – gracejou o alferes Vieira, depois de molhar a palavra no seu canhangulo de cerveja.

 

– Não.

 

– Apareceu, finalmente, um filme português aceitável? – interveio o Nebrasca.

 

– Não! – fez o inquirido com um trejeito de náusea.

 

– Baixou o preço do vinho em Luanda? – perguntou o Vouzela.

 

– Não!! – urrou o Maninho com mais força.

 

– O Soutello apanhou do pai de alguma menina? – lembrou o Vieira.

 

– Ainda não!!! – vociferou o interrogado.

 

– O que era então? – cantarolou o Vouzela, no tom da incrível cantiga brasileira.

 

– O nosso alferes Soutello caiu como um anjinho. Creio que vai haver pedido de casamento – declarou soturnamente o informador.

 

E todos pararam de comer.

 

Se lhe tivessem dito que o Dr. Agostinho Neto e o Holden Roberto, amiguinhos e de mãos dadas, iam a caminho do Palácio para se apresentar às autoridades, a surpreza dos quatro alferes não teria sido maior. Até se esqueceram de enorme pratada de gambas (cinco doses) que rescendia à sua frente. Depois, o Vouzela reagiu, sacudiu a cabeça num vento de cepticismo e declarou:

 

– É mentira!

 

– É verdade! – teimou o Maninho com a convicção de quem anuncia um facto histórico – O pedido de casamento pode verificar-se de um momento para o outro.

 

Caiu um novo silêncio, já de exame e ponderação, perante o estranho acontecimento.

 

– E quem o capturou? – perguntou de repente o Vouzela, no seu falar delicado.

 

– Sim: – reforçou o Vieira – quem foi a terrorista que lhe armou a emboscada?

 

– Uma loura chamada Hermínia Laranjeiro do Resgate – informou o Maninho – ele chama-lhe Mina e está pelo beiço...

 

– Está resgatado – ironizou o Vouzela.

 

– Está perdido, é o que está – corrigiu compungidamente o Vieira – Apanharam-no...

 

                                                               ***

 

– Apanhou-o, aquela sabidona! – dizia a Ti (o seu nome era Otília, mas a mamã tinha a mania dos monossílabos...), no cabeleireiro, para duas das suas amigas mais íntimas, que também se penteavam naquele pequeno clube de má língua – Como ela o apanhou, é que eu não compreendo!

 

– Oh! – fez a Terezinha Barreiros, com um momo de requintada malícia. – É fácil de compreender: fê-lo escorregar até ao irreparável...

 

– A que chamas tu «o irreparável»? – perguntou a Candinha Mané com um grande ar de ingenuidade.

 

– Morde aqui! – respondeu-lhe a outra com o indicador estendido – Ou queres convencer-me de que não percebeste?!

 

E riram as três.

 

Depois a Candinha vingou-se:

 

– Claro que percebi. Até percebi que estás cheia de ciumes...

 

– Eu, ciumes? Se o rapaz me interessasse, ainda era capaz de desfazer o noivado!

 

– Isso é que era giro! – aplaudiu a Ti – Porque não tentas?

 

– Porque não me apetece – declarou ela, afectando um infinito desdém.

 

Mas mentia com todos os seus bonitos dentes. E, nessa mesma tarde, teve artes de atrair o alferes a um encontro na praia.

 

– Caiste como um parvinho, Soutello – entrou ela, quando se deitaram na areia tépida, logo a seguir ao primeiro mergulho.

 

– É verdade! – concordou ele, aderindo ao tom de brincadeira.

 

– É uma pena! – corrigiu ela – Dentro de algum tempo, nem poderei conversar contigo...

 

– Não sei porquê?... não há mal nenhum em conversar. E eu ainda sou livre...

 

– Parece-te – ironizou ela – Há mulheres que sabem amarrar um homem como se fosse um paio. E a Mina é desse género.

 

– A Mina é uma boa rapariga – declarou o alferes, formalizando –. E eu não me sinto paio.

 

– Então não a deixes pensar que o és, meu menino – aconselhou a despeitada – Defende-te enquanto é tempo!

 

– Se me vir em perigo, peço a tua ajuda – bricou ele.

 

– E olha que sou bem capaz de ta dar. Para ajudar um homem contra uma mulher, não há como outra mulher. E eu gosto de ti...

 

– Porque não o disseste mais cedo?

 

– Porque nunca mo perguntaste..."

 

 

Através de um processo narrativo polifónico, pouco comum nas anteriores obras de Reis Ventura, introduzem-se neste romance diferentes visões que complementam o enredo, aparecendo assim registos narrativos sob os títulos Congeminações dum poeta, onde se apresenta a visão do alferes Nebrasca, e Deixem falar Sarilhos-Grandes, onde surge a visão de João Benfeito, um cabo a quem foi dada a alcunha correspondente à sua terra natal:

 

"Bem: tudo isto veio a propósito – ou a despropósito – das razões por que me ofereci para os comandos após curtos meses de comissão em Angola.

 

Quanto ao libertar-me da alcunha com que indevidamente me crismaram (eu até sou um tipo pacato e cumpridor...) fiquem sabendo desde já que perdi o pano e o feitio, para usar uma linguagem de alfaiate. Ainda eu estava na bicha da entrada para o quartel dos comandos, ali à esquerda de quem vai para Viana, nas antigas instalações do restaurante «Belo Horizonte», quando levei no focinho com o trapo encharcado:

 

«– Eh, Sarilhos-Grandes!»

