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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

31.10.13

Orlando da Costa - O Signo da Ira


blogdaruanove

Sobrecapa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Orlando da Costa (1929-2006), O Signo da Ira (1962, 2.ª ed.).

 

Entre outras razões complementares, foi certamente devido ao activismo do autor e às suas posições políticas dissidentes, as quais haviam motivado a sua detenção pela PIDE e o seu encarceramento por três vezes no iníco da década anterior, que esta obra teve a sua circulação e distribuição suspensas.

 

Apesar disso, este livro, premiado com o prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências em 1961, ano da sua primeira edição, ainda chegou a atingir uma tiragem próxima dos dez mil exemplares.

 

Antes desta obra em prosa, Orlando da Costa tinha já publicado três volumes de poesia A Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955).

 

Posteriormente, publicou as obras Podem Chamar-me Eurídice (1964), Sem Flores nem Coroas (1971), Canto Civil (1979), A Como Estão os Cravos Hoje? (1984), Os Netos de Norton (1994), O Último Olhar de Manú Miranda (2000), e Vocações Evocações (2004).

 

A acção deste romance decorre durante a II Grande Guerra, na então denominada Índia Portuguesa. Dos vários enclaves e ilhas que constituíram o antigo império português sobreviveram, até ao século XX, Dadrá e Nagar Haveli, reintegrados na Índia em 1954, e Damão, Diu, e Goa, reintegrados precisamente em 1961.

 

A influência neo-realista não deixa de se reflectir neste romance, onde não se retrata apenas a rígida estratificação traduzida pelas castas locais – curumbins, sudras, batcarás, mas também a intromissão protagoniza neste sistema pelos expedicionários portugueses, os paclés.

 

Por entre um ambiente de opressão e miséria, motivado pela prepotência das castas superiores, mas também pelo clima e pelas condições agrícolas, surgem as personagens femininas como se fossem a última das últimas castas. Mas são estas, particularmente Coinção, que se suicida, Natrél, e Quitrú, que se assumem como opositoras ao destino e à tradição, revelando uma força interior e uma atitude de revolta que não se encontra nos homens.

 

A título de curiosidade refira-se que o recentemente reeleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa (n. 1961), é filho de Orlando da Costa.

 

Trancrevem-se de seguida alguns parágrafos desta obra:

 

"A idade e a miséria traçavam desde muito cedo o destino daquela gente. Quando os músculos começam a ceder, voltam os olhos para os filhos. Amarram-se a eles até onde podem, implorando ao seu trabalho de servos a subsistência das suas vidas. Não pedem mais do que estes lhes haviam pedido, quando crianças.

 

E, todos os sábados, velhos e velhas, partilhando um mesmo destino na terra da sua nascença e da sua morte, descem à cidade num lúgubre cortejo de andrajos e orações, de chereta estendida à porta dos batcarás. Sob os panos e camisas encardidas, descarnados e ressequidos, os peitos dos homens e das mulheres assemelham-se. Uma voz única eleva-se daquelas bocas sumidas e ossudas – Ômanmari... –, ecoando tristemente de porta em porta. Um punhado de arroz cai nas cheretas em troca da oração e o cortejo prossegue, arrastando-se devagar naquele ritual semanal, em que os filhos mais humildes da terra imploram aos céus altíssimos bênçãos para os seus senhores.

 

Durante seis dias da semana a mulher de Pedrú, encolhida a um canto do casebre, entre gemidos, torturada por uma doença que ninguém no povoado logrou ainda curar, e com a lucidez dos predestinados a agonizar lentamente, ganha forças para aos sábados erguer-se como uma sombra e juntar-se a custo ao caudal de velhos maltrapilhos e estropiados que, de mão estendida num gesto sem revolta, ficam remoendo com as próprias entranhas uma oração de todo o sempre...

 

«Quando chegará a sua vez?...», pensa de olhos tristes a velha Bostian. «Já não falta muito...». Com a mão encarquilhada esmaga os olhos disfarçadamente e depois passa pelos lábios secos aquele sabor a sal que fica na sua pele enrugada. «Não deve faltar muito». É sabido que ela, também, não deixará de cumprir o seu destino, o destino deles todos. Voltará, dentro em pouco, aos sábados, ao tombar da noite, vergastada pela canseira das estradas percorridas, as veias inchadas à flor da pele, a poeira e o suor coalhados nas rugas do seu corpo. Junto à cintura, aconchegados, talvez alguns punhados de arroz. «Mas agora... até para os velhos que mendigam... a vida vai mal!...» À porta dos batcarás já não lhes dão arroz. As cheretas seguras por aquelas descarnadas mãos de pedintes recolhem os poiçás que lhes vão dando de porta em porta.

 

– Não há arroz, nem para os batcarás! – dizia-se agora e era verdade.

 

– Tomem lá quatro anás. É para todos.

 

– Meia rupia. É bab Ligôr que manda dar, é para distribuir por todos.

 

Ômanmari... – e a oração de agradecimento, dita à beira dos balcões das casas, soa mais triste e trágica naquele coro de mendigos."

 

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