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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

27.09.16

Reis Ventura - A 100.ª C. Cmds.


blogdaruanove

  Capa de J. A. Preto Pacheco (datas desconhecidas).

 

 

Reis Ventura (1910-1988), A 100.ª C. Cmds. (1970).

 

Na literatura colonial, o conflito armado que deflagrara na década de 1960 havia já sido explicitamente abordado pelo próprio Reis Ventura nos dois volumes de Sangue no Capim (1962), que o autor classifica como sendo volumes de contos, embora estes textos se aproximem mais da crónica, eventualmente ficcionada, e cheguem a incluir fotografias contemporâneas das chacinas e da actividade armada, e por Manuel Barão da Cunha (n. 1938) na obra Aquelas Longas Horas (1968), onde o autor evoca a sua vivência militar em Angola e na Guiné.

 

Na presente obra, de forma distinta do que acontecia naquelas, Reis Ventura cria um ambiente predominantemente ficcional, onde a acção de uma hipotética companhia de comandos traduz aquelas que seriam as eventuais acções reais desta tropa especial em Angola. Ao contrário do que acontecia em Sangue no Capim, não são centrais, aqui, as vivências e preocupações de colonos e civis; do mesmo modo, não tendo sido militar, Reis Ventura não poderia traduzir uma vivência do quotidiano semelhante à que Barão da Cunha experimentara.

 

Entrecruzam-se nesta obra narrativas da acção militar com enredos e relatos amorosos, transcrevendo-se de seguida uma passagem relativa a estes últimos:

 

"A notícia da «captura do Soutello», como logo chamaram ao avançado namoro do alferes, causou o maior espanto entre militares e civis: os militares representados por todos os camaradas da 100.ª Companhia de Comandos, e os civis pelas formosas «mini-saias» que também o queriam.

 

– Vocês já sabem a grande novidade deste século? – lançou o alferes Maninho, numa roda de amigos que saboreavam, no Restaurante Ilha, as famosas gambas grelhadas.

 

– Os marcianos desceram em Nova Iorque? – gracejou o alferes Vieira, depois de molhar a palavra no seu canhangulo de cerveja.

 

– Não.

 

– Apareceu, finalmente, um filme português aceitável? – interveio o Nebrasca.

 

– Não! – fez o inquirido com um trejeito de náusea.

 

– Baixou o preço do vinho em Luanda? – perguntou o Vouzela.

 

– Não!! – urrou o Maninho com mais força.

 

– O Soutello apanhou do pai de alguma menina? – lembrou o Vieira.

 

– Ainda não!!! – vociferou o interrogado.

 

– O que era então? – cantarolou o Vouzela, no tom da incrível cantiga brasileira.

 

– O nosso alferes Soutello caiu como um anjinho. Creio que vai haver pedido de casamento – declarou soturnamente o informador.

 

E todos pararam de comer.

 

Se lhe tivessem dito que o Dr. Agostinho Neto e o Holden Roberto, amiguinhos e de mãos dadas, iam a caminho do Palácio para se apresentar às autoridades, a surpreza dos quatro alferes não teria sido maior. Até se esqueceram de enorme pratada de gambas (cinco doses) que rescendia à sua frente. Depois, o Vouzela reagiu, sacudiu a cabeça num vento de cepticismo e declarou:

 

– É mentira!

 

– É verdade! – teimou o Maninho com a convicção de quem anuncia um facto histórico – O pedido de casamento pode verificar-se de um momento para o outro.

 

Caiu um novo silêncio, já de exame e ponderação, perante o estranho acontecimento.

 

– E quem o capturou? – perguntou de repente o Vouzela, no seu falar delicado.

 

– Sim: – reforçou o Vieira – quem foi a terrorista que lhe armou a emboscada?

 

– Uma loura chamada Hermínia Laranjeiro do Resgate – informou o Maninho – ele chama-lhe Mina e está pelo beiço...

 

– Está resgatado – ironizou o Vouzela.

 

– Está perdido, é o que está – corrigiu compungidamente o Vieira – Apanharam-no...

 

                                                               ***

 

– Apanhou-o, aquela sabidona! – dizia a Ti (o seu nome era Otília, mas a mamã tinha a mania dos monossílabos...), no cabeleireiro, para duas das suas amigas mais íntimas, que também se penteavam naquele pequeno clube de má língua – Como ela o apanhou, é que eu não compreendo!

