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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

12.06.25

Revista Cultura (VII)


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Este número 9, publicado em 1957, apresenta poemas de autores associados a Angola, Emílio [Machado] da Costa Rosa (1932-1998), Cabo Verde, Manuel Lopes (1907-2005) e Moçambique, F. A. Barradas (datas desconhecidas), que haviam sido anteriormente publicados no Boletim Cabo Verde e na revista ELO (Moçambique).

 

Curiosamente, embora Emílio da Costa Rosa, que assina o poema Para uma tarde de neve, tenha nascido em Angola, foi em Moçambique que desenvolveu parte da sua carreira profissional, quer como magistrado quer como advogado, depois de ter passado pelo Colégio de S. Luiz, em Espinho, onde completou a Instrução Primária e fez o curso do Liceu, e pela Faculdade de Direito, em Lisboa.

 

F. A. Barradas, que assina Meus tristes poemas, não aparece mencionado em muitas fontes, embora o seu nome surja na revista Pela Patria, publicação mensal da comunidade portuguesa de Xangai, também relacionada com Macau, que foi editada nos anos de 1940 e 1941.

 

Embora já se tenham apresentado aqui passagens de outros trabalhos do consagrado Manuel Lopes, quer em verso quer em prosa, transcreve-se agora mais um poema do autor, um olhar claridoso sobre a emigração que ainda hoje caracteriza a realidade de Cabo Verde:

 

Poema de quem ficou

 

Eu não te quero mal

por este orgulho que tu trazes,

por este ar de triunfo iluminado

com que voltas...

 

... O mundo não é maior

que uma pupila dos teus olhos:

tem a grandeza

das tuas inquietações e das tuas revoltas.

 

...Que teu irmão que ficou

sonhou coisas maiores ainda,

mais belas que aquelas que conheceste...

Crispou as mãos à beira-mar

e teve saudades estranhas, de terras estranhas,

com bosques, com rios, com outras montanhas,

– bosques de névoa, rios de prata, montanhas de ouro –

que nunca viram teus olhos

no mundo que percorreste...

 

© Blog da Rua Nove

16.05.25

Poesia de Moçambique (III)


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Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).

 

Rui Knopfli (1932-1997) já foi aqui referido múltiplas vezes, pelo que este artigo apenas reproduzirá um dos quatro poemas apresentados no volume.

 

Dois deles, Outubro 1969 e Disparates seus no Índico, constam do livro Mangas Verdes com Sal (1969), anteriormente mencionado (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290), um outro, Normas para a Regulamentação do Discurso Próprio, surgiu na revista Caliban, números 3/4, sendo o excerto de O Escriba Acocorado um inédito.

 

No ensaio introdutório a esta selecção de Knopfli, declara Eugénio Lisboa (1930-2024), a propósito de anteriores obras do autor – "A poesia de Rui Knopfli, chegada depois das vozes declamatórias (indignadas ou simplesmente queixosas) de José Craveirinha ou de um Orlando Mendes, vinha dizer-nos, com modo dorido, que lhe não era possível outro discurso que não fosse o mais adequado a uma visão «um tanto crepuscular», segredando «palavras encardidas e magoadas», por certo as mais estrategicamente adequadas a convirem «este tédio profundo do tempo e da vida / mal vivida»."

 

Tendo Disparates seus no Índico sido já reproduzido, e não estando nenhum dos seus três outros poemas directamente relacionado com África, a opção é transcrever um poema explicitamente relacionado com os acontecimentos da crise académica de 1969, cujas manifestações e contestações ao regime decorreram entre Abril e Setembro daquele ano.

 

"OUTUBRO 1969

Súbito sobressalta a cidade

um pavor atónito. Existia

antes, latente, mas agora

vemo-lo, cefalópode

emergindo da sua tinta,

hélices sinuosas cortando

lentas o cansado óleo.

Mergulharemos na noite,

mergulharemos numa noite

inóspita e pejada de gemidos;

só terá coordenadas, características

e cheiro, o nosso medo.

O nosso medo ondulando

no óleo percutido pelas braçadas

tentaculares, o nosso medo

convergindo no feixe dos sentidos.

Não há tomates, não há tomates

para ele, quanto mais

para o pito da menina.

O nosso medo, membrana

impenetrável, saco sem fundo,

trampolim imprevisível.

A paisagem é a mesma,

o monstro todavia desencadeia

já a sua ofensiva. Não o vêem,

não o vêem os demais,

só o nosso medo lhe conhece

o santo e a senha, o rosto sem nome,

os olhos sem cor, os dentes sem boca.

Como ratos lobotomizados

colamo-nos à humidade da parede.

Não há apelo, não há redenção,

não há uma saída, a não ser

a parede, como fim.

A cidade é a mesma,

não viremos no necrológio

pois estamos vivos posto

que mortos. Se murmurados,

nossos nomes, ninguém os ouvirá,

pois estamos mortos posto

que vivos. Seremos a lembrança

a evitar, o hiato no diálogo,

a ausência preenchida.

Por nós, seremos bem comportados

e, no fim de tudo isto,

agradeceremos aos polícias

a porrada e os conselhos."

