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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

25.11.13

Reis Ventura - Cidade Alta


blogdaruanove

Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade Alta (1958).

 

Segundo volume de uma trilogia romanesca que, na senda de modelos oitocentistas e queirosianos, se agrupava sob a designação "Cenas da Vida em Luanda", este romance havia sido publicado inicialmente sob o formato de folhetim no jornal diário "a província de Angola", estrutura que se reflecte na significativa quantidade de capítulos desta obra, trinta e seis, os quais apresentam ainda subtítulos, bem com na brevidade de cada um deles.

 

Seguindo uma habitual trama de intriga e maledicência, romance e crime, esta obra traça, apesar de tudo, um certo retrato optimista da sociedade luandense das décadas de 1940 e 1950.

 

Recorrendo frequentemente à citação de datas específicas, como 23 de Julho de 1954, dia da ocupação do enclave indiano de Dadrá (cf. http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/17627.html), ou 13 de Maio de 1955, dia do anúncio oficial da primeira descoberta rentável de petróleo em Angola, o autor parece procurar conferir à sua narrativa uma verosimilhança que a aproxime dos modelos realistas do século XIX.

 

Contudo, nesta obra em particular, tal aproximação traduz uma visão da sociedade angolana que se restringe quase exclusivamente à população branca, embora haja um breve formulação da problemática social e afectiva com que se defrontam mestiços e mulatos, na personagem do dr. Valadim, filho de pai incógnito e de uma "mulata-cabrita da Gabela", filha do Tenente Valadim.

 

Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos deste romance:

 

"Na lenta evolução da cidade de Luanda, que só recentemente, com a euforia do café, ganhou um ritmo mais rápido que o da maior parte das cidades europeias, têm aparecido cenáculos, localmente celebrados e temidos.

 

Primeiro foi o «Clube dos Pés Frios», na Cervejaria «Biker», assim chamado porque dele participavam veneráveis senhores de idade, todos com uma língua de prata, mais corrosiva que o ácido prússico.

 

Depois nasceu o «Canal de Moçambique», à sombra alcoviteira dessa mulemba da «Portugália», tão robusta e respeitável que tem resistido à sanha arboricida de centenas de vereações municipais. Também ali se passou a pente fino a vida citadina. E até os governadores se interessavam em saber como se comentava, no «Canal de Moçambique», o último Diploma Legislativo ou a mais recente discussão no Conselho do Governo.

 

Últimamente surgiu o grupinho do «Polo Norte». Dom José de Monte-Santo chama-lhe a «esquina do pecado».

 

La se reunem, pela tardinha, uns moços das redacções dos jornais e das tertúlias artísticas, lançando olhares vorazes às mulheres que passam e comentando os acontecimentos locais, com uma irreverência só comparável ao escândalo do «rock and roll». E assim como nos saltos acrobáticos da dança endiabrada, as moças histéricas revelam as mais íntimas fímbrias das suas rendadas calcinhas, assim nesse grupo de candidatos a uma esquiva ironia, não há véus de conveniências nem preconceitos sociais que escapem ao rasgão repulsivo ou à tesourada vingativa.

 

São uns demolidores terríveis, quase todos com a desculpa da mocidade e alguns com a ressalva do talento. Dizem muitas asneiras e algumas verdades como punhos. Preferem aplaudir uma imbecilidade nova a perfilhar uma genialidade velha. Odeiam cordialmente o antigo. São a gente nova com todos os seus defeitos e com todas as suas qualidades. Dão-se generosamente ao paradoxo e ao sarcasmo, com abomináveis concessões à risota fácil e à chalaça grosseira.

 

Na sua adoração do moderno, acontece às vezes iludirem-se e reeditarem, como novas, velhas coisas do tempo dos faraós. Mas fazem-no com uma grande sinceridade e com uma inconsciência enternecedora."



"O Saraiva declarou que abundava nas mesmas ideias (de repetir o peru) e aproveitou para contar a sua conversa com o Fraga.


– Eu chuchei com o homem – mas, aqui para nós, dou-lhe razão. Três contos não é vencimento que se pague, nos tempos que correm...


– O funcionalismo ganha pouco, para o que precisa; mas ainda ganha demais, para o que faz – sintetizou o Pedralva, sarcástico.


E logo o eng. Soutello atalhou que nem era justo generalizar a apreciação merecida por alguns calaceiros, nem lhe parecia sensato fazer espírito com um problema sério.


