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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

16.01.25

Revista Cultura (V)


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O número 39 desta revista apresenta o conto Titia, de Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002). Num registo coloquial próximo da oralidade, esta narrativa apresenta-nos o retrato de uma viúva que abandonou Cabo Verde, onde apenas um dos três filhos permaneceu, para viver sozinha em Lisboa, sem quaisquer amigos ou confidentes a não ser José, o narrador.

 

Recordando-se, embora, que ainda não foi reproduzido o conto deste autor intitulado Resignação, publicado em 1958 no número 14 desta mesma revista, transcrevem-se de seguida os primeiros parágrafos de Titia, uma vez que já foram anteriormente referidos alguns dados bio-bibliográficos sobre o autor (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html):

 

"Titia nem teve paciência... Recado num dia, bilhete no outro... Caramba! Nemque fosse sangria desatada! É preciso compreenderem que eu nem sequer sou parente dela. Sim senhores... Nem filho, nem sobrinho, nem primo, nem nada. Chamo-lhe Titia por amizade.

 

Titia não é má pessoa, não. Só que de vez em quando tem suas rabujas... Hoje os seus filhos estão longe. Ela vive cá em Lisboa. Viver «cheio de buracos vazios» porque «dinheiro é pouco e velhice ingrata»... Veio para aqui com destino à Argentina. Zulmira, a filha mais velha, vive lá. Mas depois levantaram-se impedimentos, «assoprou aquele ventinho que tem de pegar toda a criatura sem sorte» e ela não seguiu. Foi resolvido que ela ficasse. Voltar para Cabo Verde era asneira... Nhônhô, o que está em Moçambique, foi de opinião que mais vale viver mal em Lisboa do que viver bem em S. Vicente. Sim, porque Titia já viveu bem... «Quem a visse hoje em dia com o seu balaio de compras debaixo do braço não dizia que estava ali uma quintanista, e das antigas...» Titia viveu bem enquanto o marido foi vivo. Negociante de baia. Ela mesma fazia os bolos para vender na Pracinha do Liceu. Foi assim que compraram a sua casinha no Lombo-de-Trás e puderam educar os filhos. Nhônhô tirou o sétimo ano e concorreu para Moçambique. Zulmira também estudou. Essa é que embarcou para a Argentina. Lela não quis estudar. Fez o terceiro ano e empregou-se na companhia Madeira. Parodista e mulherengo dos bons... Titia às vezes lastimava-se de Lela não ter o 7.º como Nhônhô.

 

– O que tu queres é esta vidinha de cachorro vadio...

 

Lela ria, ria e não dizia nada. O riso de Lela é sonoro e sacudido.

 

Pois, para Titia o bom tempo durou enquanto durou o marido. Homem é que é tecto de uma casa, já se vê. Depois começou a dispersão. Nhônhô casou, Zulmira foi para a Argentina e Lela tirou uma rapariga de casa. Que é que Titia ia fazer sòzinha na casa vazia? Sim. Que é? Foi então que ela resolveu embarcar também. Aqui em Lisboa aguentava-se com o dinheirinho que os filhos lhe mandavam. Filhos... vírgula... Só Nhônhô lá de Moçambique achava jazigo de lhe mandar qualquer coisa. Não era muito, já se sabe, pois, como vocês calculam, um homem casado tem de olhar para o futuro da mulher e dos filhos. Quanto aos outros Zulmira de vez em quando mandava roupas usadas e Lela só escrevia para dizer: «Mamãi do meu coração quando aprecer portador de confiança mando você uma boa encomenda. Seu filhinho que lhe estima do fundo da alma e que lhe pede a bênção Manuel». Titia ben se amofinava com o que ela chama «ingratidão familiar».

 

– Este moço não me escreve uma cartinha com tripa.

 

Tripa na linguagem de Titia é dinheiro."

 

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22.12.24

Domingos van-Dúnem - Auto de Natal


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Domingos van-Dúnem (1925-2003), Auto de Natal (1972).

Ilustração da capa com desenho de António Trindade (datas desconhecidas)

 

Esta obra, que recebeu o prémio Óscar Ribas, havia sido antecedida pela publicação de A Praga (texto que surgiu em 1947, no jornal Diário de Luanda), sendo seguida de Uma História Singular (1975), Milonga (1985), Dibundu (1988), Kuluka (1988) e Panfleto (1988). Nesta edição anuncia-se também a futura publicação de uma peça inédita, datada de 1967, intitulada Kioxinda, sobre a qual não foi possível encontrar qualquer outra referência.

 

Durante o período colonial, Domingos van-Dúnem foi ainda fundador da revista Mensagem, associada à geração de 50, e exerceu intensa actividade política contestando o regime, o que o levou a ser preso, em 1961, na Baía dos Tigres.

 

Depois da independência, assumiu o cargo de director da Biblioteca Nacional de Angola e foi representante permanente de Angola na sede da UNESCO, em Paris, entre 1982 e 2002.

 

Esta peça teatral, de acto único, prefaciada pelo "Reverendo Padre Dr. Alexandre do Nascimento [futuro cardeal, 1925-2024]", surpreende pela inovação associada à temática católica que se desenvolve numa realidade simultaneamente europeia e africana – "[didascália introdutória] Música - Noite Silenciosa / Música Africana - Rufar de Tambores / Música - Noite Silenciosa" e pelo facto de surgir numa edição bilingue, contemplando o kimbundu, em versão de Maurício Caetano (datas desconhecidas), que sublinha a dimensão africana da sua génese.