 

© Blog da Rua Nove

29.04.25

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (III)


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Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) frequentou os estudos secundários no Liceu Gil Eanes, na cidade do Mindelo. Funcionário administrativo desde 1945, foi administrador concelhio na Guiné, entre cerca de 1950 e 1970, ano em que, por questões políticas, foi transferido de Bolama para o concelho de Chibia, em Angola, onde se manteve até 1975. Neste ano mudou-se para Portugal, vivendo no país até se reformar.

 

Depois de aposentado regressou a Cabo Verde, sendo delegado do governo em S. Vicente e secretário-geral da Assembleia Nacional Popular, presidida por seu irmão Abílio Augusto Monteiro Duarte (1931-1996), um dos fundadores do PAIGC. Durante a década de 1990, devido a questões de saúde, regressou novamente a Portugal, ali permanecendo até 2014.

 

Colaborou nas revistas Claridade, Cabo Verde, Presença Crioula (Lisboa), Morabeza (Rio de Janeiro) e Raízes, entre outras, tendo publicado em 1999 o primeiro e único volume, Manduna de João Tienne, de uma planeada e anunciada trilogia, de características quase auto-biográficas, que acabou por ficar incompleta e inédita.

 

Sobre Pedro Duarte, refere a nota introdutória a este autor – "Um dos mais «bissextos» escritores cabo-verdianos, que, todos, poderiam aproveitar o adjectivo aprendiz de Carlos Drummond de Andrade, grande poeta da língua portuguesa, para exprimirem o peso da pedra tumular da vida de todos os dias que vai calcando lentamente, mas com uma paciência de formiga, a outra face da vida mais liberada e mais ampla. Nasceu na ilha de Santiago e é funcionário administrativo na Guiné Portuguesa. Como Virgílio Avelino Pires, como Manuel Lopes, como Jorge Barbosa, como todos nós, é um aproveitador de clareiras – quando elas se dignam aparecer.

É colaborador ocasional da revista mensal «Cabo Verde»."

 

O conto Migração, de que se transcrevem abaixo os primeiros parágrafos, havia sido anteriormente publicado no Boletim Cabo Verde, ano IV, n.º 39, de Dezembro de 1952, tendo sido galardoado com o 1.º prémio de "O Melhor Contista de 1952", instituído pela mesma publicação.

 

"A terra ressequida do fundo do vale levantou-se em nuvens de pó que o vento atirou para o céu mentiroso. Havia sete anos, sete dias, sete repartições do mundo que a chuva não caía. Os homens estavam desvairados e as plantas loucas cravando no seio da terra as raízes sequiosas.

Do céu pedrento de há pouco restam nuvens esfarrapadas. Agora o mar rebate-se com menos fúria de encontro à penedia da encosta.

Um dos homens do sítio retirou a cabeça da pequena janela donde estivera a observar a tarde que prometera a chuva esperada. Coxeou sustendo-se num caixote vazio a servir de assento e depois numa arca velha até junto da única cadeira sem respaldo a um canto do aposento desolado.

No quarto adjacente o sol brando da tarde voltou a entrar confiante pela armação do telhado, desenhando no chão o rectângulo das bitolas.

A porta interior de ligação fora arrancada e substituída por um tapado em serapilheira. Um aparte do muro do quintal desmoronou abrindo caprichosamente uma segunda entrada. Os dois anexos que em tempos serviram para arrecadação de produtos da lavoura ficaram também sem a cobertura e as portas. No quarto devassado da pequena moradia ervas bravas cresceram no alto dos muros e ali estiolam tostadas peloSol.

As telhas foram vendidas. A porta de comunicação entre os dois aposentos do casinhoto servira para o fundo do esquife de nhâ Bajim."

 

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02.03.25

Revista Cultura (VI)


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O número 21 desta revista apresenta o poema Pressentimentos, de Maria Madalena, que havia sido já publicado na revista Cabo Verde.

 

Este pseudónimo, de minimalista inspiração bíblica, corresponderá a Maria Madalena Valdez Trigueiros de Martel Patrício (1884-1947), a primeira escritora portuguesa nomeada, por Bento Carqueja (1860-1935), para o Nobel da Literatura, nomeação que ocorreu em 1934 e se repetiu em anos subsequentes.

 

Curiosamente, a escritora ter-se-á estreado com a publicação de uma obra em língua francesa, Le Livre du Passé Mort (1915), a que se seguiram Impressões de Arte e de Tristeza (1915), Sombras na Estrada (1920), Poemas da Côr e do Silêncio (1922), Os Sete Demónios (1926), Sagradas Pedras (1930) e Rosário da Vida (1935), entre vários outros títulos.

 

Embora não se conheça qualquer registo que associe a autora a África ou a Cabo Verde, e justifique a sua publicação na citada revista, transcreve-se o referido poema, considerando eventuais referências, ambíguas e equívocas, à insularidade e os valores metafóricos que estas podem traduzir:

 

"Terei de aqui ficar a vida toda

À espera de partir?...

Olhando o mar,

Esperando o navio que há-de chegar.