 

Voltei-me para o berro que vinha mesmo de traz de mim e dei de ventas com o Felício, de trouxa a tiracolo e com aquela sua cara grande e risonha de penico das Caldas.

 

Já viram maior azar?!..."

 

É Sarilhos-Grandes, aliás, a personagem que concede ao romance a maior nota trágica individual. Por entre todas as mortes em combate aqui narradas, a sua surge já no final, pouco antes de a mulher dar à luz. O comandante do seu pelotão, o alferes Nebrasca, que conhecera o casal quando a encontrara na praia com o marido, é o encarregado de lhe transmitir, já na maternidade, a notícia do seu falecimento.

 

Nebrasca não surge apenas como «um poeta», assumindo-se por vezes como o que parece ser um alter ego do autor, particularmente quando nos são apresentados os poemas deste alferes, que evocam uma certa ideia de poesia patente quer em A Romaria (1934), quer em A Grei (1941), e Soldado que Vais À Guerra (1964), a sua posterior versão revista e refundida.

 

Efectivamente, é um longo poema "de Nebrasca", com mais de três páginas, que encerra este romance. Esta abordagem poética, entristecida e dolorosa, questionando a Infinita Bondade divina, remata com a afirmação: "Deixem falar «Sarilhos-Grandes»! / Quem disse que ele morreu?! / É sua, / bem acima da morte, / a voz daquele menino que nasceu, / saudável, belo e forte. / Deixem falar «Sarilhos-Grandes»... / A vida continua. / A Vida venceu!".

 

 

Transcreve-se de seguida uma das muitas passagens que, nesta obra, relatam episódios bélicos, desta vez conjugando a intervenção da força aérea com a acção dos comandos:

 

"O Acampamento «Muxixi» não se via do ar. Mas o Major Reimão sabia exactamente onde ele estava. Era dentro daquele tufo de arvoredo que já se avistava, lá adiante, quase no extremo visível da chana.

 

A esquadrilha de jactos tinha ultrapassado há três minutos a formação de helicópteros que, todavia, gastara quase um quarto de hora até chegar à orla da mata. Corria tudo OK. Os seus «asas» sabiam exactamente como proceder, porque tudo fora combinado logo depois de descolar da pista do Luso. E não era preciso agora usar as comunicações rádio, que poderiam alertar o Inimigo, roubando aos jactos a sua grande vantagem nesta guerra: o favor da surpreza que lhes confere a velocidade.

 

Embora sem ultrapassar a barragem do som, os F.84 voam tão próximo dela que, na prática, os terroristas só dão por eles quando já estão sob o seu fogo. «É avião danado que quando chega já passou, larga as rodas e morre tudo!», – diziam os bandoleiros da UPA, quando estes caças-bombardeiros começaram a operar em Angola, durante a segunda metade de 1961.

 

Hoje os homens do MPLA, aos menos os mais treinados pelos instrutores chineses e cubanos, já sabem que são bombas ou rockets o que os F.84 transportam perto das rodas recolhidas. Mas conservam quase o mesmo medo desses terríveis moscardos zumbidores, que lhes aparecem sempre de surpresa, picando vertiginosamente de entre as nuvens ou razando a copa das árvores como um vendaval da Morte. Se não conhecem antecipadamente os seus raids – o que é muito raro acontecer, porque a FAP sabe guardar os seus segredos – nem as sentinelas de ouvido mais apurado conseguem captar-lhe o silvar a tempo de avisar os camaradas. E depois de eles se revelarem aos ouvidos de todos com o seu característico ranger de toneladas de papel rasgado, desencadeia-se, quase sempre, uma cena de inferno. Passam e repassam, uns a seguir aos outros, sobre o alvo, despejando bombas devastadoras, lançando as serpentes coleantes e rugidoras dos seus «rockets», mordendo tudo com os dentes raivosos das suas metralhadoras...

 

Alguns turras mais corajosos, ou mais inconscientes, ainda disparam as suas armas para o ceu, embora à toa e sem fixar o alvo cuja velocidade lhes não dá tempo para nada. Mas o habitual é fugirem espavoridos para as suas furnas ou afocinharem no capim, colando-se ao terreno até que o furacão passe.

 

E foi isto que aconteceu nessa manhã, à roda do acampamento «Muxixi» do MPLA, logo que o F. 84 do Major Reimão picou contra aquele pedaço de floresta e largou as suas bombas. Uma das sentinelas, empoleirada na copa da frondosa mulemba, nem ouviu nada: – sentiu apenas um grande vento abrasador que lhe secou instantâneamente toda a seiva da vida, quase sem consciência  e sem dor. As outras saltaram dos seus postos de observação e refugiaram-se em buracos cavados junto à raíz das árvores, enquanto novas bombas rebentavam perto.

 

Lançando os seus pesados bilhetes de visita e cuspidos todos os seus «rockets», os jactos entraram em vôo razante, varejando em redondo com todas as suas metralhadoras.