 

Nesta edição reproduzem-se quatro fotografias em extra-texto, alusivas a uma das representações da peça, sobre a qual declarou D. Alexandre do Nascimento, no prefácio – " O Autor desta breve mas enternecedora, válida e digna peça, Artista que é, convidou quem ele bem entendeu. Bateu-me à porta, para à boa maneira de antigamente eu dar o sal do baptismo à criança, que lhe acabara de nascer, para o teatro nestas nossas terras. / Bem, acabar de nascer é força de expressão. Porque o meu caro Domingos van-Dúnem, cujo catolicismo não me parece progressista, continua nisto com as mazelas de muito cristão-velho: a criança só se baptiza quando já... gatinha. A peça que vem receber o sal do baptizo já apareceu três vezes a público. Como no teatro europeu, esta peça que algo tem de inicial, de ponto de partida, também nasceu junto da Igreja: é um prolóquio aos dramas transcendentes da Fé."

 

O prefaciador termina a sua apreciação com uma nota inusitada, que acentua não só a sua peculiar visão católica como a peculiaridade africana com que os ritos, da quadra religiosa que é o Natal, se abordam nesta obra – " Meu caro van-Dúnem: obrigado pela alegria intensa que me veio da leitura do seu auto. Será um benefício real que às latas de conserva do teatro que se serve habitualmente se possa juntar o sabor do gingibre e do diquezo."

 

Tudo isto sublinha os traços culturais e etnológicos subjacentes a este auto de Natal, através da metamorfose dos quais o autor traduz uma experiência ecumenicamene africana.

 

Deste breve auto, que se desenvolve ao longo de apenas nove páginas, transcreve-se uma passagem da banal vivência quotidiana, supersticiosa e algo animista, que antecede o nascimento do "MENINO":

 

"ESPOSA (mãe dos gémeos)

Bom dia, Papá Zuze!

JOSÉ 

Eh... Bom dia Mana! E vocês na vossa casa e no vosso corpo estão a passar bem?!... Ma...ri...a! Nos chegaram visitas!

(Responde do interior do quarto)

MARIA

Eh... O que é, Nga Zuze? Já vou sair.

... Nos chegaram visitas ?!...Quem é então?!... Vou  mesmo já sair...

(Lavradores, pescadores, gente de trabalho, passa à porta de José e saúda o casal. O pai dos gémeos dirige-se a José).

PAI DOS GÉMEOS

Em casa estamos a passar assim assim... Já sabe, Papá, nunca falta em casa desgraça (Expressão de fatalismo).

MÃE DOS GÉMEOS

Ainda ontem o lobo nos comeu uma cabra que estava a dormir no curral muito bem...

PAI DOS GÉMEOS

Uma  cabra que estava no seu estado interessante...

(Maria, surge, compondo as vestes e saúda).

MARIA

Oh!... É a minha amiguinha Cabaça, afinal?!...Vê só... E eu não sabia...

(Cabaça vai ao encontro de Maria que pergunta)

MARIA

E teu irmão, Caculo? Ainda está a atirar as pedras nas galinhas e a partir os ovos?

(Caculo, cabisbaixo, envergonhado, acolhe-se aos pais)

MÃE DOS GÉMEOS

Não, Mamã Maria!... Agora já tem mesmo juízo. Eh!... desde aquele dia mesmo que a Mamã lhe falou...

MARIA

Eu estava no quarto mas parece que ouvi como o lobo comeu vossa cabra que estava a dormir no curral... Mas, então, o curral não está bem tapado?...

PAI DOS GÉMEOS

Está mesmo, Mamã Maria!... A gente não sabe o que vai fazer... Parece mesmo que é um vizinho que está nos fazer só mal... Bom, suspeita, é mesmo pecado; mas parece mesmo que é uma velha Kafika... Eh!... É ela mesmo que nos está fazer mal... (dando provas) Quando passa no pé do curral morre uma cabra ou então temos só azar sem fazer nada...

JOSÉ

Qual quê, filha? Uma pessoa não deve pensar só como outra não é boa pessoa. Vamos, então, ainda pensar: qual é a força e o poder que tem a Kafika para fazer mal aos outros?!...

PAI DOS GÉMEOS

Eh, Papá Zuze... Aquela Kafika é uma cobra... Olha só: eu no dia, no dia que passou o sucedo da cabra, eu mesmo, sonhei que ela me tinha pedido uma filha de cabra que ainda não tinha nascido... Já viu, Papá?!

MARIA

Mas então, se é mesmo a Kafika que fez a confusão vamos fazer o quê mais para ela amanhã não fazer mais confusão!?... Vamos rezar para o nosso Pai que está no Céu tirar o coração mau que ela tem..."

 

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09.11.24

Orlando Mendes - Véspera Confiada


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Orlando Mendes (1916-1990), Véspera Confiada (1968).

Capa de Alfredo da Conceição (1919-2011).

 

Orlando Mendes, de quem Eugénio Lisboa (1930-2024), logo em 1969, noutro contexto (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290), viria a dizer  "(...) poeta cheio de dignidade recolhida que é Orlando Mendes (tão pouco citado, tão imerecidamente preterido por outros de interesse poético infinitamente menor...)", havia publicado até ao ano de 1968 os volumes de poesia Trajectórias (1940), Clima (1959), Depois do Sétimo Dia (1963), Portanto, eu vos escrevo (1964) e o romance Portagem (1966).