A carta que há-vir?

Terei de aqui ficar ouvindo

O lento caminhar das horas?

Ouvi-las soluçar

A minha vida inútil e vazia

E bater devagar,

Os silêncios e espantos que ela cria?

Terei de aqui ficar a vida toda

Ouvindo as horas lentas repetir

O oco, da minha pobre vida

Falhada?

Terei de aqui ficar à espera da chegada

Daquele barco que nunca há-de chegar

E que há-de encaminhar

A minha vida a rumos ideais?

Terei de esperar essa carta

Que não chegará mais?

Terei de esperar que se abra essa porta

Que teima em não se abrir?

Já sinto no meu sangue

As horas lentas caminhar,

O mar rugir,

A carta que não tarda,

A hora que se apressa,

A vida que começa,

E o barco, que enfim! se fez ao mar!...

E hei-de partir!

E hei-de viver!

E hei-de aqui ficar a vida toda

à espera de morrer..."

 

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13.02.25

Ernesto Lara Filho - Seripipi na Gaiola


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Ernesto Lara Filho (1932-1977), Seripipi na Gaiola (1970).

 

Até esta data, o autor havia publicado dois "cadernos de poesia" intitulados Picada de Marimbondo (1961; esgotado) e O canto de Matrindinde (1963; retirado de circulação), afirmando a propósito da publicação deste terceiro caderno que é o volume "com que pensa encerrar a sua primeira trilogia de poesia".

 

Também a propósito dos títulos das sua obras declarou Ernesto Lara Filho – "A angolanidade implícita e explícita da minha poesia pode divisar-se até nos títulos dos três livros publicados e já não pode ser discutida. / É hoje uma afirmação e vem de longe, desde que em 1959 fui incluído na primeira Antologia de poesia angolana editada em Lisboa pela Casa dos Estudantes do Império."

 

De facto, o poeta, que veio a falecer num acidente de viação, acabou por não publicar mais nenhum livro de poesia, estando a sua obra compilada em diversas antologias, como Antologia de Poesia Angolana (1959), Poetas Angolanos (1962), O Corpo da Pátria - Antologia Poética da Guerra do Ultramar, 1961-1971 (1971), Poesia Angolana de Revolta (1975), Antologia da Poesia Pré-Angolana (1976), No Reino de Caliban. Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa (1976).

 

Ernesto Lara, como se assinala na badana deste volume, foi redactor do "ABC" de Luanda, colaborando ainda, através de crónicas e reportagens, com outras publicações como ABC - Diário de Angola, O Comércio, Diário de Luanda e Notícia. Para além de poeta, era reconhecido como notável cronista, tendo algumas das suas crónicas sido reunidas no volume póstumo Crónicas da Roda Gigante (1990).

 

Ernesto Lara Filho, angolano, boémio, irmão da poetisa Alda Lara, jornalista, poeta contestário até ao fim da sua vida, preso político e regente agrícola (Coimbra, 1952), é, obviamente, o autor da letra da célebre canção Seripipi de Benguela, musicada em 1980 por Carlos Mendes (n. 1947), que abaixo se reproduz.

 

Pelo que estas indiciam da sua biografia, transcrevem-se na íntegra as três dedicatórias que antecedem três epígrafes e uma nota de introdução à obra– "Para a Maria do Céu  / Aos boémios que comigo patrulharam as noites de Luanda – estrelas algumas já mortas das rondas dessas madrugadas. / Aos pintores Roberto Silva, Mário de Araújo, Alípio Brandão, Albano Neves e Sousa e Albano Neves e Sousa (Filho)."

 

Por ordem de apresentação no volume, transcrevem-se de seguida quatro poemas do autor:

 

"SERIPIPI DE BENGUELA [Publicado  no "ABC", Luanda, 1961]

 

Eh! Seripipi de Benguela

escuta aquela canção.

 

Parece pardal de Luanda

cantando na escuridão.

 

Levanta voo, seripipi

do galho desta prisão.

 

Leva no bico uma esperança

ao ninho do teu irmão.

 

O CANTO DA LIBERDADE [Paris, Agosto de 1962]

 

Eh passarada bravia

seripipi fugiu da gaiola

 

Ouve-se vibrante no mato

o canto da libertação

 

Esperança passarada

no seripipi vosso irmão

 

Ele vai voltar p'ra quebrar

as grades dessa prisão.

 

NA NOITE DOS CAZUMBIS [Roçadas, Maio de 1967]

 

As cubatas de Himane arderam ontem

foi a grande queimada que Calupéte atiçou

no capim velho

amanhã nascerá das cinzas o capim novo

com que apascentaremos o gado.

 

Himane reconstruirá o seu quibolo

na encosta da montanha de Sámuei

bem longe da estrada

perto das sombras grandes da floresta

lá onde passam regatos tranquilos

os passarinhos cantam

e a madeira e os frutos silvestres abundam.

 

N'Dove canta debruçada sobre a lavra

os seiso pendem-lhe flácidos sobre a terra estrumada

pelo seu suor

o filho chora junto da cabça de milho

a terra está molhada das primeiras chuvas

o milho está pronto para cair nas lavras

que N'Dove preparou.

