20.07.20
Rui Knopfli - Reino Submarino
blogdaruanove
Rui Knopfli (1932-1997), Reino Submarino (1962).
Capa e ilustrações de Jorge Garizo do Carmo (1927-1997).
Segundo livro de poesia do autor, o primeiro havia sido O País dos Outros (1959), este volume, que iniciava a colecção Cancioneiro de Moçambique e será talvez um dos mais importantes da bibliografia de Rui Knopfli, caracteriza-se por uma diversidade conceptual que varia entre a problemática da génese do texto poético - como em "aprendiz na oficina da poesia" ou "ofício novo", a lírica amorosa - como em "a um amor adolescente", "cecília noutro planeta" ou "passeio", os textos de temática africana ou uma secção, Sketch-book, com quatro poemas escritos em Inglês - "ihb", "deanie with some jazz", "monotonous song" e "exercise in loneliness".
O conteúdo desta obra oscila, assim, entre uma reflexão sobre a praxis poética como experiência pessoal e um ensaio de influências da literatura anglófona, na estruturação textual e nas propostas conceptuais, antecipando o envolvimento de Rui Knopfli nos emblemáticos cadernos de poesia Caliban, que, juntamente com João Pedro Grabato Dias (pseudónimo do também pintor e ceramista António Quadros [1933-1994]), editaria a partir de 1972.
Data deste ano, também, um estreitamento de relações entre estes autores e Jorge de Sena (1919-1978) que visitaria Moçambique, por sugestão e insistência destes, no âmbito do centenário da publicação de Os Lusíadas (1572). Aliás, nesta ocasião, António Quadros ofereceu a Jorge de Sena uma das suas obras, com moldura também artesanalmente executada por si, que Sena colocaria na sala de estar da sua casa de Santa Barbara, EUA, e Mécia de Sena (1920-2020) haveria de preservar no mesmo local após o falecimento deste.
Note-se que o autor das ilustrações em estampa extra-texto, Jorge Garizo do Carmo, ceramista, artista plástico e decorador de interiores, era irmão mais novo do arquitecto João Garizo do Carmo (1917-1974).
Sublinhe-se, ainda, o facto de a ilustração desta capa estar em consonância com o abstraccionismo geométrico contemporâneo, particularmente com aquele que Nadir Afonso (1920-2013) vinha desenvolvendo desde a década de 1950.
Transcrevem-se desta obra dois poemas de temática africana, onde se acentua a preocupação social e a dissonante consciência política de Rui Knopfli:
MULATO
Sou branco, escolhi-te.
Hoje durmo contigo.
Negro é teu ventre,
porém macio.
E meus dedos capricham
sobre o aveludado relevo
das tatuagens.
Denso e morno é o luar,
cálido o cheiro húmido
do capim, acre o hálito
fundo da terra.
Venho cansado e tenho
fome de mulher. Sou branco.
Escolhi-te. Hoje durmo contigo:
Um ventre negro de mulher
arfando, a meu lado arfando,
o cansaço, o espasmo
e o sono. Nada mais.
Amanhã parto. E esqueço-te.
Depressa te esqueço.
E teu ventre?
SUBÚRBIO
Daqui avistamos o perfil cinzento
da cidade.
Daqui a vemos, recortando o perfil
arrogante
entre densas ramadas
de cajueiros e mafurreiras.
Daqui vemos a cidade,
seus dedos enclavinhados
na cinza das nuvens,
seus dentes de incerta geometria
mordendo um céu ensanguentado.
Diz-me, velho Dotana,
Cidade tem dentes?
Mulungo, cidade tem dentes,
cidade tem dentes de n'goenha.
Daqui vemos a cidade
crescendo sobre nós,
abatendo-se sobre nós
como gigantesco xipócuè
de cimento armado.
Diz-me, velho Dotana,
cidade tem fantasma?
Mulungo, Dotana não tem medo
xipócuè do mato
Dotana tem medo grande,
xipócuè da cidade.
Daqui a vemos,
cada vez mais próximo
de nós,
triturando na larga maxila
matos e terreiros,
xipócuè de cimento armado
sobre nós,
perto de nós,
dentro de nós,
de grandes, compridas
mãos estendidas.
Dotana, velho dotana,
estendes-lhe a mão? Mulungo,
branco aperta a mão de preto?
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