 

Posteriormente, em poesia, haveria de publicar Adeus de Gutucumbui (1974), A Fome das Larvas (1975), País Emerso I (1975) e II (1976), Produção com que Aprendo (1978), Lume Florindo na Forja (1980) e Faces Visitadas (1985).

 

Publicou ainda uma peça de teatro, Um Minuto de Silêncio (1970), e duas obras infantis Papá Operário Mais Seis Histórias (1980) e O Menino que não Crescia (1986).

 

Nascido na Ilha de Moçambique, veio a licenciar-se em Ciências Biológicas na Universidade Coimbra, especializando-se depois em botânica e fitosanidade, o que explicará a sua afinidade e proximidade com o autor do desenho da capa, Alfredo da Conceição, que se viria a consagrar como notável ilustrador naturalista de fauna e flora.

 

Nas badanas do presente volume, Eugénio Lisboa aprecia da seguinte forma o autor e a obra – "Numa terra em que quase tudo é ao nível do «pouco» e em que a seriedade literária, portanto, pouco se faz notar, Orlando Mendes consegue ser, ao mesmo tempo, o dono de uma Obra poética que se destaca junto ao nível das mais conseguidas, e o dono de um  rosto humano que quase ninguém conhece. Digamos que se trata de uma certa vitória."

 

E acrescenta – "É um homem simples, discreto, trabalhador, de pouco convívio. Nem sequer cultiva a convivência literária e, para o caso, tanto melhor! Não sei se lê muito, se pouco. Tem a sua vida à parte, às vezes difícil (supomos), e vai, em silêncio e sem escândalos (que ajudam), debitando, a espaços largos mas teimando, um discurso poético e uma conduta cada vez mais exemplares."

 

Para concluir – "Numa terra, numa época e numa sociedade em que o intelectual é òbviamente o homem a liquidar (já foi dito!), e o intelectual com dignidade o homem a liquidar duplamente, Orlando Mendes acrescenta ao peso substancial destes dois pecados, a chaga suplementar de uma exemplar modéstia. Confessemos que é demasiado!"

 

Para o autor, "a seiva elementar de África", que menciona no seu poema "história", parece ser intrínseca ao ritmo e ao sentido da poesia, não tendo de ser explícita nem tendo de afirmar continuamente a sua africanidade em referentes do real. Daí a quase ausência de menções explícitas a África, neste volume, ou de um léxico que, imediata e especificamente, para ela remeta.

 

Transcrevem-se, por isso, duas das poucas poesias que constituem excepções a essa prática:

 

chegada

 

Para o homem chegado de Lisboa

Trazendo mulher e filhos e calos

Nas mãos e gostos a vinho e broa

Nos lábios frios de madrugá-los,

 

Para o homem perplexo neste cais

De África, novos gostos terão

Entre lembranças e outros sinais

De estar, o vinho e também o pão.

 

Os pais sofram a crise intermitente

De viver ou morrer com a seara

E a saudade que os atormente.

 

Os filhos cresçam queimando a  cara

com o sol que o menino negro sente

às costas da Mãe que gera e ara.

 

manhã de junho

 

Ao longo do litoral avisado frequentemente,

Estão a decorrer exercícios de fogos reais

Para o mar calmo na minha infância insular.

E mufana cheira a pólvora e brinca na areia.

 

No campo, anda a máquina de colher o arroz

Alugada pela maquia e gastando combustível.

O homem semeou, porém, pardal-ladrão dispôs

Do grão maduro, apesar  de tambores de lata,

Petardos e tiros e de o avião ter destruído

Milhões de machos e fêmeas, com parathion.

 

Uma nuvem verdadeira ou de insectos subtis

Ou talvez de olhos apontados contra o sol,

Encobre o seco perfil de madala mais velho

Erecto sobre a savana que recebe os mortos,

O chikomu e o suor e as sementes guardadas.

 

A mil trezentos e tal metros distante dali,

A vaca pariu em boa hora, o leite escasseia.

Mas choveu há dias e rebentam capins tenros

E a lagarta invasora só aparece em Dezembro.

 

Uma palhota acabara de ser arranjada quando

Vibraram os dinas por toda a vasta planície

E não repicam os sinos e não tocam a rebate

E a dilacerante prenhez deita-se na esteira

Com os randes que vieram do Transvaal em nó

Junto ao seio, as mãos raspando o chão frio."

 

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03.10.24

Poesia de Moçambique (II)


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Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).

 

Até à data desta colectânea, Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994) havia publicado 40 e tal Sonetos de Amor e Circunstância e uma Canção Desesperada (1970), O Morto. Ode Didáctica (1971), A Arca. Ode Didáctica na 1.ª Pessoa (1971), Uma Meditação / 2 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados (1971).

 

Por ocasião da efeméride comemorativa dos 400 anos de publicação de Os Lusíadas (1572), lançou ainda As Quybyrycas (1972), longa obra que poderá ser interpretada como uma irónica anti-epopeia travestida de paródia épica. Jorge de Sena (1919-1978), que na altura se encontrava em Moçambique para assinalar aquele evento camoniano e cuja estreita relação com o autor, e outros escritores moçambicanos, já se mencionou, foi o autor do prefácio a esta obra.