 

Este ano vais ser um ano de grande para o Povo N'Dumbe.

 

Na Vila

o senhor Administrador já está a cobrar os impostos

já mandou o cipaio Tembo avisar os sobas

Gunga foi no contrato

foi para as fazendas de sisal da ganda

os filhos ficaram com a irmã mais velha

os bois foram vendidos e a lavra abandonada.

 

Amanhã

Himane recomeçará a cosntruir as cubatas incendiadas

isto se não for para a cidade

ser servente de pedreiro

lá nessa cidade onde se constroiem [sic] as casas de cinzento armado

a tocar as nuvens do céu

lá nessa cidade de que falou o primo N'Zimbi

lá onde as luzes apagam as escuridões

povoadas de cazumbis

lá onde as queimadas não aparecem

alterando os ciclos e as estações.

 

HUMORISMO [Sá da Bandeira, Outubro de 1967]

 

Tenho trinta e sete anos.

 

Já conheci a prisão

o exílio e o hospital...

 

Como atraso de vida

não está mal, nada mal..."

 

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16.01.25

Revista Cultura (V)


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O número 39 desta revista apresenta o conto Titia, de Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002). Num registo coloquial próximo da oralidade, esta narrativa apresenta-nos o retrato de uma viúva que abandonou Cabo Verde, onde apenas um dos três filhos permaneceu, para viver sozinha em Lisboa, sem quaisquer amigos ou confidentes a não ser José, o narrador.

 

Embora ainda não tenha sido reproduzido o conto deste autor, intitulado Resignação, publicado em 1958 no número 14 desta mesma revista, número já aqui abordado, transcrevem-se de seguida os primeiros parágrafos de Titia, sem mais informações adicionais, uma vez que já foram anteriormente referidos alguns dados bio-bibliográficos sobre o escritor (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html):

 

"Titia nem teve paciência... Recado num dia, bilhete no outro... Caramba! Nem que fosse sangria desatada! É preciso compreenderem que eu nem sequer sou parente dela. Sim senhores... Nem filho, nem sobrinho, nem primo, nem nada. Chamo-lhe Titia por amizade.

 

Titia não é má pessoa, não. Só que de vez em quando tem suas rabujas... Hoje os seus filhos estão longe. Ela vive cá em Lisboa. Viver «cheio de buracos vazios» porque «dinheiro é pouco e velhice ingrata»... Veio para aqui com destino à Argentina. Zulmira, a filha mais velha, vive lá. Mas depois levantaram-se impedimentos, «assoprou aquele ventinho que tem de pegar toda a criatura sem sorte» e ela não seguiu. Foi resolvido que ela ficasse. Voltar para Cabo Verde era asneira... Nhônhô, o que está em Moçambique, foi de opinião que mais vale viver mal em Lisboa do que viver bem em S. Vicente. Sim, porque Titia já viveu bem... «Quem a visse hoje em dia com o seu balaio de compras debaixo do braço não dizia que estava ali uma quintanista, e das antigas...» Titia viveu bem enquanto o marido foi vivo. Negociante de baia. Ela mesma fazia os bolos para vender na Pracinha do Liceu. Foi assim que compraram a sua casinha no Lombo-de-Trás e puderam educar os filhos. Nhônhô tirou o sétimo ano e concorreu para Moçambique. Zulmira também estudou. Essa é que embarcou para a Argentina. Lela não quis estudar. Fez o terceiro ano e empregou-se na companhia Madeira. Parodista e mulherengo dos bons... Titia às vezes lastimava-se de Lela não ter o 7.º como Nhônhô.

 

– O que tu queres é esta vidinha de cachorro vadio...

 

Lela ria, ria e não dizia nada. O riso de Lela é sonoro e sacudido.

 

Pois, para Titia o bom tempo durou enquanto durou o marido. Homem é que é tecto de uma casa, já se vê. Depois começou a dispersão. Nhônhô casou, Zulmira foi para a Argentina e Lela tirou uma rapariga de casa. Que é que Titia ia fazer sòzinha na casa vazia? Sim. Que é? Foi então que ela resolveu embarcar também. Aqui em Lisboa aguentava-se com o dinheirinho que os filhos lhe mandavam. Filhos... vírgula... Só Nhônhô lá de Moçambique achava jazigo de lhe mandar qualquer coisa. Não era muito, já se sabe, pois, como vocês calculam, um homem casado tem de olhar para o futuro da mulher e dos filhos. Quanto aos outros Zulmira de vez em quando mandava roupas usadas e Lela só escrevia para dizer: «Mamãi do meu coração quando aprecer portador de confiança mando você uma boa encomenda. Seu filhinho que lhe estima do fundo da alma e que lhe pede a bênção Manuel». Titia ben se amofinava com o que ela chama «ingratidão familiar».

 

– Este moço não me escreve uma cartinha com tripa.

 

Tripa na linguagem de Titia é dinheiro."

 

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22.12.24

Domingos van-Dúnem - Auto de Natal


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Domingos van-Dúnem (1925-2003), Auto de Natal (1972).