 

Já então os primeiros helicópteros chegavam aos locais de pouso, prèviamente estabelecidos a pequena distância da mata. Desta vez coube à equipa do Sargento Santos o previlégio, pouco desejado, de saltar na vanguarda. Mas não houve ninguém a recebê-los com rajadas de metralhadora, como já lhes tinha acontecido uma vez, durante a Operação Antros, nos Dembos, felizmente sem consequências porque o alferes Maninho, que saltara entre os primeiros, abatera com um tiro certeiro o meliante que apontava a arma checa.

 

Agora, as sentinelas do acampamento «Muxixi» estavam demasiadamente assustadas com o fogo dos F.84, para levantar a cabeça das tocas onde se abrigavam. 

 

Num dos helis seguintes, que trazia a equipa do sargento Quintejo, o Trigueirão lembrou ao Sarilhos-Grandes que devia saltar com jeito...

 

... – Para não escaldares outra vez esse maldito chispe...

 

– Vê lá se tomas tento na língua – resingou o alvejado, muito sensível às piadas que aludissem a porcos. – Senão vou contratar um turra para te lavar com o cloreto das retretes...

 

Mas saltou como pé direito, e depois de se benzer devotamente contra as malas artes do diabo que o tinham deixado amarrado a um pé torcido durante a Operação Antros.

 

Dentro do horário fixado, os dois grupos de combate estavam desembarcados e desdobravam as suas equipas pelo Norte e Poente, enquanto o quarto e quinto grupos, vindos do Lumeje, começavam já a chegar em nova vaga de helicópteros, para fechar o cerco pelo Nascente e pelo Sul.

 

Já com a alvorada em expectativa dos primeiros raios do sol num céu limpo de nuvens, o Capitão Seabra olhou o seu relógio de pulso. Eram 6 horas e vinte e cinco minutos. Os jactos rugiam ainda, quase tocando a copa das árvores mais altas da mata. Mas o capitão sabia que, a partir daquele momento, o seu fogo cessara. Continuavam sobre o objectivo apenas para manter os bandoleiros colados ao terreno ou escondidos nos seus abrigos. E fez o sinal de iniciar a marcha para o «Muxixi».

 

Deixando a protecção que tinham escolhido com o aproveitamento de todas as pregas do terreno, os comandos fizeram uma rápida série de pequenas corridas através da chana descoberta e entraram na mata.

 

Minutos depois, começou a ladrar uma pistola-metralhadora.

 

As rajadas vinham da única sentinela que o medo dos jactos não impedira de olhar em redor. Curtas e bem espaçadas, denunciavam o combatente corajoso e bem treinado. E o Capitão Seabra, que avançava na vanguarda com a equipa do sargento Santos, fez o sinal de abrigar. Ele conhecia o perigo da marcha a peito descoberto contra um inimigo invisível. E obedecia às suas duas grandes preocupações de sempre: poupar os seus homens e não armar grandes tiroteios logo no início duma acção.

 

Dar poucos tiros era aliás uma das características dos comandos da Escola do Coronel Malaforte. Não porque se julgasse necessário poupar as munições. Apenas porque – dizia ele – «os comandos atiram apenas ao inimigo que vêem e com a certeza de acertar no alvo».

 

O Capitão Seabra aderira compenetradamente a esta doutrina. Sem outra família senão os seus homens, só arriscava quando necessário e sempre com inconfessada mas dolorosa preocupação. As acções rápidas, sem baixas e quase sem balas constituiam a sua predilecção de militar.

 

Abrigado por detraz dum morro de salalé abandonado das formigas e já meio esboroado pela erosão da chuva e do vento, o comandante da 100.ª CCMDS apurou todos os seus sentidos de oficial destemido e competente. Mas a sentinela, que também conhecia as pequenas manhas desta guerra, devia estar à espera de que os comandos se descobrissem. Era o sabido jogo das escondidas, numa espécie de luta copiada dos gangsters – pensou o capitão. E, usando um velho estratagema, que ainda resulta muita vez por explorar os reflexos semi-inconscientes da atenção espectante, catou no chão um calhau de bom tamanho e arremessou-o para diante, contra um tufo de espinheiras que via à sua esquerda, a uns oito metros de distância.

 

Alguns ramos do arbusto buliram com um barulho semelhante ao do cauteloso esgueirar de criatura viva. E logo uma gadanha de balas os ceifou rentes..."

 

 

Este volume inclui ainda, no seu final, nove páginas com referências críticas à obra do autor, onde se encontram apreciações de escritores como Amândio César (1921-1987), sobre Cidade e Muceque (1970), Fernando Pessoa (1888-1935), sobre A Romaria (1934), Guedes de Amorim (1901-1979), sobre Caminhos (1959) e Fazenda Abandonada (1965), João Gaspar Simões (1903-1987), sobre Quatro Contos por Mês (1955), Mário António (1934-1989), sobre Queimados do Sol (1966), Mário Mota (1916-1981), sobre Cidade e Muceque, e Rodrigues Júnior (1902-1991), sobre Queimados do Sol e Um Homem de Outro Mundo (1968).

 

© Blog da Rua Nove

30.04.15

Reis Ventura - Cidade e Muceque


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  Capa de Haydée Moniz (datas desconhecidas).

 

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade e Muceque (1970).