– A insuficiência dos vencimentos dos funcionários – explicou – arrasta consigo o nível geral dos salários em Angola. Resultado: o aviltamento do valor do trabalho humano, com todo o seu cortejo de misérias materiais e morais. Porque é fundamentalmente injusto que o trabalho honesto de um homem não pague uma vida decente do agregado familiar...


– É essa a doutrina do grande Leão XIII! –ajudou o senhor cónego Salema.


– A política dos salários baixos não só é cruel e anti-cristã – ponderou o dr. Almada – é também prejudicial ao desenvolvimento económico, na medida em que entrava a movimentação da riqueza. E o pequeno movimento comercial conduz fatalmente aos preços altos...


– Altíssimos! – reforçou a D. Esmeralda. – O sr. dr. Valadim já provou os croquetes? Olhe que foram feitos pela Ri..."

 

© Blog da Rua Nove

12.11.13

António Aurélio Gonçalves - Pródiga


blogdaruanove

Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

António Aurélio Gonçalves (1901-1984), Pródiga (1962).

 

Este número duplo (35 e 36) da Colecção Imbondeiro apresenta dois contos – Pródiga e O Enterro de Nhâ Candinha Sena, e uma introdução à obra do autor, intitulada António Aurélio Gonçalves - Esboço de Retrato, pelo escritor Manuel Ferreira (1917-1992).

 

Nessa introdução, o autor de Hora di Bai declara – "E seria pela mão de Baltasar Lopes que viria a conhecer o António Aurélio Gonçalves, um homem seco de carnes, tez sobre o escuro, cabeça avantajada num corpo de estatura meã, olhar vivo, sagaz, ainda quando naquele seu jeito peculiar de semi-cerrar os olhos no vago, como dessa arte melhor situasse todas as suas antenas de captação."


Nascido em S. Vicente, António Aurélio Gonçalves estudou no Seminário de S. Nicolau e posteriormente em Lisboa, onde se licenciou em Histórico-Filosóficas. Já em Lisboa colaborou com, entre outras publicações, Batalha, Seara Nova e O Diabo. Em 1940 regressou a Cabo Verde, para exercer a docência no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente.

 

Embora hoje essa ligação pareça estar esquecida por alguns (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Claridade), foi membro destacado do movimento Claridade, que entre 1936 e 1966 editou em Cabo Verde nove números da revista homónima, sendo a sua obra extremamente admirada por outros elementos do movimento, como Manuel Ferreira e Baltasar Lopes (1907-1989).

 

O prestígio literário das suas exíguas publicações era tal que nem um crítico inequivocamente ligado ao regime salazarista, Amândio César (1921-1987), se coibiu de declarar em Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina (1971): "Em fins de 1971 saía dos prelos cabo-verdianos mais uma obra-prima do, para mim, maior ficcionista português contemporâneo: António Aurélio Gonçalves. E não atiro ao acaso esta afirmação. Porque, efectivamente, passando em revista os nossos maiores e mais representativos escritores, sua obra, no volume individual ou no conjunto, não supera as quatro noveletas que, em Cabo Verde, escreveu e publicou António Aurélio Gonçalves; por muito que pese ao brio dos escritores do espaço de língua portuguesa."

 

Os dois contos aqui reunidos, que, como já vimos, alguns também classificam de novelas, haviam já saído separadamente, em 1956 (Pródiga) e 1957, tendo o autor publicado, posteriormente, ainda na área da ficção, Noite de Vento (1970) e Virgens Loucas (1971). Juntamente com alguns destes volumes saíram também os contos A Consulta e História de Tempo Antigo. Postumamente, foram editados os volumes Recaída (1993) e Terra da Promissão (1998). Na área do ensaio publicara Aspectos da Ironia de Eça de Queirós (1937) e A Centelha – Cadernos de Estudo (1938), saindo postumamente o volume Ensaios e Outros Escritos (1998).

 

Pródiga é um conto cujo título claramente indica que o seu enredo se baseia na célebre parábola bíblica do regresso a casa do filho pródigo. Aqui é Xandinha que, depois de atravessar o purgatório de uma vida sofrida – um namoro contestado pela mãe, a gravidez que resulta num filho falecido pouco depois, a separação do pai desse filho com quem não chegara a casar, um abandono à vida fácil que marinheiros e outros homens proporcionavam às mulheres do Mindelo, regressa, ainda jovem, a casa de sua mãe, Nhâ Ludovina, e irmãs, Isabel e Augusta.