Ilustração da capa com desenho de António Trindade (datas desconhecidas)

 

Esta obra, que recebeu o prémio Óscar Ribas, havia sido antecedida pela publicação de A Praga (texto que surgiu em 1947, no jornal Diário de Luanda), sendo seguida de Uma História Singular (1975), Milonga (1985), Dibundu (1988), Kuluka (1988) e Panfleto (1988). Nesta edição anuncia-se também a futura publicação de uma peça inédita, datada de 1967, intitulada Kioxinda, sobre a qual não foi possível encontrar qualquer outra referência.

 

Durante o período colonial, Domingos van-Dúnem foi ainda fundador da revista Mensagem, associada à geração de 50, e exerceu intensa actividade política contestando o regime, o que o levou a ser preso, em 1961, na Baía dos Tigres.

 

Depois da independência, assumiu o cargo de director da Biblioteca Nacional de Angola e foi representante permanente de Angola na sede da UNESCO, em Paris, entre 1982 e 2002.

 

Esta peça teatral, de acto único, prefaciada pelo "Reverendo Padre Dr. Alexandre do Nascimento [futuro cardeal, 1925-2024]", surpreende pela inovação associada à temática católica que se desenvolve numa realidade simultaneamente europeia e africana – "[didascália introdutória] Música - Noite Silenciosa / Música Africana - Rufar de Tambores / Música - Noite Silenciosa" e pelo facto de surgir numa edição bilingue, contemplando o kimbundu, em versão de Maurício Caetano (datas desconhecidas), que sublinha a dimensão africana da sua génese.

 

Nesta edição reproduzem-se quatro fotografias em extra-texto, alusivas a uma das representações da peça, sobre a qual declarou D. Alexandre do Nascimento, no prefácio – " O Autor desta breve mas enternecedora, válida e digna peça, Artista que é, convidou quem ele bem entendeu. Bateu-me à porta, para à boa maneira de antigamente eu dar o sal do baptismo à criança, que lhe acabara de nascer, para o teatro nestas nossas terras. / Bem, acabar de nascer é força de expressão. Porque o meu caro Domingos van-Dúnem, cujo catolicismo não me parece progressista, continua nisto com as mazelas de muito cristão-velho: a criança só se baptiza quando já... gatinha. A peça que vem receber o sal do baptizo já apareceu três vezes a público. Como no teatro europeu, esta peça que algo tem de inicial, de ponto de partida, também nasceu junto da Igreja: é um prolóquio aos dramas transcendentes da Fé."

 

O prefaciador termina a sua apreciação com uma nota inusitada, que acentua não só a sua peculiar visão católica como a peculiaridade africana com que os ritos, da quadra religiosa que é o Natal, se abordam nesta obra – " Meu caro van-Dúnem: obrigado pela alegria intensa que me veio da leitura do seu auto. Será um benefício real que às latas de conserva do teatro que se serve habitualmente se possa juntar o sabor do gingibre e do diquezo."

 

Tudo isto sublinha os traços culturais e etnológicos subjacentes a este auto de Natal, através da metamorfose dos quais o autor traduz uma experiência ecumenicamene africana.

 

Deste breve auto, que se desenvolve ao longo de apenas nove páginas, transcreve-se uma passagem da banal vivência quotidiana, supersticiosa e algo animista, que antecede o nascimento do "MENINO":

 

"ESPOSA (mãe dos gémeos)

Bom dia, Papá Zuze!

JOSÉ 

Eh... Bom dia Mana! E vocês na vossa casa e no vosso corpo estão a passar bem?!... Ma...ri...a! Nos chegaram visitas!

(Responde do interior do quarto)

MARIA

Eh... O que é, Nga Zuze? Já vou sair.

... Nos chegaram visitas ?!...Quem é então?!... Vou  mesmo já sair...

(Lavradores, pescadores, gente de trabalho, passa à porta de José e saúda o casal. O pai dos gémeos dirige-se a José).

PAI DOS GÉMEOS

Em casa estamos a passar assim assim... Já sabe, Papá, nunca falta em casa desgraça (Expressão de fatalismo).

MÃE DOS GÉMEOS

Ainda ontem o lobo nos comeu uma cabra que estava a dormir no curral muito bem...

PAI DOS GÉMEOS

Uma  cabra que estava no seu estado interessante...

(Maria, surge, compondo as vestes e saúda).

MARIA

Oh!... É a minha amiguinha Cabaça, afinal?!...Vê só... E eu não sabia...

(Cabaça vai ao encontro de Maria que pergunta)

MARIA

E teu irmão, Caculo? Ainda está a atirar as pedras nas galinhas e a partir os ovos?

(Caculo, cabisbaixo, envergonhado, acolhe-se aos pais)

MÃE DOS GÉMEOS

Não, Mamã Maria!... Agora já tem mesmo juízo. Eh!... desde aquele dia mesmo que a Mamã lhe falou...

MARIA

Eu estava no quarto mas parece que ouvi como o lobo comeu vossa cabra que estava a dormir no curral... Mas, então, o curral não está bem tapado?...