 

Apresentando sete contos – O Homem das Sete Caras, Um Negócio bem Montado, Gente do Subúrbio, A Estalagem do Leão, O Cadillac, O Velho Bernardo, Tschimolonga, Carabina de Precisão e Olhos Assustados, este volume retoma ficcionalmente a temática dos trágicos acontecimentos de 1961 que o autor já havia tratado em Sangue no Capim (1962).

 

Esta abordagem é, aliás, explicitada nos textos que compõem as badanas, onde fica também evidente o compromisso ideológico do autor, a sua defesa do regime, e o orgulho perante a dinâmica civilizacional portuguesa implementada em Angola, como se constata nas seguintes passagens:

 

"A Luanda destes contos é a da década de sessenta, que já vai no meio milhão de habitantes, e já ergue prédios com mais de vinte andares, e já nos mostra um tráfego automóvel semelhante ao de Lisboa ou Porto, e já por vezes reune, na placa de estacionamento do seu aeroporto, quatro ou cinco grandes jactos intercontinentais. Esta é a Luanda de hoje, toda ela uma orgulhosa resposta ao desafio do terrorismo.

 

Por isso mesmo, insensìvelmente, sem um plano preconcebido nem uma prévia selecção de assuntos, todos os contos deste livro, menos um, são directa ou indirectamente relacionados com os acontecimentos e consequências da agressão cometida contra Angola."

 

Apesar de tudo, Reis Ventura não deixa de manifestar ainda uma certa preocupação humanitária e de preconizar uma particular ideia de convívio e irmandade anti-racista, particularmente no conto Olhos Assustados, onde se evocam alguns contornos das chacinas de 1961 e a variante de um episódio já narrado em Sangue no Capim.

 

Já nos contos O Velho Bernardo e Tschimolonga surgem retratos da aculturação dos autóctones de raça negra, que se assumem como contraponto aos denominados matumbos, por um lado, e, por outro, aos terroristas.

 

Mas é no conto Carabina de Precisão, de que se transcrevem abaixo alguns parágrafos, que se desenvolve a mais complexa e expressiva tensão interior em uma única personagem, através da narrativa de uma situação de combate, contexto que até então apenas tinha tido equivalente, na literatura colonial portuguesa deste período, em Aquelas Longas Horas (1968), de Manuel Barão da Cunha. 

 

"Assim se agitava na teia complicada dos seus amargos pensamentos, quando reparou que o combate já durava tempo demais. Normalmente ele dava o primeiro tiro, sempre que a patrulha portuguesa vinha ao nível de pelotão. O bando disparava então todas as suas armas e fugia logo, pois todos sabiam que os soldados portugueses eram rápidos e implacáveis na resposta.

 

Mas, agora, o combate ainda durava. E ao crepitar das metralhadoras, juntava-se, de vez em quando, o sopro ardente das bazucadas.

 

Com o seu instinto de bom soldado, o homem da carabina de precisão regressou de repente à consciência do perigo circundante. Apurou o olhar em redondo e apercebeu-se de que algo de especial estava a acontecer. O seu bando não fugira porque estava cercado. Os emboscados afinal eram eles.

 

Com infinita cautela, passando de ramo em ramo com a silenciosa agilidade dum gato selvagem, espreitou para todos os lados, com aquela agudeza visual que era uma das suas melhores qualidades de combatente. E teve um sobressalto ao concluir que havia, no cerco aos terroristas, mais de um pelotão. Sentiu na água dos olhos e no tutano dos ossos o álgido frio do medo à morte. Porque ele também estava dentro do cerco e sabia que os portugueses o procuravam há longos meses, para lhe cobrar o preço dos alferes abatidos. E verificava que ele e o seu bando, cujo comando aliaz lhe não pertencia, (os grandes cabecilhas do terrorismo não estavam bem seguros dele, porque ninguém confia muito num desertor, não é?...) – verificava agora que ele e o seu bando tinham de se haver com dois pelotões, talvez com uma companhia inteira.

 

Então havia, pelo menos, mais dois alferes.

 

Retezou os músculos, como a hiena que prepara o salto, e pôs-se à procura dos oficiais. Da sua posição elevada pode confirmar que um segundo pelotão avançava do lado contrário à picada, vindo do interior da mata. E pronto! – lá começava o fogo de morteiro...

 

Compreendeu que o seu bando estava fechado num círculo de fogo. E não se esquecia de que a tropa portuguesa sabia fazer as coisas... Se fosse o comandante do bando, teria ordenado o «salve-se quem puder!» Mas não era o comandante do bando. Nunca lhe tinham confiado o comando dum grupo de combate. Era apenas um atirador de pontaria infalível, com uma carabina de precisão..."

 

© Blog da Rua Nove

31.01.14

Reis Ventura - Caminhos


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Capa de Raul Machado (datas desconhecidas).

 

Reis Ventura (1910-1988), Caminhos (1959).

 

Iniciando-se com um deslize de (ausência de) revisão que nos apresenta o protagonista como tendo nascido em 1893 e ficado órfão, aos 15 anos, após o falecimento do pai "numa das primeiras incursões monárquicas" [o regime republicano foi implantado em 1910, a primeira incursão ocorreu em 1911], este romance, com o subtítulo Vida e Paixão dum Motorista de Angola, acaba por fazer esquecer aos leitores tais deslizes através de uma narrativa ritmada e de um enredo atraente, se bem que facilmente antecipável na sua evolução e conclusão.

