Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

19.06.13

Ovídio Martins - Tutchinha


blogdaruanove

Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas),

Linóleo de João Manuel Mangericão (datas desconhecidas).

 

Ovídio Martins (1928-1999), Tutchinha (1962).

 

Ovídio de Sousa Martins, natural de S. Vicente, Cabo Verde, frequentou em Lisboa a Faculdade de Direito, que acabou por abandonar depois de um tratamento com estreptomicina o ter deixado surdo. Opositor do regime instaurado pelo Estado Novo, foi perseguido e preso pela PIDE, exilou-se na Holanda e acabou por regressar a Cabo Verde após o 25 de Abril de 1974.

 

Foi autor dos volumes Caminhada (1962) e Independência (1983), tendo prefaciado uma antologia de poesia cabo-verdiana resultante dos Jogos Florais organizados em 1976.

 

Consagrado essencialmente como poeta e autor de mornas, colaborou também nas revistas Claridade e Vértice, bem como no Journal des Poètes e na Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (1958), organizada por Mário Pinto de Andrade (1929-1990). A sua poesia apareceu ainda, entre outras, nas antologias Mákua, Antologia Poética 2 (1963), Resistência Africana (1975) e Contravento: Antologia Bilingue da Poesia Caboverdiana (1982).

 

O presente volume apresenta os contos Tutchinha, onde surgem alguns fragmentos de uma morna – "Ó lua dixam spiabo / nha qretcheu também st' odjabo (...) / (...) anda no céu devagar / bo lumiam caminho na mar (...) / (...) parcem que ceu qui abri / qui nhor Des arri pa mi (...)", e Sono na Praia, e os poemas Flagelados do Vento-Leste, dedicado a Manuel Lopes (1907-2005), autor de um romance homónimo (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/6351.html), publicado em 1960, e Pergunta ao Mar.

 

A temática de ambos os contos desenvolve-se em torno de relacionamentos amorosos na adolescência, apresentando os poemas distintas vozes e preocupações. Traduzindo maior essência lírica e intimismo o segundo, denota maior proximidade à intervenção social preconizada pela escola neo-realista o primeiro.

 

Abaixo transcrevem-se alguns parágrafos do segundo conto, Sono na Praia, e do primeiro poema, Flagelados do Vento-Leste.

 

 

"Belmiro mexeu-se. Tanto tempo sentado tinha-lhe entorpecido os músculos. Resolveu levantar-se e dar uma volta. De mãos nos bolsos, foi até ao Caisinho de Baleia e parou, pernas afastadas, sem um movimento, de olhar fixo nos rochedos do fundo. Logo a seguir os olhos mudaram de direcção e deixou-os deslizar como um feixe preguiçoso de luz até à ponta do Morro Branco. Levou a cabeça para trás e inspirou duas vezes, vagarosamente, o ar fresco e puro da ourela do mar. Voltou-se e caminhou em sentido contrário até ao meio da praia e quedou-se a espiar lá longe os paus da rede protectora dos nadadores. Despiu o casaco de fazenda e deitou-se sobre as pedra-de-mar, de olhos escancarados para a lua cheia. Ajeitou o corpo e, depois de ficar bem acamado, dobrou, com cuidado, o casaco, para lhe servir de almofada.

 

Pairou no ar um nome que ficou a boiar entre o céu e mar. Mais uns segundos e o nome se transformava, sem se apagar de todo, até confundir-se com a cabeça morena de Cilinha, que o fitava sem rancor, com a melodia longínqua dos seus olhos azuis. Belmiro sorriu: "Cilinha é bonita deveras".

 

Belmiro sentiu remorsos. Claro que já tinham falado no assunto, mas ele evitava uma certeza – que, de resto, mais pressentia do que desejava que pudesse magoar a pequena. Cilinha, essa, não tinha ilusões: – Eu sei que vais acabar com tudo, quando fores para Lisboa. É sempre assim que vocês fazem. 'Inda tem uns dias falava nisso com Deolinda. Já tem três meses que Alberto não lhe escreve. Arranjou uma mondronga, com certeza."