 

A sua poesia e os seus textos encontram-se também dispersos pela colaboração que manteve com Caliban (revista co-dirigida e co-editada com Rui Knopfli [1932-1997]), A Voz de Moçambique, Colóquio/ Letras e Notícias da Beira, entre outras publicações.

 

Sobre a obra de Grabato Dias, pronuncia-se assim Maria de Lourdes Cortez, no presente volume – "A ironia, o humor selvagem, o cunho da teatralidade, são, na obra de Grabato Dias, uma componente indispensável da sageza – e da saúde: é pelo riso – e por ter acedido a um terreno onde pode enfim respirar – que o poeta imerge em certos aspectos do mundo extremamente importantes e dolorosos. Face ao marasmo da vida, ao charco liso e morno da convenção, ao mecanismo sistemático do engano, a atitude desenvolta e o cinismo frívolo funcionam como privilégio defensivo, processo de distanciamento; e ganham, mesmo no seu desenrolar absurdo, uma lógica inquietante."

 

Nesta colectânea apresentam-se seis sonetos e uma longa poesia com estrutura de soneto, reproduzindo-se abaixo o poema Inhaminga, soneto que, à data deste volume, permanecia inédito, e do qual, parafraseando os trocadilhos tão caros ao autor, se poderá afirmar que, ao invés de uma conservadora e estagnada poesia de pousio, apresenta uma "ousada poesia de ousio":

 

POR INHAMINGA

 

Aqui me vi nascer nas gratas dobras

duma ternura em sândalo e pau rosa

com papaias do amor que ninguém usa

afora as mães, que usando embora as sobras

 

de um amor desusado, dão num sousa

um leite silva de amansar as cobras.

Aqui, sangue jocoso enviças as obras

do que deixei atrás votando à musa

 

esta grata malícia ou este ousio.

Nasço onde me prefiro. Aqui me adulo

onde acordado espero mais do frio

 

que da quente matriz onde me chulo.

Aqui nasço  e renasço sem fastio

do desfastio que é estar vivo e fulo!

 

Ainda num registo de anti-epopeia iconoclasta, onde uma orgia de neologismos, trocadilhos, insinuações e inovações lexicais se entrelaça num provocativo e quase pornográfico delírio cacofónico, transcreve-se também a apoteótica Apoetese de Plurais:

 

ARIA EM EL

APOETESE DE PLURAIS

 

Dilatação das coronárias

fumigação de coronéis

coroação de funcionárias

que a vinte e seis papam donzéis

corneações já partidárias

de cavalinhos de carrosséis

osgas-cabrões, ratas falsárias

martas zézinhos ritas manéis

trazem de luto as dores canárias

e no escorbuto ouro de anéis

o absoluto mudou as árias

das cifras várias e faz pastéis

com as razões mais extraordinárias

e comissões de veterinárias

apalpam pasmos espasmam corcéis

do amor recibo das semennárias

traças de arquivo que lambém méis

grossos, lascivos, das luminárias

abelhas sábias rés de bordéis

que voam sós nos céus das várias

autoridades de cascavéis

plenipo putenciárias

filhos de apuros bem o sabeis

a morte é lenta e as três marias

são quase virgens, rica vintage

de trinta e três, licor de leis

licor de lérias primor das tárdias

hemo petizes perdizes débeis

da caça fina grossa de asnárias

discursativas odes cruéis

descansativos gódes por árias

e ventos vários showsando seis

glândulas nulas lulas mamárias

com leite ralo de hall de hotéis

galeões canela e naus corsárias

porões à vela stripastíseis 

de membros mísseis desorbitais

falos passíveis de mil e seis

centos incríveis conventuais

maneiras cruas mas cozinháveis

de servir frios mas cozinháveis

a servir mortos mas comestíveis

a servir podres mas digeríveis

a servir chochos mas toleráveis

rebeldes sim mas algemáveis

no alguidar das leis agrárias

pataca a mim pataca às várias

patas e ratas patarratárias

zitas e parasitárias

parras com guitas nas nadegárias

autoridades alfandegárias

da raia aflita dos indizíveis

polvos gigantes indivizíveis

que irmãos nos cindem o bem possível

no cono inteiro da alimária."

 

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01.09.24

Obra Poética de Francisco José Tenreiro


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Francisco José Tenreiro (1921-1963) et al., Obra Poética de Francisco José Tenreiro (1967).

 

Esta compilação póstuma da poesia do autor apresenta a seguinte nota prévia – " VISA A PRESENTE EDIÇÃO DAR MAIS DURADOURA EXPRESSÃO À HOMENAGEM AO PROF. E POETA FRANCISCO JOSÉ VASQUES TENREIRO, PROMOVIDA EM SEIS DE MAIO DE MIL NOVECENTOS E SESSENTA E SEIS PELA ASSOCIAÇÃO DOS ANTIGOS ALUNOS DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA ULTRAMARINA, EM SESSÃO PÚBLICA A QUE DEU A HONRA DE PRESIDIR O DIRECTOR DO INSTITUTO, PROFESSOR DOUTOR ADRIANO MOREIRA. NESTA EDIÇÃO SE ARQUIVAM, POIS, OS DOCUMENTOS NESSA SESSÃO, ANTECEDENDO A  OBRA QUE NESSA MESMA OCASIÃO SE DECIDIU PUBLICAR. SÃO DEVIDOS AGRADECIMENTOS À EXCELENTÍSSIMA SENHORA DONA MARIA MADALENA COSTA LANÇA DE VASQUES TENREIRO PELAS FACILIDADES OFERECIDAS A ESTA PUBLICAÇÃO. "

 

Com efeito, este volume, para além da obra poética do autor, apresenta também uma notícia publicada no Diário de Lisboa, em 7 de Maio de 1966, um texto intitulado O Geógrafo Francisco Tenreiro, da autoria de Raquel Soeiro de Brito (n. 1925) e o texto Francisco José Tenreiro, Poeta, da autoria de Mario António Fernandes de Oliveira (1934-1989).