 

Recorrendo a uma estrutura folhetinesca de capítulos curtos, que já havia sido utilizada em Cidade Alta (1958), Reis Ventura cruza neste romance a descrição de vários locais de Angola, desde a Gabela a Benguela, ou de Cabinda, e da floresta do Maiombe, a Luanda, com uma problemática de fundo que assenta nos conceitos de crime e justiça, de consciência e culpa.

 

A esta problemática, recorrendo ao imaginário criado à volta da eventual descendência mestiça do Tenente Valadim (1856-1890), aqui ficticiamente evocado como Tenente Alpedrim e transposto da sua real intervenção em Moçambique para o cenário romanesco de Angola, um imaginário já anteriormente abordado pelo autor, Reis Ventura acrescenta a problemática da mestiçagem, personificada pela figura do Dr. Alpedrim, e de sua mãe, D. Beatriz, mulher do protagonista, João do Souto.

 

Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Era pelas seis horas da tarde, quando os mirones do café «Polo Norte» despem, com os olhos, as raparigas que saem dos empregos e as senhoras perliquitetes que voltam das compras.

 

Fui encontrar o Teiga na praça de taxis fronteira à Livraria Lello, num grupo de chauffers que palestravam, aguardando freguês, à beira dos carros estacionados.

 

Esta gente constitui, em Luanda, uma classe bem definida. Homens sem papas na língua, falam, entre eles, uma linguagem ajindungada de pragas sonoras e de piadas brejeiras. Mas, pelas exigências da profissão, sabem ser delicados e corteses no serviço.

 

Pobres e laboriosos, ainda isentos da subserviência da gorjeta, não usam as vénias e rapapés dos seus colegas de Lisboa ou Porto. Conhecem os podres de muita gente e comentam-nos entre si, mas raramente assoalham perante elementos estranhos à classe.

 

Os que exploram carro próprio, conseguem algumas vezes amealhar economias, com a ajuda do trabalho da mulher e uma severa economia familiar. E há muito rico que lhes deve dinheiro...

  

Lamentam a quota que pagam ao seu Sindicato e odeiam o uso do boné que ele lhe impôs, vingando-se com a crítica mordaz de todas as direcções, passadas, presentes e futuras.

 

Correm atraz do freguês, como perdigueiros de bom faro. E ultrapassam os pechotes das cartas de turismo, em manobras atrevidas, sobressaltando os nervos frágeis das meninas bem, que rodam em carrinhos utilitários para os chás das amigas ou para coisas menos inocentes...

 

Transportando pobres e ricos, em corridas de urgência ao hospital, em passeatas de fim de semana, ou em excursões nocturnas pelas espeluncas mal afamadas dos muceques ou pelas «boites» caras da cidade, aprenderam a olhar a vida com uma filosofia própria. Sempre há muito burro nesta terra!» [sic] – pensam, ao deixar certos velhotes perfumados no «Mambo» ou no «Bambi-Bar». Mas tudo está bem, desde que lhe paguem a corrida. O resto já não é com eles. E, não obstante a concorrência a que obriga a luta pela vida, são dos que melhor sentem a solidariedade de classe. Até as pedrinhas da calçada se levantam, se algum colega lhes rouba deslealmente o freguês. Mas ajudam, de bom grado, aqueles que se encontram em transe de aflição."

 

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25.11.13

Reis Ventura - Cidade Alta


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Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade Alta (1958).

 

Segundo volume de uma trilogia romanesca que, na senda de modelos oitocentistas e queirosianos, se agrupava sob a designação "Cenas da Vida em Luanda", este romance havia sido publicado inicialmente sob o formato de folhetim no jornal diário "a província de Angola", estrutura que se reflecte na significativa quantidade de capítulos desta obra, trinta e seis, os quais apresentam ainda subtítulos, bem com na brevidade de cada um deles.

 

Seguindo uma habitual trama de intriga e maledicência, romance e crime, esta obra traça, apesar de tudo, um certo retrato optimista da sociedade luandense das décadas de 1940 e 1950.

 

Recorrendo frequentemente à citação de datas específicas, como 23 de Julho de 1954, dia da ocupação do enclave indiano de Dadrá (cf. http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/17627.html), ou 13 de Maio de 1955, dia do anúncio oficial da primeira descoberta rentável de petróleo em Angola, o autor parece procurar conferir à sua narrativa uma verosimilhança que a aproxime dos modelos realistas do século XIX.

 

Contudo, nesta obra em particular, tal aproximação traduz uma visão da sociedade angolana que se restringe quase exclusivamente à população branca, embora haja um breve formulação da problemática social e afectiva com que se defrontam mestiços e mulatos, na personagem do dr. Valadim, filho de pai incógnito e de uma "mulata-cabrita da Gabela", filha do Tenente Valadim.

 

Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos deste romance:

 

"Na lenta evolução da cidade de Luanda, que só recentemente, com a euforia do café, ganhou um ritmo mais rápido que o da maior parte das cidades europeias, têm aparecido cenáculos, localmente celebrados e temidos.

 

Primeiro foi o «Clube dos Pés Frios», na Cervejaria «Biker», assim chamado porque dele participavam veneráveis senhores de idade, todos com uma língua de prata, mais corrosiva que o ácido prússico.

