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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

30.09.21

Eduardo Paixão - Cacimbo


blogdaruanove

 

Eduardo Paixão (19??-1977), Cacimbo (1972; presente edição, segunda,1974)

Capa de Fernando Lopes Direito (datas desconhecidas).

 

No ano de 1972, Eduardo Paixão publicou Os Espinhos da Micaia (1972) e este romance, escrito ao longo de três meses durante o ano de 1971, cuja primeira edição apresentava uma capa de fundo amarelo, um distintivo recurso gráfico comum, aliás, a outras publicações de literatura africana da década de 1940, nomeadamente às obras de Ferreira da Costa (1907-1974).

 

Esta segunda edição do romance, publicada já depois de 25 de Abril de 1974, é particularmente interessante pelos "Apontamentos" que antecedem a introdução e veementemente reclamam um estatuto de contestatário do anterior regime para o autor, ao mesmo tempo que ameaçam denunciar os "homúnculos" que o antagonizaram durante esse período – "Oportunamente serão identificados em A Destruição de uma Quadrilha, não pelo mal que hoje me possam fazer, mas em obediência a um imperativo de consciência que me obriga a pôr de sobreaviso os homens verticais. Estes homúnculos não têm mais lugar num Moçambique novo, numa sociedade que será construída com base no respeito e na dignidade humana, em que todos fraternalmente terão que dar as mãos numa entreajuda leal e sincera empenhada na tarefa ingente da reconstrução do país. / Este  rebotalho humano, ainda vivendo impante de vaidade, terá que ser apontado, julgado pela consciência do povo. Não os podemos esquecer. (...)"

 

Antes destes dois romances, o autor apenas havia publicado A Árvore das Patacas (1953), uma revista em dois actos e 22 quadros, com arranjo musical de Artur Fonseca (datas desconhecidas), vindo posteriormente a publicar O Mulungo (1973) e Tchova, Tchova! (1975).

 

O romance Cacimbo parece querer evocar uma herança literária de influência queirosiana, particularmente derivada da crítica de costumes patente na trilogia O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e Os Maias, com um toque dos pretensos estudos sociais e de psicologia individual de Abel Botelho (1854-1917). A isto poderia somar-se ainda o aroma colonial da trilogia das cenas de Luanda, iniciadas na década de 1950 por Reis Ventura (1910-1988).

 

A opção por tentar gerir literariamente esta complexa combinação de heranças literárias parece coincidir com o curioso retrato que António Botelho de Melo (datas desconhecidas), recordando o cargo que Eduardo Paixão desempenhou como director do Desportivo de Lourenço Marques, traçou dele no presente ano de 2021 – " (...) presidida pelo sorumbático escritor Eduardo Paixão, que andava sempre de óculos escuros e de cachimbo na mão com um ar que estava a pensar no destino final da vida (...)". (https://bigslam.pt/historia/acontecimentos/100-anos-do-grupo-desportivo-lourenco-marques-1921-2021-por-antonio-botelho-de-melo/

 

 

A verdade é que tal complexidade resulta num romance certamente mais superficial do que o pretendido, com diálogos e momentos de reflexão demasiado longos e enfadonhos, onde os considerandos filosóficos e sócio-políticos do narrador participante  se entrelaçam com os discursos de alguns protagonistas.

 

A narrativa acaba, assim, por assentar muitas vezes em maçadores e inverosímeis diálogos artificiais, particularmente quando o mesmo registo discursivo é atribuído aos protagonistas adolescentes, contribuindo para que certas passagens possam causar nos leitores o mesmo efeito que causou em D. Emília o discurso de seu marido, como se pode constatar em alguns parágrafos, do final do capítulo XXIII, que abaixo se transcrevem:

 

"(...) Calou-se por uns momentos. A sua lúcida inteligência estava a fazer uma análise objectiva dos problemas de Moçambique. Bebeu um pequeno golo de licor, encheu uma chávena de café e continuou, concentrado, uma força interior dominando-o:

– A promoção social dum povo faz-se com base no seu desenvolvimento económico. O povo de Moçambique é pouco exigente, aspira, sim, por uma vida desafogada que lhe permita satisfazer as necessidades que a civilização lhe criou. Dormimos tranquilamente durante séculos, a herança é pesada, mas há que nos situarmos dentro das realidades, não podemos mais viver de improvisações, de indústrias caseiras. Fomos sempre mais um povo de aventureiros, nada ambiciosos, com pouco nos contentamos. Ligados, direi antes, amarrados a um atavismo das épocas recuadas em que as caravelas despejavam no reino carregamentos de especiarias vindas da costa do Malabar, continuamos até à presente época com o mesmo sistema, olhos fechados à realidade ultramarina. Hoje temos que revolucionar sistemas antiquados, não travar o progresso com peias bolorentas, com medo dos grandes empreendimentos que sempre mais nos assustaram que que as tormentas do Cabo, na rota de quinhentos. Tivemos sempre nos povos que civilizámos amigos fiéis que nada nos pediram, que defenderam as nossas fronteiras, que trabalharam resignadamente sem um queixume, sem um reparo. Somos um país multirracial, vivemos sempre em paz e concórdia, tivemos essa felicidade, não a deixemos hoje fugir com posições de intransigência, de incompreensão. A subversão acabará quando todos tenham pão, quando todos, independentemente de raças ou credos tenham na sociedade o lugar a que a sua inteligência, o seu valor lhes dão jus, quando todos brancos e negros, lado a lado, tirarem da terra tudo o que ela generosamente lhes oferece. Queria ver altas chaminés lançarem nos ares lavados de Moçambique o fumo negro dos grandes complexos industriais, desejava uma agricultura organizada, que Moçambique fosse um dos celeiros do mundo. Gostava de ver nas planícies imensas, fadadas para a pastorícia, grandes manadas de cabeças de gado, milhões de cabeças de gado, a industrialização das suas carnes, do leite e seus derivados. Por trás da subversão que hoje nos aflige existem Himalaias de interesses, de cobiças, de que o povo ingénuo e simples de Moçambique é um instrumento ao serviço de grandes «trusts» internacionais. Doutrinas ideológicas, sem dúvida aliciantes, mas a que se agarram como a ostra à rocha, a cupidez, a ganância, todo um cortejo de ideias inconfessáveis. Nós ainda estamos em África e, quando digo nós, refiro-me a brancos e negros, temos que aproveitar hoje esta consoladora realidade procurando estabelecer bases sólidas, baseadas no amor, na compreensão, no diálogo, deixar Moçambique galopar sem as peias que o paralizam, um galope dirigido para a meta do bem, da harmonia, da paz. Estamos numa época em que as fronteiras já perderam, em parte, o seu bolorento significado, já não são a eterna faúlha que, ateada, projecta labaredas avassaladoras, já não são as muralhas intransponíveis, invulneráveis à compreensão e amizade dos povos. Do espaço aéreo descem em todas as capitais, diariamente, milhares de indivíduos que quase se não sentem estrangeiros, as correntes migratórias fazem-se em todos os sentidos, aos milhares se não aos milhões. Todos  anseiam por viver em paz e só os grandes «trusts» internacionais se ocupam do fabrico de armas bélicas, procurando atear as labaredas da guerra, alimentando-a com a lenha dos engenhos de morte que lhe proporcionam prósperas situações económicas. Esta é a dura realidade e, cobrindo-a com «um manto diáfano», papagueiam-se sistemas ideológicos, ânsias de liberdade, ingredientes que no cadinho da política internacional se caldeiam extravasando em torrentes de ódio.

Carlos de Sucena falava, alheado do ambiente e nem mesmo a mulher, dormitando, lhe quebrava o entusiasmo.

– Temos a grande, a rara, a única felicidade de aqui em Moçambique podermos erguer uma barreira contra as nefastas influências de doutrinas ideológicas faladas ou escritas em «slogans» requentados. Temos tudo o que desejamos: a terra prenhe de riquezas, uma situação geográfica privilegiada. Resta-nos intensificar a a única doutrina por que todos os povos anseiam: o amor fraterno, a compreensão, o respeito pela dignidade da pessoa humana, independentemente da sua raça, a liberdade de cada um poder dar livre curso ao seu pensamento, sem arcas encoiradas, sem interesses inconfessáveis, antes com aquela fraternidade de criança ainda não contaminada pela epidemia do ódio e da traição. A todos podemos dar a suprema ambição duma vida digna sem preocupações pelo dia de amanhã, escolas espalhadas por todo o sertão, como estrelas brilhando no mato, fábricas transformando o subsolo em riquezas, grande splantações agrícolas, força e vitalidade. Para esta grandiosa obra há, como primeiro passo, que arejar os quadros de algumas repartições especializadas, onde alguns restos de velhos fósseis da época colonial teimam em continuar agarrados, sem nível, sem mentalidade, entretendo-se apenas a contar as notas do vencimento no fim de cada mês, emperrando todas as iniciativas pela nula actualização às exigências duma vida dinâmica e actual. Velhos chaços que na era espacial teimam em caminhar a passo. Quando tudo isto acontecer, então sim, Moçambique será eterno, seja qual for o seu estatuto.

Calou-se e por último, num desabafo:

– Como eu desejaria ter hoje vinte anos!

O ressonar da D. Emilia despertou-o dos seus pensamentos.

– Estás a dormir, Emília?

A esposa sobressaltada acabou por sorrir e disse:

– Não, filho, gostei muito de te ouvir. Já são horas de nos irmos deitar."

 

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