 

Reproduz, em seguida, o conteúdo integral das obras Ilha de Nome Santo ("Coimbra – MCMXLII") e Coração em África ("Lisboa – 1964"). No seu texto, Raquel Soeiro de Brito refere que, no âmbito da literatura, para além destes volumes, Francisco José Tenreiro havia publicado ainda o conto Nós Voltaremos Juntos, em 1942, Tarde de Tédio e O Velho Pioneiro Morreu (Theodore Dreiser), em 1946, e a antologia Poesia Negra de Expressão Portuguesa, em co-autoria com António Domingues (1921-2004) e Mário Pinto de Andrade (1928-1990), em 1953. Acescenta ainda que o escritor deixara prontas para publicação as obras Coração em ÁfricaProcesso Poesia, uma antologia de poesia africana.

 

Uma vez que, anteriormente, já aqui se publicou um poema que integra Ilha de Nome Santo, Canção do Mestiço, transcreve-se hoje um poema de Coração em África, Mamão Também Papaia, escrito em São Tomé na Páscoa de 1962, ficando para outra oportunidade poemas mais longos, e evocativos da poética de Cesário Verde (1855-1886) e Fernando Pessoa (1888-1935), como Amor de África:

 

"Mamão

também papaia.

 

Que sabor é o teu mamão

também papaia

que andas na boca dos pobres

e és delícia matinal

do Senhor Administrador?

 

Qual a tua sedução

mamão também papaia?

 

Será esse teu ar estranho

de seres melão e nasceres nas árvores

ou esse rosto de mama de mulher preta

recordando ao Senhor Administrador aquela

cujo seio se abriu em filhos mulatos

brincando pelas traseiras da Casa Grande?

 

Que força é tua

mamão também papaia?

 

Será porque alivias o rotundo ventre

do Senhor Administrador

e soltando a barriga do Senhor Administrador

libertas a neura e o sorriso

do Senhor Administrador

deixando-o mais macio e de olhos parados

para o dia de sol e quentura do Senhor?

 

Oh! Mamão também papaia

na boca de pobres e de ricos

de pretos de brancos e de mulatos,

fruto democrático da minha ilha!"

 

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10.08.24

Revista Cultura (IV)


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O número 41 desta revista apresenta um conto de Onésimo Silveira (1935-2021), Superstição, e um poema de Ovídio Martins (1928-1999).

 

Uma vez que o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira, publicado no número 28 da revista Cultura, já foi aqui mencionado, reproduz-se hoje o poema de Ovídio Martins, cuja nota biográfica ficou registada em artigo anterior.

 

Intitulado Os Homens e a Montanha, o poema traduz todo o sofrimento e desespero dos trabalhadores rurais de Cabo Verde num registo de insistente monotonia, claramente associável ao movimento neorealista.

 

OS HOMENS E A MONTANHA

 

Os homens

cavaram sulcos na montanha

olharam o céu sem esperança

e esperaram o dia de amanhã.

 

Mas o dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Então os homens

foram à montanha

e cavaram mais sulcos

e esperaram o outro dia de amanhã.

 

Mas o outro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

E os homens cavaram

cavaram com raiva

sem dizer palavra

até as mãos sangrarem

mas todos sabiam que esperavam o terceiro dia de amanhã.

 

Mas o terceiro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Já os homens

não esperavam o quarto dia de amanhã?

Sim!

Curvados sobre a terra

cavam, cavam sempre

e continuarão a cavar

até que o seu dia de amanhã

chegue de certeza

num dia preparado

ao cimo da montanha.

 

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01.07.24

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (II)


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Destaca-se neste artigo a produção literária de Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), que na presente colectânea apenas tem reproduzida a narrativa Dragão e Eu, conto que entretanto já havia sido publicado na revista Vértice, números 4 a 7, de Fevereiro de 1945.

 

Médico, natural da ilha do Fogo, Teixeira de Sousa foi presidente da Câmara Municipal de S. Vicente durante mais de cinco anos.

 

Pode dizer-se que as suas publicações se dividem em dois grandes períodos – um, onde surgem essencialmente narrativas curtas, que decorreu antes da sua aposentação clínica; outro, onde surgem maioritariamente romances, que decorreu depois dessa aposentação.

 

De facto, até meados da década de 1980, a sua produção literária editada resumiu-se praticamente a contos, dispersos por revistas e antologias, a um conto – Na corte d'El-Rei D. Pedro, publicado no volume Natal, editado pela Lusofármaco em 1970, de que foi co-autor com Orlando de Abuquerque (1925-1997) e Pedro Mayer Garção (1905-?), e à colectânea Contra Mar e Vento (1972).