PAI DOS GÉMEOS

Está mesmo, Mamã Maria!... A gente não sabe o que vai fazer... Parece mesmo que é um vizinho que está nos fazer só mal... Bom, suspeita, é mesmo pecado; mas parece mesmo que é uma velha Kafika... Eh!... É ela mesmo que nos está fazer mal... (dando provas) Quando passa no pé do curral morre uma cabra ou então temos só azar sem fazer nada...

JOSÉ

Qual quê, filha? Uma pessoa não deve pensar só como outra não é boa pessoa. Vamos, então, ainda pensar: qual é a força e o poder que tem a Kafika para fazer mal aos outros?!...

PAI DOS GÉMEOS

Eh, Papá Zuze... Aquela Kafika é uma cobra... Olha só: eu no dia, no dia que passou o sucedo da cabra, eu mesmo, sonhei que ela me tinha pedido uma filha de cabra que ainda não tinha nascido... Já viu, Papá?!

MARIA

Mas então, se é mesmo a Kafika que fez a confusão vamos fazer o quê mais para ela amanhã não fazer mais confusão!?... Vamos rezar para o nosso Pai que está no Céu tirar o coração mau que ela tem..."

 

© Blog da Rua Nove

09.11.24

Orlando Mendes - Véspera Confiada


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Orlando Mendes (1916-1990), Véspera Confiada (1968).

Capa de Alfredo da Conceição (1919-2011).

 

Orlando Mendes, de quem Eugénio Lisboa (1930-2024), logo em 1969, noutro contexto (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290), viria a dizer  "(...) poeta cheio de dignidade recolhida que é Orlando Mendes (tão pouco citado, tão imerecidamente preterido por outros de interesse poético infinitamente menor...)", havia publicado até ao ano de 1968 os volumes de poesia Trajectórias (1940), Clima (1959), Depois do Sétimo Dia (1963), Portanto, eu vos escrevo (1964) e o romance Portagem (1966).

 

Posteriormente, em poesia, haveria de publicar Adeus de Gutucumbui (1974), A Fome das Larvas (1975), País Emerso I (1975) e II (1976), Produção com que Aprendo (1978), Lume Florindo na Forja (1980) e Faces Visitadas (1985).

 

Publicou ainda uma peça de teatro, Um Minuto de Silêncio (1970), e duas obras infantis Papá Operário Mais Seis Histórias (1980) e O Menino que não Crescia (1986).

 

Nascido na Ilha de Moçambique, veio a licenciar-se em Ciências Biológicas na Universidade Coimbra, especializando-se depois em botânica e fitosanidade, o que explicará a sua afinidade e proximidade com o autor do desenho da capa, Alfredo da Conceição, que se viria a consagrar como notável ilustrador naturalista de fauna e flora.

 

Nas badanas do presente volume, Eugénio Lisboa aprecia da seguinte forma o autor e a obra – "Numa terra em que quase tudo é ao nível do «pouco» e em que a seriedade literária, portanto, pouco se faz notar, Orlando Mendes consegue ser, ao mesmo tempo, o dono de uma Obra poética que se destaca junto ao nível das mais conseguidas, e o dono de um  rosto humano que quase ninguém conhece. Digamos que se trata de uma certa vitória."

 

E acrescenta – "É um homem simples, discreto, trabalhador, de pouco convívio. Nem sequer cultiva a convivência literária e, para o caso, tanto melhor! Não sei se lê muito, se pouco. Tem a sua vida à parte, às vezes difícil (supomos), e vai, em silêncio e sem escândalos (que ajudam), debitando, a espaços largos mas teimando, um discurso poético e uma conduta cada vez mais exemplares."

 

Para concluir – "Numa terra, numa época e numa sociedade em que o intelectual é òbviamente o homem a liquidar (já foi dito!), e o intelectual com dignidade o homem a liquidar duplamente, Orlando Mendes acrescenta ao peso substancial destes dois pecados, a chaga suplementar de uma exemplar modéstia. Confessemos que é demasiado!"

 

Para o autor, "a seiva elementar de África", que menciona no seu poema "história", parece ser intrínseca ao ritmo e ao sentido da poesia, não tendo de ser explícita nem tendo de afirmar continuamente a sua africanidade em referentes do real. Daí a quase ausência de menções explícitas a África, neste volume, ou de um léxico que, imediata e especificamente, para ela remeta.

 

Transcrevem-se, por isso, duas das poucas poesias que constituem excepções a essa prática:

 

chegada

 

Para o homem chegado de Lisboa

Trazendo mulher e filhos e calos

Nas mãos e gostos a vinho e broa

Nos lábios frios de madrugá-los,

 

Para o homem perplexo neste cais

De África, novos gostos terão

Entre lembranças e outros sinais

De estar, o vinho e também o pão.

 

Os pais sofram a crise intermitente

De viver ou morrer com a seara

E a saudade que os atormente.

 

Os filhos cresçam queimando a  cara

com o sol que o menino negro sente

às costas da Mãe que gera e ara.

 

manhã de junho

 

Ao longo do litoral avisado frequentemente,

Estão a decorrer exercícios de fogos reais

Para o mar calmo na minha infância insular.