 

– Oh! – fez a Terezinha Barreiros, com um momo de requintada malícia. – É fácil de compreender: fê-lo escorregar até ao irreparável...

 

– A que chamas tu «o irreparável»? – perguntou a Candinha Mané com um grande ar de ingenuidade.

 

– Morde aqui! – respondeu-lhe a outra com o indicador estendido – Ou queres convencer-me de que não percebeste?!

 

E riram as três.

 

Depois a Candinha vingou-se:

 

– Claro que percebi. Até percebi que estás cheia de ciumes...

 

– Eu, ciumes? Se o rapaz me interessasse, ainda era capaz de desfazer o noivado!

 

– Isso é que era giro! – aplaudiu a Ti – Porque não tentas?

 

– Porque não me apetece – declarou ela, afectando um infinito desdém.

 

Mas mentia com todos os seus bonitos dentes. E, nessa mesma tarde, teve artes de atrair o alferes a um encontro na praia.

 

– Caiste como um parvinho, Soutello – entrou ela, quando se deitaram na areia tépida, logo a seguir ao primeiro mergulho.

 

– É verdade! – concordou ele, aderindo ao tom de brincadeira.

 

– É uma pena! – corrigiu ela – Dentro de algum tempo, nem poderei conversar contigo...

 

– Não sei porquê?... não há mal nenhum em conversar. E eu ainda sou livre...

 

– Parece-te – ironizou ela – Há mulheres que sabem amarrar um homem como se fosse um paio. E a Mina é desse género.

 

– A Mina é uma boa rapariga – declarou o alferes, formalizando –. E eu não me sinto paio.

 

– Então não a deixes pensar que o és, meu menino – aconselhou a despeitada – Defende-te enquanto é tempo!

 

– Se me vir em perigo, peço a tua ajuda – bricou ele.

 

– E olha que sou bem capaz de ta dar. Para ajudar um homem contra uma mulher, não há como outra mulher. E eu gosto de ti...

 

– Porque não o disseste mais cedo?

 

– Porque nunca mo perguntaste..."

 

 

Através de um processo narrativo polifónico, pouco comum nas anteriores obras de Reis Ventura, introduzem-se neste romance diferentes visões que complementam o enredo, aparecendo assim registos narrativos sob os títulos Congeminações dum poeta, onde se apresenta a visão do alferes Nebrasca, e Deixem falar Sarilhos-Grandes, onde surge a visão de João Benfeito, um cabo a quem foi dada a alcunha correspondente à sua terra natal:

 

"Bem: tudo isto veio a propósito – ou a despropósito – das razões por que me ofereci para os comandos após curtos meses de comissão em Angola.

 

Quanto ao libertar-me da alcunha com que indevidamente me crismaram (eu até sou um tipo pacato e cumpridor...) fiquem sabendo desde já que perdi o pano e o feitio, para usar uma linguagem de alfaiate. Ainda eu estava na bicha da entrada para o quartel dos comandos, ali à esquerda de quem vai para Viana, nas antigas instalações do restaurante «Belo Horizonte», quando levei no focinho com o trapo encharcado:

 

«– Eh, Sarilhos-Grandes!»

 

Voltei-me para o berro que vinha mesmo de traz de mim e dei de ventas com o Felício, de trouxa a tiracolo e com aquela sua cara grande e risonha de penico das Caldas.

 

Já viram maior azar?!..."

 

É Sarilhos-Grandes, aliás, a personagem que concede ao romance a maior nota trágica individual. Por entre todas as mortes em combate aqui narradas, a sua surge já no final, pouco antes de a mulher dar à luz. O comandante do seu pelotão, o alferes Nebrasca, que conhecera o casal quando a encontrara na praia com o marido, é o encarregado de lhe transmitir, já na maternidade, a notícia do seu falecimento.

 

Nebrasca não surge apenas como «um poeta», assumindo-se por vezes como o que parece ser um alter ego do autor, particularmente quando nos são apresentados os poemas deste alferes, que evocam uma certa ideia de poesia patente quer em A Romaria (1934), quer em A Grei (1941), e Soldado que Vais À Guerra (1964), a sua posterior versão revista e refundida.

 

Efectivamente, é um longo poema "de Nebrasca", com mais de três páginas, que encerra este romance. Esta abordagem poética, entristecida e dolorosa, questionando a Infinita Bondade divina, remata com a afirmação: "Deixem falar «Sarilhos-Grandes»! / Quem disse que ele morreu?! / É sua, / bem acima da morte, / a voz daquele menino que nasceu, / saudável, belo e forte. / Deixem falar «Sarilhos-Grandes»... / A vida continua. / A Vida venceu!".