 

Depois nasceu o «Canal de Moçambique», à sombra alcoviteira dessa mulemba da «Portugália», tão robusta e respeitável que tem resistido à sanha arboricida de centenas de vereações municipais. Também ali se passou a pente fino a vida citadina. E até os governadores se interessavam em saber como se comentava, no «Canal de Moçambique», o último Diploma Legislativo ou a mais recente discussão no Conselho do Governo.

 

Últimamente surgiu o grupinho do «Polo Norte». Dom José de Monte-Santo chama-lhe a «esquina do pecado».

 

La se reunem, pela tardinha, uns moços das redacções dos jornais e das tertúlias artísticas, lançando olhares vorazes às mulheres que passam e comentando os acontecimentos locais, com uma irreverência só comparável ao escândalo do «rock and roll». E assim como nos saltos acrobáticos da dança endiabrada, as moças histéricas revelam as mais íntimas fímbrias das suas rendadas calcinhas, assim nesse grupo de candidatos a uma esquiva ironia, não há véus de conveniências nem preconceitos sociais que escapem ao rasgão repulsivo ou à tesourada vingativa.

 

São uns demolidores terríveis, quase todos com a desculpa da mocidade e alguns com a ressalva do talento. Dizem muitas asneiras e algumas verdades como punhos. Preferem aplaudir uma imbecilidade nova a perfilhar uma genialidade velha. Odeiam cordialmente o antigo. São a gente nova com todos os seus defeitos e com todas as suas qualidades. Dão-se generosamente ao paradoxo e ao sarcasmo, com abomináveis concessões à risota fácil e à chalaça grosseira.

 

Na sua adoração do moderno, acontece às vezes iludirem-se e reeditarem, como novas, velhas coisas do tempo dos faraós. Mas fazem-no com uma grande sinceridade e com uma inconsciência enternecedora."



"O Saraiva declarou que abundava nas mesmas ideias (de repetir o peru) e aproveitou para contar a sua conversa com o Fraga.


– Eu chuchei com o homem – mas, aqui para nós, dou-lhe razão. Três contos não é vencimento que se pague, nos tempos que correm...


– O funcionalismo ganha pouco, para o que precisa; mas ainda ganha demais, para o que faz – sintetizou o Pedralva, sarcástico.


E logo o eng. Soutello atalhou que nem era justo generalizar a apreciação merecida por alguns calaceiros, nem lhe parecia sensato fazer espírito com um problema sério.


– A insuficiência dos vencimentos dos funcionários – explicou – arrasta consigo o nível geral dos salários em Angola. Resultado: o aviltamento do valor do trabalho humano, com todo o seu cortejo de misérias materiais e morais. Porque é fundamentalmente injusto que o trabalho honesto de um homem não pague uma vida decente do agregado familiar...


– É essa a doutrina do grande Leão XIII! –ajudou o senhor cónego Salema.


– A política dos salários baixos não só é cruel e anti-cristã – ponderou o dr. Almada – é também prejudicial ao desenvolvimento económico, na medida em que entrava a movimentação da riqueza. E o pequeno movimento comercial conduz fatalmente aos preços altos...


– Altíssimos! – reforçou a D. Esmeralda. – O sr. dr. Valadim já provou os croquetes? Olhe que foram feitos pela Ri..."

 

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16.04.10

Reis Ventura - Queimados do Sol


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Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Reis Ventura (1910-1988), Queimados do Sol (1966).

 

Na linha de internacionalização do enredo das suas narrativas e da diversificação de origem das personagens, ensaiada já no seu romance anterior, Engrenagens Malditas (1964), Reis Ventura apresenta-nos aqui um conjunto de personagens que não só pretendem transmitir uma ideia de mestiçagem e unidade nacional como também de bom relacionamento internacional.

 

Apesar de constantes referências à situação no território (cf. evocação de ataques e massacres na frase "... em direcção à exígua pista de aterragem, vermelha como um lanho de catana...") e à nova ordem internacional (cf. "... alguns com barba crescida à Fidel Castro...") este romance articula-se de forma mais interessante que o antecedente.

 

Será, eventualmente, a primeira obra literária do autor posterior ao eclodir da guerra em Angola que retoma um fio narrativo e literário consentâneo com os modelos da trilogia dedicada a Luanda. Com um enredo desenvolvido entre Luanda, Nóqui, Matadi e Thysville (ex-Congo Belga), o romance não ignora contudo a nova realidade angolana, surgindo até como um subtil panfleto sobre as qualidades e as razões da colonização portuguesa.

 

Segundo fontes próximas do autor, uma das características que marca também a obra é a referência indirecta a um drama familiar, através do estado demencial que afecta o protagonista, o alferes Tanha, após a sua detenção e tortura.

 

A dedicatória deste volume, "Ao Dr. Amândio César / escritor de talento / e português de boa têmpera", remete-nos para um autor que já dedicara muita da sua atenção à literatura africana e viria a publicar em 1972 uma Antologia do Conto Ultramarino (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/658.html) onde Reis Ventura seria incluído.

 

Do romance Queimados do Sol transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Quando Ana Maria e seu pai sairam do recinto da alfândega, no Aeroporto de Luanda, encontraram a esperá-los os Malagambas, que lhes tinham oferecido dois quartos na sua casa do Bairro do Café, enquanto não conseguissem um apartamento na superlotada capital de Angola.