E mufana cheira a pólvora e brinca na areia.

 

No campo, anda a máquina de colher o arroz

Alugada pela maquia e gastando combustível.

O homem semeou, porém, pardal-ladrão dispôs

Do grão maduro, apesar  de tambores de lata,

Petardos e tiros e de o avião ter destruído

Milhões de machos e fêmeas, com parathion.

 

Uma nuvem verdadeira ou de insectos subtis

Ou talvez de olhos apontados contra o sol,

Encobre o seco perfil de madala mais velho

Erecto sobre a savana que recebe os mortos,

O chikomu e o suor e as sementes guardadas.

 

A mil trezentos e tal metros distante dali,

A vaca pariu em boa hora, o leite escasseia.

Mas choveu há dias e rebentam capins tenros

E a lagarta invasora só aparece em Dezembro.

 

Uma palhota acabara de ser arranjada quando

Vibraram os dinas por toda a vasta planície

E não repicam os sinos e não tocam a rebate

E a dilacerante prenhez deita-se na esteira

Com os randes que vieram do Transvaal em nó

Junto ao seio, as mãos raspando o chão frio."

 

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03.10.24

Poesia de Moçambique (II)


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Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).

 

Até à data desta colectânea, Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994) havia publicado 40 e tal Sonetos de Amor e Circunstância e uma Canção Desesperada (1970), O Morto. Ode Didáctica (1971), A Arca. Ode Didáctica na 1.ª Pessoa (1971), Uma Meditação / 2 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados (1971).

 

Por ocasião da efeméride comemorativa dos 400 anos de publicação de Os Lusíadas (1572), lançou ainda As Quybyrycas (1972), longa obra que poderá ser interpretada como uma irónica anti-epopeia travestida de paródia épica. Jorge de Sena (1919-1978), que na altura se encontrava em Moçambique para assinalar aquele evento camoniano e cuja estreita relação com o autor, e outros escritores moçambicanos, já se mencionou, foi o autor do prefácio a esta obra.

 

A sua poesia e os seus textos encontram-se também dispersos pela colaboração que manteve com Caliban (revista co-dirigida e co-editada com Rui Knopfli [1932-1997]), A Voz de Moçambique, Colóquio/ Letras e Notícias da Beira, entre outras publicações.

 

Sobre a obra de Grabato Dias, pronuncia-se assim Maria de Lourdes Cortez, no presente volume – "A ironia, o humor selvagem, o cunho da teatralidade, são, na obra de Grabato Dias, uma componente indispensável da sageza – e da saúde: é pelo riso – e por ter acedido a um terreno onde pode enfim respirar – que o poeta imerge em certos aspectos do mundo extremamente importantes e dolorosos. Face ao marasmo da vida, ao charco liso e morno da convenção, ao mecanismo sistemático do engano, a atitude desenvolta e o cinismo frívolo funcionam como privilégio defensivo, processo de distanciamento; e ganham, mesmo no seu desenrolar absurdo, uma lógica inquietante."

 

Nesta colectânea apresentam-se seis sonetos e uma longa poesia com estrutura de soneto, reproduzindo-se abaixo o poema Inhaminga, soneto que, à data deste volume, permanecia inédito, e do qual, parafraseando os trocadilhos tão caros ao autor, se poderá afirmar que, ao invés de uma conservadora e estagnada poesia de pousio, apresenta uma "ousada poesia de ousio":

 

POR INHAMINGA

 

Aqui me vi nascer nas gratas dobras

duma ternura em sândalo e pau rosa

com papaias do amor que ninguém usa

afora as mães, que usando embora as sobras

 

de um amor desusado, dão num sousa

um leite silva de amansar as cobras.

Aqui, sangue jocoso enviças as obras

do que deixei atrás votando à musa

 

esta grata malícia ou este ousio.

Nasço onde me prefiro. Aqui me adulo

onde acordado espero mais do frio

 

que da quente matriz onde me chulo.

Aqui nasço  e renasço sem fastio

do desfastio que é estar vivo e fulo!

 

Ainda num registo de anti-epopeia iconoclasta, onde uma orgia de neologismos, trocadilhos, insinuações e inovações lexicais se entrelaça num provocativo e quase pornográfico delírio cacofónico, transcreve-se também a apoteótica Apoetese de Plurais:

 

ARIA EM EL

APOETESE DE PLURAIS

 