 

 

"Flagelados do Vento-Leste

 

 Para Manuel Lopes, poeta / e romancista patrício

 

Nós somos os flagelados do vento-leste!

 

A nosso favor

não houve campanhas de solidariedade,

não se abriram os lares para nos abrigar

e não houve braços estendidos fraternalmente

para nós!

 

Somos os flagelados do vento-leste!

 

O mar transmitiu-nos a sua perseverança,

Aprendemos com o vento a bailar na desgraça,

As cabras ensinaram-nos a comer pedra

para não perecermos.

 

Somos os flagelados do vento-leste!

 

Morremos e ressuscitamos todos os anos

para desespero dos que nos impedem

a caminhada

Teimosamente caminhamos de pé,

num desafio aos deuses e aos homens,

E as estiagens já não nos metem medo,

porque descobrimos a origem das coisas

(quando pudermos!...)

 

Somos os flagelados do vento-leste!

 

Os homens esqueceram-se de nos chamar irmãos

E as vozes solidárias que temos sempre

escutado

são apenas

as vozes do mar

que nos salgou o sangue,

as vozes do vento

que nos entranhou o ritmo do equilíbrio

e as vozes das nossas montanhas

estranha e silenciosamente musicais

 

Somos os flagelados do vento-leste!"

 

© Blog da Rua Nove

15.06.13

Cochat Osório - O Homem do Chapéu


blogdaruanove

 

Cochat Osório (1917-2002), O Homem do Chapéu (1962).

 

Ernesto Cochat Osório nasceu em Luanda e faleceu em Faro. Tendo-se formado em Medicina, na cidade de Lisboa, regressou depois a Angola, onde exerceu como médico.

 

Consagrado essencialmente pela sua poesia, género em que foi autor dos livros Calema (1956), Cidade (1960), e Biografia da Noite: Poemas (1966), Cochat Osório foi também prosador, tendo publicado o conjunto de contos intitulado Capim Verde (1957) e o presente volume, que integra dois contos – O Homem do Chapéu e Espelhos. 

 

O primeiro narra, de forma algo tragicómica, a experiência fracassada de um colono que abandonara a sua aldeia procurando fortuna em África, a qual é miseravelmente simbolizada pelo chapéu novo que adquire, e aí acaba por sucumbir após contrair uma febre tropical.

 

O segundo relata o renascer da esperança num homem de cinquenta e cinco anos, que havia sido despedido, que recorre a expedientes ridículos para disfarçar a idade mas a quem vem a ser confiado um cargo de administração numa roça.

 

Do conto Espelhos transcrevem-se os últimos parágrafos:

 

"Já se esfumavam as caras e as expressões. O barco movia-se lentamente. A mulher e os filhos , os soluços e os abraços, os pedidos e os conselhos. "Paizinho, volte depressa!" "Pai, leve-me consigo!" "Paizinho!..." Rosamond e o menino. E o abraço do Sr. Pires. E a Nocas também (porque o pai lhe pediu para conhecer Rosamond). E o sr. Correia que se apaixonou pela história do cabelo  pintado. E a Blá... Não. A Blá já não saía. E o capacete colonial, uma espécie de emblema de primeira viagem. E os comprimidos contra o enjoo. Tudo agora eram manchas claras, imprecisas, que o sol poente batia de lado. E que as lágrimas esfumavam.


Um sacudir ritmado de máquinas potentes. Lenços e lágrimas. Lenços. Pontos brancos. Adeus.


Roque voltou-se. Acendeu um cigarro e o fósforo tremia na mão nervosa. Andou vagarosamente, vagarosamente, para o camarote. Mas o passo cresceu, um ritmo obcecante de marcha impôs-se, como se a orquestra que moía os ouvidos mandasse naqueles passos. E Roque viu-se de repente a subir uma escada. Um passo elástico e jovem, para fugir do medo. Os dentes cerrados, respiração forçada, para secar os olhos. E de repente, no patamar, um espelho. Roque olhou espantado. Olhou de novo. Os olhos nem acreditavam mas teve coragem para sorrir. Um sorriso franco e largo.


No espelho sorria um homem: O Sr. ROQUE, gerente comercial da roça BOA NOVA." 

 

© Blog da Rua Nove