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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

08.02.21

Revista Atlântico (II)


blogdaruanove

 

Revista número 5, 1944.

Capa de Manuel Lapa (pseudónimo de Manuel Francisco de Almeida e Vasconcellos, 1914-1974).

 

Esta revista do S.P.N. foi lançada em 1941 e teve duas séries, conforme já foi referido, cada uma delas com diferentes dimensões e diferentes opções gráficas. Esta primeira série, com direcção artística de Manuel Lapa, teve maiores dimensões (cerca de 28,2 x 21,2 cm.), um grafismo muito mais interessante do que a série seguinte, como se pode verificar numa anterior publicação deste blog (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/revista-atlantico-i-19333), e uma maior diversidade de artistas colaboradores.

 

Tal diversidade encontra-se exemplificada no presente número, com ilustrações e vinhetas, ou estampas extra-texto, de Bernardo Marques (1898-1962), Cícero Dias (1907-2003), Eduardo Viana (1891-1967), Frederico George (1915-1994), Ofélia Marques (1902-1952), José de Almada Negreiros (1893-1970), José de Lemos (1910-1995), Magalhães Filho (Manuel Maria de Sousa Calvet de Magalhães, 1913-1975), Manuel Lapa, Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), Maria Franco (datas desconhecidas), Miguel Barrias (1904-1952), Neves e Sousa (1921-1995), Noémia (datas desconhecidas), Rachel Bastos (1903-1984), Roberto de Araújo (1908.1969) e Sarah Affonso (1899-1983).

 

É precisamente um texto intitulado Païsagens [sic] de Angola, publicado neste número e da autoria de Neves e Sousa, essencialmente pintor e ilustrador, onde se combinam notas autobiográficas com notáveis descrições literárias de tom etnográfico e paisagístico, a razão que motiva este artigo.

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos, os últimos do texto, que se ocupam daquelas descrições:

 

"Na Quissama, tive o que se pode chamar a sensação de estar em África. Não tinha ainda visto lugares tão selváticos. A païsagem [sic], tôda [sic] em ocra e cinzento, grandiosamente nua, esmaga. O céu parece uma bacia de cobre aquecida ao rubro; não há palmo de terra ou fio de capim que não esteja estorricado pelo calor. Desesperados como leprosos, os imbondeiros, enormes e cinzentos, erguem aos céus os braços torturados, retorcidos em contorsões de dor, como que implorando clemência ao sol implacável. Nas senzalas, não há a alacridade do cantar de um galo ou do ladrar de um cão. Apenas o silêncio, um silêncio opaco, que se ouve, pesado como o ar antes das trovoadas.

 

Ouvi, na Quissama, os mais harmoniosos cantares indígenas. Vi raparigas dançando, vestidas de panos azuis; vi outras dançando  pintadas com a tinta encarnada da «tacula», os seios desnudos, as ancas ondeando em movimentos felinos, numa evocação vaga de danças de outras eras. oi então que pintei os primeiros batuques e o rio Cuanza, que se deixa escorrer, manso e manso, pelo meio da païsagem [sic], como fita de chumbo derretido brilhando ao sol.

 

Ao acabarmos a nossa volta pela Quissama, dirigimo-nos para o sul: Vila Luso, no planalto de Benguela... Havia, por lá, uma païsagem [sic] frouxa de savana arborizada, areia, um sol pálido como o daqui, e frio, muito frio. Pelas anharas verde sujo, há paus mortos, tortuosos, vestidos de negro pelo fogo das queimadas, e morros de salalé recortando, no ar, as suas avermelhadas e imprevistas silhuetas. Os paúis têm limos acinzentados, e à tona da água, nenúfares abrem corolas branco e ouro, espreitando, como a mêdo [sic], por entre os canaviais de um verde deslavado.

 

As senzalas são mal feitas, e paira, em tôdas [sic] elas, um cheiro enjoativo – misto de fuba azêda [sic], óleo e suor. Há sempre um «brouhaha» confuso de batucadas, de negrinhos piolhosos gritando, de mulheres cantando aos filhos rabugentos, de «caniques» em loucas corridas atrás de bacorinhos atrevidos, de cães e galinhas misturados a granel. Existem, lá, «muxiques» – feiticeiros bailarinos, com máscaras de pesadelo, ìntimamente [sic] ligados às cerimónias rituais e misteriosas da «mucanda». Pintei alguns quadros tendo como motivo queimadas e inúmeros estudos sôbre [sic] as danças dos muquixes «tchókué».

 

O último lugar que percorri foi a circunscrição dos Dembos – lugar de encanto, nevoeiro e café. Floresta! Árvores crescem desmedidamente da umidade [sic] sombria, roubando o sol à terra côr [sic] de sangue. Lianas sôfregas de luz lutam, buscando estrangular-se recìprocamente [sic]. Os Dembos, reis negros, outrora poderosos senhores de «guerras» do gentio, conservam, ainda hoje, a sua velha e pitoresca indumentária: boina de ráfia bordada, capa vermelha e azul, a arrastar, e um alarde de velhas espadas ferrugentas, espantando os ecos, telintando [sic] pelas pedras do caminho.

 

Há, também, nevoeiros viscosos, esverdeados, que se agarram à terra, envolvendo tudo como gigantescas medusas gelatinosas. Pintei, lá, montes semi-ocultos por véus de nevoeiro, e alguns Dembos arrastando, arrogantes, suas velhas capas..."

 

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