 

A maior parte da sua obra ficcional surge a partir da década de 1980, num conjunto onde, para além de Capitão-de-mar-e-terra (1984), Djunga (1990) e Ó Mar de Túrbidas Vagas (2005), sobressaem os títulos de uma trilogia romanesca – Ilhéu de Contenda (1983), Xaguate (1987) e Na Ribeira de Deus (1992).

 

Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos do conto que surge nesta antologia:

 

"Eu e o Dragão fomos companheiros inseparáveis nas jornadas para o interior. A princípio caminhou tudo muito bem, mas depois comecei a notar o ambiente hostil que me rodeava. Duma ocasião, apedrejaram-me na estrada e por acaso Dragão correu atrás do homem que se agachou por trás de um tamarindeiro. Em parte dava razão àquela gente. esperavam ansiosos pela chuva, que  não vinha.

Mesmo que chovesse, era já tarde. Compreendia que a situação se tornava cada dia mais difícil e eu tinha que trabalhar de qualquer forma. Dragão de vez em quando espetava as orelhas e punha-se a farejar por todos os lados. Eu sacava da pistola e parava a cavalgadura. Depois continuava, estrada fora, sempre atento às pessoas que passavam.

De regresso tinha o amor gostoso da Guida. Minha tia soube que eu andava ligado a uma rapariga de Fonte-Lexo. Falou comigo quase em segredo e com muito receio que disparatasse. Se a minha mãe soubesse, teria grande desgosto. Que atentasse nos homens que se amigavam com mulheres dessa laia e que nunca mais se libertavam dos seus braços. Não fizesse uma coisa daquelas porque mais tarde havia de me arrepender. Não me lembro do que lhe respondi mas o que é certo é ela nunca mais me ter tornado a falar no assunto.

As avaliações acabaram e tudo depois seguiu o caminho que já se esperava.

A vila enchia-se de gente que abandonava os campos sem água. Vinham esfarrapados, magros, com chagas enormes fedendo a podridão. As mães traziam os filhos pequenos à cabeça, em grandes balaios. Paravam à porta dos sobrados e mostravam os cestos de carriço onde se viam olhos gulosos emergindo de carinhas murchas de fraqueza. Deambulavam pelas ruas num cortejo de tristeza e desespero.

Pinoti-Capador morreu inchado, a brincar com uma pedra. Perdiam o juízo e ficavam que nem umas crianças. Os meninos ganhavam rugas e pareciam uns anões velhos. De noite recolhiam-se no casarão da Escola e no outro dia, ia-se ver, eram vivos e mortos estendidos a esmo pelo chão.

Recomeçava a peregrinação pelas portas das casas e repetima-se as cenas que então se viam. Meninos chupavam tetas vazias, mães que recusavam o comer aos filhos, velhos que morriam nos largos públicos, na presença de toda a gente.

Quando lhes dava para emagrecer, iam a ponto de pouco faltar para uns esqueletos perfeitos. Mas depois inchavam e ficavam luzidios como a pele de um tambor. A seguir estiravam-se de comprido, os olhos escancarados para o céu aberto, sem nuvens, donde não caía a chuva.

Foi um tempo terrível aquele, para as gentes da ilha."

 

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12.06.24

poesias de m. antónio


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Mário António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), poesias de m. antónio (1956).

Capa de Israel de Macedo (datas desconhecidas).

 

Consagrado poeta, natural de Maquela do Zombo, fez os estudos liceais em Luanda, para onde a sua família se havia mudado entretanto, publicando as suas primeiras poesias ainda enquanto estudante liceal.

 

As suas actividades políticas levaram-no a estar próximo do Partido Comunista Angolano e do Movimento Popular de Libertação de Angola. A partir de 1963 passou a residir definitivamente em Portugal, estando ligado à Casa dos Estudantes do Império e às actividades dos movimentos de libertação ali desenvolvidas. No mesmo ano foi galardoado com o prémio Ocidente para poesia, do Secretariado Nacional de Informação, galardão que, na área do ensaio, foi também atribuído ao professor universitário Torcato de Sousa Soares (1903-1988).

 

Apesar das ligações do autor aos movimentos independentistas, Marcello Caetano (1906-1980), que haveria de suceder a António de Oliveira Salazar (1889-1970) como Presidente do Conselho de Ministros, pronunciou-se assim, em carta datada de 2 de Março de 1965, sobre a obra ficcional de Mário António:

 

"Já conhecia o poeta, o ensaísta, não me fora dado apreciar o prosador de ficção. Claro que o ser poeta é uma condição: e essa condição transluz na própria prosa. Mas neste livro [Crónica da Cidade Estranha, referido aqui: M. António - Crónica da Cidade Estranha - Literatura Colonial Portuguesa (sapo.pt)], embora nos olhos de quem viu haja sempre sonho, a realidade aparece na crueza da observação. E que admirável linguagem! Como a vida dessa Luanda negra e mestiça que eu ainda conheci a impor-se na cidade mal definida dos anos 30 tem no Mário António um contista fiel, amoroso e eloquente! Eloquência sem retórica, a eloquência da vida, dessa vida que nos faz conviver com as figuras evocadas, sentir as suas dores, partilhar dos seus anseios, inquietar-nos com as suas inquietações, entristecer-nos com os seus desalentos e vibrar com as suas alegrias!

