31.03.10
Brito Camacho - A Caminho de África
blogdaruanove
Brito Camacho (1862-1934), A Caminho d' Africa (1923).
Tal como muitas outras obras da década de 1920 e 1930, este livro relata aspectos da jornada que o autor efectuou "a caminho de África", neste caso uma viagem efectuada entre Lisboa e Lourenço Marques.
Esta viagem, contudo, não seria efectuada num mero âmbito jornalístico nem com a finalidade de o autor se estabelecer como colono. Médico e político destacado da I República, durante a qual chegou a exercer o cargo de Ministro do Fomento, Brito Camacho relata-nos a viagem que o levou até Moçambique, onde iria exercer o cargo de Alto Comissário entre 1921 e 1923.
Autor de algumas dezenas de títulos, que englobam quer textos de natureza política quer crónicas e textos ficcionais, Brito Camacho oferece-nos ao longo deste volume diversas considerações sócio-políticas intercaladas com interessantes descrições dos locais por onde foi passando.
Transcrevem-se de seguida dois excertos da obra, o primeiro sobre S. Tomé e Príncipe, o segundo sobre o início das suas funções em Moçambique, trecho que encerra o volume:
"Desce a noite pelas encostas dos montes, cobertos de vegetação exuberante até aos ultimos cocurutos, e ainda temos que ir a Rio d'Ouro. A distancia não é grande, mas ha que percorrel-a em vagonete, puxado a mulas, num decauville sem maquinas.
Tenho a impressão de caminhar atravez de uma floresta sem murmurios, no silencio augusto de uma noite opaca... Aquela anedota do homem que se deitava no chão para ouvir crescer a herva, seria historia verdadeira em S. Thomé, que eu bem sinto os galgões da seiva na rêde vascular destes gigantes frondosos; bem vejo o arfar destes peitos rudes abrigando pulmões cujos alvéolos são cavernas, e nos silencios da conversa, as inevitaveis pausas sincopais que rompem o fio de todo o falaciar palreiro, o que eu oiço é o bater rithmico, o tic-tac isocronico do coração de Pan a dormir na floresta, embriagado de perfumes exóticos.
Pois se no meu regresso de Agua Izé, perto da cidade, eu notei que um óakas, á margem da estrada, do lado direito, crescera um palmo!
O Rio d'Ouro é uma torrente que vem lá de cima, não sei donde, quebrando-se nas fragas, tumultuoso e devastador no tempo das cheias, reduzido agora a um minusculo fio de agua cantante, que atravessamos numa pinguela feita de pernadas e troncos. Sobe-se uma pequena rampa e está-se nas instalações da roça, uma das melhores propriedaddes de S. Thomé. Somos recebidos por uma multidão de pretinhos chilreantes, alegres e desenvoltos como passaros em liberdade – bom dia doutô! bom dia doutô!"
"Ganso d'Almeida, meu condiscipulo, era um rapaz muito inteligente, muito amigo de ler, e tinha uma graça infinita. De quando em quando dava-lhe para fazer versos, quasi sempre satyras e epigramas.
Um dia, a gracejar, tendo-me elle lido uma ode que fizera na vespera, perguntei-lhe:
– Como diabo é que fazes versos depois de leres Victor Hugo?
E vai elle responde, como a justificar-se d'uma acusação grave:
– Peço perdão, mas eu não faço versos depois de ler Victor Hugo; faço-os depois de ler o Pedro Covas.
Vinha a ser o Pedro Covas um poetastro da Vidigueira, colaborador de todos os almanaques de Portugal e Brasil, com estravasamento de rimas por alguns jornaes da provincia. Pedro Covas, a poetar, abusava talvez das liberdades que a Carta garantia a todos os cidadãos, e como isso lhe dava prazer, e não prejudicava ninguem, sangrava a veia poetica até quasi ficar anemico. A especialidadde de Pedro Covas era o acrostico, genero de composição poetica, então muito em uso. Ganso d'Almeida entretinha-se, muitas vezes, a parodiar-lhe a versalhada, mandando-lhe a troça pelo correio.
Reflectindo na resposta dada, achei que o meu amigo tinha rasão. Só um verdadeiro, autentico poeta tem o direito de fazer versos depois de ler as Orientais; mas pode qualquer ter escrupulos de versejar depois de ler o Almanaque de Lembranças?
São horas de ir para o emprego.
No jardim, a caminho da Secretaria, um velho colono, vindo ao meu encontro, dá-me familiarmente os bons dias, e informa que o Enes e o Mousinho, em geral, despachavam na Residencia.
Desfecho-lhe esta, que o deixa aturdido:
– Pois sim, mas o Pedro Covas despachava sempre na Secretaria.
Forte de semelhante evocação, animado da coragem que ao Raposão faltou no momento em que iria cair lhe nas mãos a fortuna da Titi, instalo-me no gabinete de despacho e toco a campainha, chamando o continuo.
– Saberá v. exa, que já chegou o sr. director da agrimensura.
– Mande entrar.
Começa a minha administração.
Que Deus lhe ponha a virtude..."
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