31.01.14
Reis Ventura - Caminhos
blogdaruanove
Capa de Raul Machado (datas desconhecidas).
Reis Ventura (1910-1988), Caminhos (1959).
Iniciando-se com um deslize de (ausência de) revisão que nos apresenta o protagonista como tendo nascido em 1893 e ficado órfão, aos 15 anos, após o falecimento do pai "numa das primeiras incursões monárquicas" [o regime republicano foi implantado em 1910, a primeira incursão ocorreu em 1911], este romance, com o subtítulo Vida e Paixão dum Motorista de Angola, acaba por fazer esquecer aos leitores tais deslizes através de uma narrativa ritmada e de um enredo atraente, se bem que facilmente antecipável na sua evolução e conclusão.
Recorrendo a uma estrutura folhetinesca de capítulos curtos, que já havia sido utilizada em Cidade Alta (1958), Reis Ventura cruza neste romance a descrição de vários locais de Angola, desde a Gabela a Benguela, ou de Cabinda, e da floresta do Maiombe, a Luanda, com uma problemática de fundo que assenta nos conceitos de crime e justiça, de consciência e culpa.
A esta problemática, recorrendo ao imaginário criado à volta da eventual descendência mestiça do Tenente Valadim (1856-1890), aqui ficticiamente evocado como Tenente Alpedrim e transposto da sua real intervenção em Moçambique para o cenário romanesco de Angola, um imaginário já anteriormente abordado pelo autor, Reis Ventura acrescenta a problemática da mestiçagem, personificada pela figura do Dr. Alpedrim, e de sua mãe, D. Beatriz, mulher do protagonista, João do Souto.
Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos:
"Era pelas seis horas da tarde, quando os mirones do café «Polo Norte» despem, com os olhos, as raparigas que saem dos empregos e as senhoras perliquitetes que voltam das compras.
Fui encontrar o Teiga na praça de taxis fronteira à Livraria Lello, num grupo de chauffers que palestravam, aguardando freguês, à beira dos carros estacionados.
Esta gente constitui, em Luanda, uma classe bem definida. Homens sem papas na língua, falam, entre eles, uma linguagem ajindungada de pragas sonoras e de piadas brejeiras. Mas, pelas exigências da profissão, sabem ser delicados e corteses no serviço.
Pobres e laboriosos, ainda isentos da subserviência da gorjeta, não usam as vénias e rapapés dos seus colegas de Lisboa ou Porto. Conhecem os podres de muita gente e comentam-nos entre si, mas raramente assoalham perante elementos estranhos à classe.
Os que exploram carro próprio, conseguem algumas vezes amealhar economias, com a ajuda do trabalho da mulher e uma severa economia familiar. E há muito rico que lhes deve dinheiro...
Lamentam a quota que pagam ao seu Sindicato e odeiam o uso do boné que ele lhe impôs, vingando-se com a crítica mordaz de todas as direcções, passadas, presentes e futuras.
Correm atraz do freguês, como perdigueiros de bom faro. E ultrapassam os pechotes das cartas de turismo, em manobras atrevidas, sobressaltando os nervos frágeis das meninas bem, que rodam em carrinhos utilitários para os chás das amigas ou para coisas menos inocentes...
Transportando pobres e ricos, em corridas de urgência ao hospital, em passeatas de fim de semana, ou em excursões nocturnas pelas espeluncas mal afamadas dos muceques ou pelas «boites» caras da cidade, aprenderam a olhar a vida com uma filosofia própria. Sempre há muito burro nesta terra!» [sic] – pensam, ao deixar certos velhotes perfumados no «Mambo» ou no «Bambi-Bar». Mas tudo está bem, desde que lhe paguem a corrida. O resto já não é com eles. E, não obstante a concorrência a que obriga a luta pela vida, são dos que melhor sentem a solidariedade de classe. Até as pedrinhas da calçada se levantam, se algum colega lhes rouba deslealmente o freguês. Mas ajudam, de bom grado, aqueles que se encontram em transe de aflição."
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