Estranho que ao seu livro não tenha ainda a crítica dado todo o valor que ele tem como documento e como obra de arte. Eu considero-o um dos mais notáveis casos literários relativos à crise de transição por que passam os africanos."

 

Naquele mesmo ano de 1965, em carta datada de 7 de Junho, afirmou Roger Bastide (1898-1974) sobre o referido livro: "Votre livre m'apporte une autre Afrique que celle du folklore ou celle de la révolte - une troisième Afrique, qui a gardé toute la poesie de la première (mais maintenant une poésie intérieure) et toute l'amertume de la seconde (mais maintenant un simple goût de cendre dans la bouche et dans la bouche et dans le coeur)."

 

Depois do primeiro volume aqui destacado, e até 1974, publicou as seguintes obras em verso - Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo, Poemas Angolanos (1961), prémio Camilo Pessanha de 1961, 100 Poemas (1963), prémio Ocidente / Poesia de 1963, Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Rosto de Europa (1968), Coração Transplantado (1970).

 

Em prosa publicou também, até 1974, Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), Crónica da Cidade Estranha (1964), Farra de Fim-de-Semana (1965), e Luanda - Ilha Crioula (1968).

 

Várias outras obras publicou depois de 1974, inclusive na área dos ensaios e estudos académicos, uma vez que se doutorou em estudos Portugueses no ano de 1987. Na sequência deste percurso, foi professor de Literatura Africana de Expressão Portuguesa, na Universidade Nova de Lisboa, e presidente da Secção de Literatura da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi ainda Director dos Serviços para a Cooperação com os Novos Estados Africanos da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Antes de publicar este primeiro volume de versos, havia colaborado, em 1952, nas revistas Távola Redonda, de Lisboa, e Mensagem, de Luanda, onde a sua poesia foi divulgada, escrevendo nesse mesmo ano o famoso poema Canto de Farra, posteriormente musicado, cantado e gravado (1975) por Ruy Mingas (1939-2024), com o título Poema da Farra.

 

Segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, recebeu ainda, a título póstumo, o prémio Camões (embora o seu nome não conste da lista oficial de galardoados). A mesma Fundação instituíu, em 2001, um prémio literário com o nome de Mário António, que foi atribuído, nessa sua primeira edição, a Mia Couto (n. 1955), pelo romance O Último Voo do Flamingo (2000).

 

Neste volume publicam-se dezanove poemas, escritos entre 21 de Outubro de 1951 e 8 de Setembro de 1954, que, explicitamente, ora evocam memórias de infância ora transmitem impressões amorosas. De uma forma mais velada, outras ideias e situações se transmitem, como no poema que abaixo se transcreve:

 

"O AMOR E O FUTURO

 

Calar

esta linguagem velha que não entendes

(Tu és naturalmente de amanhã

como a árvore florida)

e falar-te na linguagem nova do futuro

engrinaldada de flores.

 

Calar

esta saudade velha

e a nostalgia herdada dos brancos marinheiros

e de escravos negros

de noite sonhando lua

nos porões dos negreiros.

 

Calar 

todo este choro antigo

hoje disfarçado em slow, bolero e blue

(Teu sentimento

e esta pressão dorida que não mente:

teus seios contra o meu peito

a tua mão na minha

o calor das tuas coxas

e os teus olhos ardentes...)

 

Calar tudo isso

(Tu és naturalmente do futuro

como a árvore florida)

e ensaiar o canto novo

da esperança a realizar

Cantar-te

árvore

espera de fruto

ante-manhã

 

Nascer do sol em  minha vida."

 

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04.05.24

José Manuel Pauliac de Meneses Alves - Julinha Castanha de Cajú


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José Manuel Pauliac de Meneses Alves (datas desconhecidas), Julinha Castanha de Cajú (1973).

 

Apesar de existirem algumas referências a um José Manuel Pauliac Matos Chaves de Menezes Alves enquanto membro do Partido Socialista e candidato à Presidência da República, não se encontra grande informação sobre este autor.

 

Sabe-se, contudo, que ingressou no Colégio Militar em 1955 e frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa entre 1963 e 1968. Não há qualquer registo bibliográfico sobre o autor na PORBASE, nem este volume se encontra catalogado nessa fonte.

 

O exemplar que aqui se reproduz tem uma dedicatória autógrafa ao Comandante Silva Horta, datada de 2 de Agosto de 1973, na cidade do Mindelo. A dedicatória impressa na epígrafe do volume, que foi integralmente produzido nas Oficinas da Gráfica do Mindelo, apresenta o seguinte texto: "AO PROFESSOR MARCELLO CAETANO / Esperança de melhores dias para Cabo Verde. / Certeza de que o seu esforço de Político e de / Homem é o único que serve Portugal. / O único digno. / Dum Homem digno para um povo digno."

 

Entre os trinta e três poemas que compõem este volume surgem vários onde se abordam memórias e descrições de Cabo Verde, como Cabo Verde, Céu de Cabo Verde, Almoço no Mindelo em Casa da Aninhas, Evocação do Mindelo para Manuel Bandeira, Amanhecer de Domingo ou Pescador de Barlavento.