 

 

Transcreve-se de seguida uma das muitas passagens que, nesta obra, relatam episódios bélicos, desta vez conjugando a intervenção da força aérea com a acção dos comandos:

 

"O Acampamento «Muxixi» não se via do ar. Mas o Major Reimão sabia exactamente onde ele estava. Era dentro daquele tufo de arvoredo que já se avistava, lá adiante, quase no extremo visível da chana.

 

A esquadrilha de jactos tinha ultrapassado há três minutos a formação de helicópteros que, todavia, gastara quase um quarto de hora até chegar à orla da mata. Corria tudo OK. Os seus «asas» sabiam exactamente como proceder, porque tudo fora combinado logo depois de descolar da pista do Luso. E não era preciso agora usar as comunicações rádio, que poderiam alertar o Inimigo, roubando aos jactos a sua grande vantagem nesta guerra: o favor da surpreza que lhes confere a velocidade.

 

Embora sem ultrapassar a barragem do som, os F.84 voam tão próximo dela que, na prática, os terroristas só dão por eles quando já estão sob o seu fogo. «É avião danado que quando chega já passou, larga as rodas e morre tudo!», – diziam os bandoleiros da UPA, quando estes caças-bombardeiros começaram a operar em Angola, durante a segunda metade de 1961.

 

Hoje os homens do MPLA, aos menos os mais treinados pelos instrutores chineses e cubanos, já sabem que são bombas ou rockets o que os F.84 transportam perto das rodas recolhidas. Mas conservam quase o mesmo medo desses terríveis moscardos zumbidores, que lhes aparecem sempre de surpresa, picando vertiginosamente de entre as nuvens ou razando a copa das árvores como um vendaval da Morte. Se não conhecem antecipadamente os seus raids – o que é muito raro acontecer, porque a FAP sabe guardar os seus segredos – nem as sentinelas de ouvido mais apurado conseguem captar-lhe o silvar a tempo de avisar os camaradas. E depois de eles se revelarem aos ouvidos de todos com o seu característico ranger de toneladas de papel rasgado, desencadeia-se, quase sempre, uma cena de inferno. Passam e repassam, uns a seguir aos outros, sobre o alvo, despejando bombas devastadoras, lançando as serpentes coleantes e rugidoras dos seus «rockets», mordendo tudo com os dentes raivosos das suas metralhadoras...

 

Alguns turras mais corajosos, ou mais inconscientes, ainda disparam as suas armas para o ceu, embora à toa e sem fixar o alvo cuja velocidade lhes não dá tempo para nada. Mas o habitual é fugirem espavoridos para as suas furnas ou afocinharem no capim, colando-se ao terreno até que o furacão passe.

 

E foi isto que aconteceu nessa manhã, à roda do acampamento «Muxixi» do MPLA, logo que o F. 84 do Major Reimão picou contra aquele pedaço de floresta e largou as suas bombas. Uma das sentinelas, empoleirada na copa da frondosa mulemba, nem ouviu nada: – sentiu apenas um grande vento abrasador que lhe secou instantâneamente toda a seiva da vida, quase sem consciência  e sem dor. As outras saltaram dos seus postos de observação e refugiaram-se em buracos cavados junto à raíz das árvores, enquanto novas bombas rebentavam perto.

 

Lançando os seus pesados bilhetes de visita e cuspidos todos os seus «rockets», os jactos entraram em vôo razante, varejando em redondo com todas as suas metralhadoras.

 

Já então os primeiros helicópteros chegavam aos locais de pouso, prèviamente estabelecidos a pequena distância da mata. Desta vez coube à equipa do Sargento Santos o previlégio, pouco desejado, de saltar na vanguarda. Mas não houve ninguém a recebê-los com rajadas de metralhadora, como já lhes tinha acontecido uma vez, durante a Operação Antros, nos Dembos, felizmente sem consequências porque o alferes Maninho, que saltara entre os primeiros, abatera com um tiro certeiro o meliante que apontava a arma checa.

 

Agora, as sentinelas do acampamento «Muxixi» estavam demasiadamente assustadas com o fogo dos F.84, para levantar a cabeça das tocas onde se abrigavam. 