 

É também uma narrativa que traduz certo destino incontornável de algumas mulheres, pois Nhâ Ludovina havia sido mãe-solteira, tal como as suas filhas vieram a ser, sem que isso afecte a sua noção de família e unidade.

 

O conto O Enterro de Nhâ Candinha Sena desenvolve-se através da revisitação da infância como espaço de afecto e serve de leit-motiv para abordar a saída do arquipélago como uma inevitabilidade que acaba quase sempre por confluir para outra inevitabilidade – o saudoso regresso definitivo a Cabo Verde.

 

A aridez de alguns recantos da ilha e os aspectos quase insuportáveis do clima acabam por ser contrabalançados, aqui, por aquilo que de melhor o autor encontra em Cabo Verde – a vivacidade das personagens, o ambiente familiar, o convidativo enredar de todas as vidas, presentes e passadas, num inesquecível conjunto que surge como paradigma da perene vivacidade das gentes e memórias cabo-verdianas.

 

Para alguns aspectos e memórias da vida familiar de António Aurélio Gonçalves veja-se: http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/32688.html.

 

 

Do conto Pródiga transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Xandinha tinha chegado a um largozinho formado de terrenos vagos, de onde partiam as ruas de uma encruzilhada. Desviou-se para um beco, que vinha do Lombo-de-Trás a torcer-se em meandros escusos. Uma lâmpada debruçava-se sobre ela, vibrava o seu centro forte sobre o solo e batia cruamente as paredes opostas; depois, a sua luz atenuava-se numa degradação lenta, agonizava infindàvelmente no largo e, incerta, dormente, escorria por ruelas coleantes, enlividecia a aresta das esquinas, deixava planos cair na sombra; mais longe, à direita, um quadrante negro absorvia toda a claridade, ao passo que, para a esquerda, apanhava-se, recortada num pequeno quadrado, a vista da iluminação de uma rua transversal, e esta tomava o ar de um pequeno pano de fundo flamejando pretenciosamente debaixo de um foco intenso.

 

O vento passava com a sua farfalha incessante nos ouvidos de Xandinha. Não era fácil saber-se onde ia ele tomar impulso e força para estas arrancadas frenéticas, mas as lufadas impetuosas, duradoiras, pareciam baixar do nordeste, dos lados da Assomada do João d'Évora, da Salamança. Irrompiam do escuro, enrodilhavam-se como em novelos de cordas possantes e pareciam rodopiar no mesmo sítio com a rapidez de turbilhões antes de se lançarem definitivamente na sua fuga para o sul. O Lombo, assim escuro, ventoso e húmido, é triste. Quem passa não pára, não se ouve uma voz de rapariga, uma brincadeira de crianças, um arpejo de cavaquinho, portas e janelas fecham-se e uma ou outra luzinha brilha através de uma vidraça.

 

De face para o candeeiro, um grupinho encostava-se à parede, uns de pé, outros assentados, para fugir ao frio. Duas mulheres faziam o seu negócio e tinham tabuleiros à frente, com pão de milho, rebuçados de mel, açucrinha, etc. Dois rapazitos brincavam. A Benedita, negra de boa plástica, rapariga-de-vida bem conhecida no Lombo, silenciosa, fitava a rua. Todos se encolhiam, braços cruzados, procurando um agasalho para as mãos nuas e ninguém, a não ser os dois rapazitos que palravam, dizia palavra.

 

Xandinha aproximou-se dos tabuleiros e galhofou:

 

– Que é que vocês têm por aí, meninas? Que é que vocês me guardaram? Não me gaurdaram nada?

 

Uma das mulheres propôs-lhe:

 

– Compra-me um pãozinho de milho. Estão bonzinhos, menina. Queres? Dois tostões. Compra metade; só um tostão.

 

Xandinha debruçou-se a observar de perto os pães e, com a ponta dos dedos, tacteava-lhes a resistência:

 

– Agorinha assim, deu-me uma fraqueza na boca do estômago. Deveras! Ainda não jantei. Não me fias um, anh, Joana? Só até amanhã pela manhã. O teu dinheiro fica certo, menina. Podes estar descansada.

 

A Joana ajeitou os pães novamente no tabuleiro e, de cabeça baixa, resmungava:

 

– Minha filha, se fosse por fiado, fiava um a mim mesma. Vontade não falta."

 

© Blog da Rua Nove