 

Os Malagambas viviam agora sòzinhos naquela ampla vivenda construída nos bons tempos da alta do café, com os primeiros lucros da sua roça do Quibaxe. Ele – Firmino do Santos Malagamba – era um tripeiro de gema, nascido na Rua da Cedofeita e crescido no ambiente laborioso do Porto, entre os seus livros de aluno da Escola Industrial e a tarefa de ajudar os pais na labuta duma pensão que tinham instalado com dinheiro ganho no Brasil.

 

Com 19 anos e já com a sua carta de curso, embarcara para Angola e à custa de muito esforço, começando por simples mecânico, tinha chegado a proprietário duma importante oficina de reparação de automóveis e a dono daquela plantação de café em que, pela graça de Deus, os terroristas não tinham tocado.

 

Aos vinte e sete anos casara com a Manuela Vieira, filha mestiça dum comerciante abastado, que era então famosa em toda a cidade, pela sua beleza e pela sua voz de ouro nas festas do antigo Clube Naval.

 

Agora, ambos tinham já cabelos brancos e dois rapagões na Universidade de Lisboa, um a começar Medicina e o mais velho já no terceiro ano de Direito.

 

Gente de vida desafogada e com boas relações na classe média da cidade, realizava em sua casa, pela diversidade étnica dos que a frequentavam, um exemplo bem típico da sociedade multirracial de Angola."

 

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05.04.10

Reis Ventura - Filha de Branco


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Reis Ventura (1910-1988), Filha de Branco (1960).

Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Romance que completa uma trilogia de Reis Ventura – Cenas da Vida de [em; cf. citação abaixo] Luanda, que inclui as obras Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958), para além do presente título, e antecede o ciclo das suas narrativas que já traduzem a realidade da luta pela independência, Filha de Branco é um retrato politicamente engajado e datado, mas notável, da mestiçagem, da vida nos bairros limítrofes de Luanda e do crescimento da cidade, entre as décadas de 1920 e 1950.

 

Tão significativa e expressiva como esse retrato é a introdução que o autor faz ao romance e que por isso se transcreve abaixo, quase na íntegra. Para uma breve apreciação genérica da obra de Reis Ventura ver http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/431.html e para referências particulares a outras obras ver A Grei (1941), http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/5206.html, e Engrenagens Malditas (1964), http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/10891.html.

 

"Com este romance, fecha-se o tríptico literário de cenas da vida em Luanda. Em 'Quatro contos por mês' esbocei figuras da classe média. Em 'Cidade Alta', tentei dar uma imagem da gente grada, com as suas virtudes e  vícios. Mas a parte mais original da cidade é a vasta área dos muceques. S. Paulo, Vila Clotilde, Muceque Rangel, Casa Branca – um formigueiro humano em que caldeia a Angola do futuro.

 

Existe um centro nervoso desta zona de contrastes: a Rua de S. Paulo. Ainda não é bem cidade; e já não pode chamar-se muceque. Há por ali lavadeiras pretas aposentadas, com casa arrendada ao branco. Mas quando reclamam a renda atrazada, tratam o inquilino por 'patrão'...

 

Bairros de transição, cheios de pitoresco e de imprevisto. Enorme lagar onde fermenta o país luso-tropical do porvir. Cubatas de adobe ao lado de vivendas modernas. Lojas do tempo da borracha e altos prédios de cimento armado. O branco fura-vidas, o preto civilizado, o calcinhas presumido, o mestiço e os seus complexos. A ronda dos esfomeados sexuais. A prostituição de várias cores. A luta pela vida. Tudo numa natural fusão das raças. Brancos e pretos na mesma rua, à mesma mesa, na mesma cama. – Uma ponte entre a cidade e o sertão. 

 

Larga e acolhedora ponte, aberta a todos os matizes de cor, a todos os graus de civilização e a todos os vícios e virtudes do homem. Ganância, coragem, iniciativa, lealdade, luxúria, egoísmo e crime. Um formidável cadinho humano!"

 

 

"Filha de branco, esta Luanda dos Muceques é uma estranha mistura de arraial minhoto e de batuque de sanzala, de mercado indígena e de feira algarvia. No seu panorama humano, juntam-se o rufia de Lisboa, o taberneiro da Beira, o preto da Liga Africana e o filho do antigo guerreiro dembo, que veio servir na casa do branco, trazendo uma medalha, que lhe deu o missionário, e uma tatuagem que lhe fez o feiticeiro...

 

Por entre os adultos, a população infantil acusa o progresso da fusão racial: crianças pretas, quase nuas, com umbigos do tamanho de nozes e garotos brancos, quase nus, de pele tostada pela ardência do sol – todos juntos, brincando com a areia das ruas sem asfalto, baptizados na mesma igreja, frequentando a mesma escola.

 

Pelas soleiras das portas, nos dois ou três degraus que sobem para as cubatas, velhas quitandeiras, catando os netos; nas ruas, moças bem torneadas, espreitando o homem; funcionários negros aposentados, gastando o tempo. Nos botequins e tabernas, rapazolas olheirudos, rentando a fêmea; 'bimbos' recém-chegados da Metrópole, à cata de emprego; mulatas donairosas, bamboleando os quadris; colonos do interior, discutindo negócios. Por toda a parte, a chusma preta, lidando ou preguiçando: contínuos, lavadeiras, criados, operários, cambuladores...