 

Num dos helis seguintes, que trazia a equipa do sargento Quintejo, o Trigueirão lembrou ao Sarilhos-Grandes que devia saltar com jeito...

 

... – Para não escaldares outra vez esse maldito chispe...

 

– Vê lá se tomas tento na língua – resingou o alvejado, muito sensível às piadas que aludissem a porcos. – Senão vou contratar um turra para te lavar com o cloreto das retretes...

 

Mas saltou como pé direito, e depois de se benzer devotamente contra as malas artes do diabo que o tinham deixado amarrado a um pé torcido durante a Operação Antros.

 

Dentro do horário fixado, os dois grupos de combate estavam desembarcados e desdobravam as suas equipas pelo Norte e Poente, enquanto o quarto e quinto grupos, vindos do Lumeje, começavam já a chegar em nova vaga de helicópteros, para fechar o cerco pelo Nascente e pelo Sul.

 

Já com a alvorada em expectativa dos primeiros raios do sol num céu limpo de nuvens, o Capitão Seabra olhou o seu relógio de pulso. Eram 6 horas e vinte e cinco minutos. Os jactos rugiam ainda, quase tocando a copa das árvores mais altas da mata. Mas o capitão sabia que, a partir daquele momento, o seu fogo cessara. Continuavam sobre o objectivo apenas para manter os bandoleiros colados ao terreno ou escondidos nos seus abrigos. E fez o sinal de iniciar a marcha para o «Muxixi».

 

Deixando a protecção que tinham escolhido com o aproveitamento de todas as pregas do terreno, os comandos fizeram uma rápida série de pequenas corridas através da chana descoberta e entraram na mata.

 

Minutos depois, começou a ladrar uma pistola-metralhadora.

 

As rajadas vinham da única sentinela que o medo dos jactos não impedira de olhar em redor. Curtas e bem espaçadas, denunciavam o combatente corajoso e bem treinado. E o Capitão Seabra, que avançava na vanguarda com a equipa do sargento Santos, fez o sinal de abrigar. Ele conhecia o perigo da marcha a peito descoberto contra um inimigo invisível. E obedecia às suas duas grandes preocupações de sempre: poupar os seus homens e não armar grandes tiroteios logo no início duma acção.

 

Dar poucos tiros era aliás uma das características dos comandos da Escola do Coronel Malaforte. Não porque se julgasse necessário poupar as munições. Apenas porque – dizia ele – «os comandos atiram apenas ao inimigo que vêem e com a certeza de acertar no alvo».

 

O Capitão Seabra aderira compenetradamente a esta doutrina. Sem outra família senão os seus homens, só arriscava quando necessário e sempre com inconfessada mas dolorosa preocupação. As acções rápidas, sem baixas e quase sem balas constituiam a sua predilecção de militar.

 

Abrigado por detraz dum morro de salalé abandonado das formigas e já meio esboroado pela erosão da chuva e do vento, o comandante da 100.ª CCMDS apurou todos os seus sentidos de oficial destemido e competente. Mas a sentinela, que também conhecia as pequenas manhas desta guerra, devia estar à espera de que os comandos se descobrissem. Era o sabido jogo das escondidas, numa espécie de luta copiada dos gangsters – pensou o capitão. E, usando um velho estratagema, que ainda resulta muita vez por explorar os reflexos semi-inconscientes da atenção espectante, catou no chão um calhau de bom tamanho e arremessou-o para diante, contra um tufo de espinheiras que via à sua esquerda, a uns oito metros de distância.

 

Alguns ramos do arbusto buliram com um barulho semelhante ao do cauteloso esgueirar de criatura viva. E logo uma gadanha de balas os ceifou rentes..."

 

 

Este volume inclui ainda, no seu final, nove páginas com referências críticas à obra do autor, onde se encontram apreciações de escritores como Amândio César (1921-1987), sobre Cidade e Muceque (1970), Fernando Pessoa (1888-1935), sobre A Romaria (1934), Guedes de Amorim (1901-1979), sobre Caminhos (1959) e Fazenda Abandonada (1965), João Gaspar Simões (1903-1987), sobre Quatro Contos por Mês (1955), Mário António (1934-1989), sobre Queimados do Sol (1966), Mário Mota (1916-1981), sobre Cidade e Muceque, e Rodrigues Júnior (1902-1991), sobre Queimados do Sol e Um Homem de Outro Mundo (1968).

 

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