 

Outros há que apresentam retratos e ambientes de personagens ou espaços mais íntimos, como Menina Crioula, Menina Pobre do Bairro de Chãm de Alecrim, Filha de Rosa, desculpa-me, Julinha Castanha Cajú, Minha Nana de trazer por casa, Fraldas de Chiquinho em dó maior, Papanuene era seu nome, Botequim de Aguinaldo Pires, Relance da minha casa de telha de pau na rua Vasco da Gama ou Clarinha filha de Zézé Tavares, e Toco.

 

Um outro conjunto apresenta poemas abertamente constestários, onde a subtileza da crítica que perpassa por alguns dos anteriores aflora corajosa e amargamente, como em Revolucionário de pastilha elástica, Alucinogéneo para um borocrata [sic] às 6 da tarde, Acuso, Arejar esta terra ou Ainda é tempo.

 

Da leitura de todos eles, independentemente da sua poética mais ou menos conseguida, evola-se um sentimento de surpresa, pela fuga à lírica comum, à linguagem conservadora e às imagens e (pre)conceitos previsíveis, o que gera uma certa surpresa sobre o silêncio e o esquecimento que envolve esta obra.

 

Transcreve-se, de seguida, um poema que muito diz através do seu inesperado Portinglês:

 

"Black is na verdade beautiful

 

Quero um deus negro, a black church i'll need a black god.

com black hair, nos modos, cruz de pau negro,

com black dreams e misturá-lo na multidão.

Black ir de black à primeira comunhão.

 

Black is right, is reason to fight and forgive, nossos pecados,

encardidas nossas mãos.

Black is beautiful, como na canção,

é Brasil, é Angola, C. Verde, qualquer land onde esteja um irmão,

is my way to you, a kind of poem, a kind of blue.

 

É modo de ser, voz, negro é cor, happening, rua negra, casas também.

Harlem de revista, num mundo tecnicolor, cor de terra rica,

ouro, açúcar de cana, Morabeza, black is great, man...

O man black is great, o man black is great, yes man, black is great.

Let's help the world to become black.

Cor de caixão, de fumo, de algumas poeiras,

black is tomorrow and today,

i'll buy a black horse with wings, to teach me how to fly,

é tristeza, é trompete de New Orleans,

o man i love this colour, yes man is really great, yes man

just great.

 

Black é 500 anos de História.

Not stories man, no man.

Black is my colour, great colour man,

beautiful colour,

just beautiful colour, yes man, a kind of love a kind of blue,

a poem a true poem, para homens bons like you..."

 

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25.04.24

Kitatu Mu'Lungo


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Kitatu Mu'Lungo (1974).

 

Até esta data, David Mestre (n. 1948) publicara o livro de poesia Crónica do Ghetto (1973), sendo também coordenador e editor dos cadernos de poesia Bantu e Kuzuela, João Carneiro (n. 1947) publicara o livro de poesia Dezanove Recontos (1968) e Maria Ângela Pires (n. 1944) havia publicado Poemas (1968), em edição de autora.

 

Opúsculo singular de vozes singulares do período decorrido entre a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a independência de Angola, declarada a 11 de Novembro de 1975, congrega, ao longo das suas 56 páginas, textos onde, por entre a opressão, a esperança cintila nas palavras de David Mestre  "Porém / um dia pedir-te-ei gajajas e goiabas e fa- / remos um almoço de frutos que te hão-de es- / corregar do vestido e crescer-me nos pés / e cheios de alegria e liberdade abriremos / uma estrada / plantaremos uma árvore / não escreveremos um livro / mas faremos uma nação.", um desencanto anárquico e irónico perpassa pelo escatológico, sexualizado e quase violento registo de João Carneiro e uma inquieta incerteza toma voz na cidade de Maria Ângela Pires.

 

De David Mestre transcreve-se um excerto do primeiro texto de O pulmão (narrativa autogeográfica), datado de Catete, Outubro de 1971 / Luanda, Março de 1972:

 

"Que posso fazer por ti?

estas as palavras frequentes que digo es-

tirado na cela ao pôr da noite em África

latitude pequena para o teu grande rosto

e acho que o mais que posso fazer é um

pedido ao cabo

pergunta-lhe se podes vir

 

ele recomendar-te-á ao sargento e dei-

xar-te-ão visitar-me estirado na cela cheio de

mim a pensar no Congo ou ainda ou já no

Congo

o meu corpo aguardar-te-á mas lembra-te

não sou eu porque eu abri um buraco no tacto [sic]

anteontem por onde saí

era preciso respirar assim levei o pul-

mão real este é de plástico

não fales senão talvez ouçam o meu silên-

cio e  te façam perguntas sobre a minha deser-

ção de mim

(...)"

 

De João Carneiro transcreve-se um dos Três Anti-Autos, datados de Luanda, Setembro de 1974:

 

"DO INFERNO

marimbo-me nas certezas fálicas do teu corpo amorfo inerte nem estás morta porque nunca soubeste ressuscitar e esta merda será talvez uma terra um país um povo e mijaremos felizes sobre as massas"

 

De Maria Ângela Pires transcreve-se o segundo dos Sete Poemas para a Cidade em Agosto, datados de Luanda, Agosto de 1974:

 

"Povoada de tiros

os olhos abertos

longamente acesos

por séculos de memória

 

Agora a revolta

nos punhos secos das mulheres

nas pernas magras nervosas

das crianças

a raiva

nos dentes dos homens

 

o grito de alívio

a saber a morte"

 

© Blog da Rua Nove