 

Balcões enodoados de vinho vendido a copo. Montras com panos garridos e quinquilharias vistosas. O grazinar constante das bicicletas motorizadas, a música alta dos rádios, o barulho insolente das carrinhas sonoras. De longe em longe, um polícia paternal e bonacheirão, com um pistolão que nunca sai do coldre.

 

E comércio, comércio, comércio! Uma taberna a cada esquina. Lojas a todo o correr das ruas. O branco atento às predilecções do preto. Os descendentes dos decobridores, servindo os netos dos antigo sobas rebeldes. O vinho alegre do Douro, embebedando pescadores da Ilha ou estivadores do porto. Mãos que arremessaram azagaias ou manejam a catana, agarradas a copos fabricados em Leiria. Velhos europeus das colunas de João de Almeida, aviando fregueses que lutaram na tropa fandanga do Caculo Caenda.

 

Zona de contínua fermentação. Excitante como um vinho mosto! Ambiciosa como rapariga mestiça, que tem no sangue a turbulência dos batuques, mas só quer um branco.

 

Filha de branco, que ficou só, e de preta que não quis resistir..."

 

 

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19.03.10

Reis Ventura - Engrenagens Malditas


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Capa de António Lino (1914-1996).

 

Reis Ventura (1910-1988), Engrenagens Malditas (1964; o cólofon indica que acabou de se imprimir em Fevereiro de 1965).

 

Com este romance, Reis Ventura inicia um percurso que se afasta da literatura com espaços narrativos exclusivamente centrados em África e em Angola, característica da sua produção do final da década anterior e do início da década de 1960.

 

Primeira obra ficcional do autor publicada depois do início da guerra colonial, procura traduzir uma reflexão sobre as engrenagens que levaram ao estabelecimento de uma nova ordem mundial, e a um reequilíbrio de poderes, após a II Guerra Mundial.

 

O próprio texto introdutório da obra reconhece ser esta uma obra de viragem no percurso do autor, ao afirmar – "Reis Ventura inicia, com este romance, uma nova incidência da sua actividade literária."

 

É de facto uma nova incidência, que marca uma ruptura com a anterior homogeneidade e qualidade literária da sua obra.

 

Ao lançar como protagonista do romance um jornalista angolano que relata as suas deslocações pelo mundo e regista as suas reflexões sobre as engrenagens malditas da política e da sociedade, que poderão estar na origem das sublevações em Angola, e no mundo, Reis Ventura perde-se num romance que aspira colocar demasiadas questões.

 

Do mesmo modo perde também a espontaneidade e harmonia de outras obras anteriores, prefigurando o exemplo do romance de antecipação Um Homem de Outro Mundo, também ele um livro onde o talento anteriormente demonstrado pelo autor se dispersa e perde.

 

Com Engrenagens Malditas, Reis Ventura obteve, na sua edição de 1965, o prémio Fernão Mendes Pinto da Agência Geral do Ultramar.

 

Transcreve-se de seguida um pequeno excerto do romance:

 

"Nos escritórios da grande cadeia de jornais, instalados num décimo-quinto andar, não muito longe do Palácio de Vidro, o "ovo cósmico", como todos chamávamos ao nosso espertíssimo e calvíssimo administrador-delegado, desceu os pés da borda da secretária, estendeu-me apressadamente a mão bem tratada e convidou-me a entrar para o compartimento imediato, que era a sala das sessões. Na sala das sessões estavam todos os restantes membros do conselho de administração, menos o Presidente, que andava de visita à Alemanha Ocidental.

Era um grupo notável. Incluía o gordo Stevens, que tinha poços de  petróleo no Texas, o magríssimo Harold, considerado o melhor causídico de Nova Iorque, o melífluo Vaganou, de origem francesa, e o tonitroante Vaterplatz, nascido de emigrantes prussianos e agora dono da mais moderna aciaria do Ohio.

– Então a coisa começou em Angola? – disparou Stevens sem mais preâmbulos. – Conte-nos os factos.

– Há pouco para contar – respondi, surpreendido com a seriedade daquela conferência. E em meia dúzia de palavras, relatei-lhes o assalto de 4 de Fevereiro e o motim do Cemitério Novo.

– Muita tropa, em Luanda? – fez Vaganou displicentemente, enquanto acendia um dos seus caros charutos.

– Quase nenhuma. E a pequena guarnição de Luanda é constituída quase só por nativos.

– Hé! hé! hé!... – gargalhou ruidosamente Vaterplatz. – Os seus compatriotas são um pouco inconscientes, não são?...

– Os portugueses não se assustam com pouco – retorquiu [sic] serenamente. – Estão em África há vários séculos...

– Respeito o seu brio nacional – sussurrou Harold, com aquele ar tímido com que gostava de iniciar as suas grandes tiradas forenses. – Mas receio que os portugueses não estejam por muito mais tempo em Angola... Julgo até que muitos deles já o compreenderam. Parece que há pânico em Luanda...

– Não há pânico em Luanda e ninguém pensa em abandonar Angola! – afirmei, vincando bem as palavras. – Os últimos acontecimentos são destituídos de qualquer importância e não afectaram o moral das populações."

 

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