Dilatação das coronárias

fumigação de coronéis

coroação de funcionárias

que a vinte e seis papam donzéis

corneações já partidárias

de cavalinhos de carrosséis

osgas-cabrões, ratas falsárias

martas zézinhos ritas manéis

trazem de luto as dores canárias

e no escorbuto ouro de anéis

o absoluto mudou as árias

das cifras várias e faz pastéis

com as razões mais extraordinárias

e comissões de veterinárias

apalpam pasmos espasmam corcéis

do amor recibo das semennárias

traças de arquivo que lambém méis

grossos, lascivos, das luminárias

abelhas sábias rés de bordéis

que voam sós nos céus das várias

autoridades de cascavéis

plenipo putenciárias

filhos de apuros bem o sabeis

a morte é lenta e as três marias

são quase virgens, rica vintage

de trinta e três, licor de leis

licor de lérias primor das tárdias

hemo petizes perdizes débeis

da caça fina grossa de asnárias

discursativas odes cruéis

descansativos gódes por árias

e ventos vários showsando seis

glândulas nulas lulas mamárias

com leite ralo de hall de hotéis

galeões canela e naus corsárias

porões à vela stripastíseis 

de membros mísseis desorbitais

falos passíveis de mil e seis

centos incríveis conventuais

maneiras cruas mas cozinháveis

de servir frios mas cozinháveis

a servir mortos mas comestíveis

a servir podres mas digeríveis

a servir chochos mas toleráveis

rebeldes sim mas algemáveis

no alguidar das leis agrárias

pataca a mim pataca às várias

patas e ratas patarratárias

zitas e parasitárias

parras com guitas nas nadegárias

autoridades alfandegárias

da raia aflita dos indizíveis

polvos gigantes indivizíveis

que irmãos nos cindem o bem possível

no cono inteiro da alimária."

 

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01.09.24

Obra Poética de Francisco José Tenreiro


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Francisco José Tenreiro (1921-1963) et al., Obra Poética de Francisco José Tenreiro (1967).

 

Esta compilação póstuma da poesia do autor apresenta a seguinte nota prévia – " VISA A PRESENTE EDIÇÃO DAR MAIS DURADOURA EXPRESSÃO À HOMENAGEM AO PROF. E POETA FRANCISCO JOSÉ VASQUES TENREIRO, PROMOVIDA EM SEIS DE MAIO DE MIL NOVECENTOS E SESSENTA E SEIS PELA ASSOCIAÇÃO DOS ANTIGOS ALUNOS DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA ULTRAMARINA, EM SESSÃO PÚBLICA A QUE DEU A HONRA DE PRESIDIR O DIRECTOR DO INSTITUTO, PROFESSOR DOUTOR ADRIANO MOREIRA. NESTA EDIÇÃO SE ARQUIVAM, POIS, OS DOCUMENTOS NESSA SESSÃO, ANTECEDENDO A  OBRA QUE NESSA MESMA OCASIÃO SE DECIDIU PUBLICAR. SÃO DEVIDOS AGRADECIMENTOS À EXCELENTÍSSIMA SENHORA DONA MARIA MADALENA COSTA LANÇA DE VASQUES TENREIRO PELAS FACILIDADES OFERECIDAS A ESTA PUBLICAÇÃO. "

 

Com efeito, este volume, para além da obra poética do autor, apresenta também uma notícia publicada no Diário de Lisboa, em 7 de Maio de 1966, um texto intitulado O Geógrafo Francisco Tenreiro, da autoria de Raquel Soeiro de Brito (n. 1925) e o texto Francisco José Tenreiro, Poeta, da autoria de Mario António Fernandes de Oliveira (1934-1989).

 

Reproduz, em seguida, o conteúdo integral das obras Ilha de Nome Santo ("Coimbra – MCMXLII") e Coração em África ("Lisboa – 1964"). No seu texto, Raquel Soeiro de Brito refere que, no âmbito da literatura, para além destes volumes, Francisco José Tenreiro havia publicado ainda o conto Nós Voltaremos Juntos, em 1942, Tarde de Tédio e O Velho Pioneiro Morreu (Theodore Dreiser), em 1946, e a antologia Poesia Negra de Expressão Portuguesa, em co-autoria com António Domingues (1921-2004) e Mário Pinto de Andrade (1928-1990), em 1953. Acescenta ainda que o escritor deixara prontas para publicação as obras Coração em ÁfricaProcesso Poesia, uma antologia de poesia africana.

 

Uma vez que, anteriormente, já aqui se publicou um poema que integra Ilha de Nome Santo, Canção do Mestiço, transcreve-se hoje um poema de Coração em África, Mamão Também Papaia, escrito em São Tomé na Páscoa de 1962, ficando para outra oportunidade poemas mais longos, e evocativos da poética de Cesário Verde (1855-1886) e Fernando Pessoa (1888-1935), como Amor de África:

 

"Mamão

também papaia.

 

Que sabor é o teu mamão

também papaia

que andas na boca dos pobres

e és delícia matinal

do Senhor Administrador?

 

Qual a tua sedução

mamão também papaia?

 

Será esse teu ar estranho

de seres melão e nasceres nas árvores

ou esse rosto de mama de mulher preta

recordando ao Senhor Administrador aquela

cujo seio se abriu em filhos mulatos

brincando pelas traseiras da Casa Grande?

 

Que força é tua

mamão também papaia?

 

Será porque alivias o rotundo ventre

do Senhor Administrador

e soltando a barriga do Senhor Administrador

libertas a neura e o sorriso

do Senhor Administrador

deixando-o mais macio e de olhos parados

para o dia de sol e quentura do Senhor?

 

Oh! Mamão também papaia

na boca de pobres e de ricos

de pretos de brancos e de mulatos,

fruto democrático da minha ilha!"

 

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