12.11.21
Arlindo Barbeitos - Angola, Angolê, Angolema
blogdaruanove
Arlindo Barbeitos (1940-2021), Angola, Angolê, Angolema (1976; presente edição, segunda, 1977).
Capa e ilustração de Sebastião Rodrigues (1929-1997).
Arlindo Barbeitos é o primeiro escritor com uma primeira obra publicada depois de 1974 que aqui se apresenta. Justifica-se tal opção por três razões – por um lado, muitos destes seus poemas foram escritos nas décadas de 1960 e 1970, antes do 25 de Abril, reflectindo um contexto anterior ao da independência de Angola; por outro lado, o seu primeiro livro, este, foi publicado ainda em Portugal, pela Sá da Costa; finalmente, a terceira razão prende-se com uma afirmação do próprio autor, registada na entrevista que introduz esta obra – " Transmito a minha poesia numa língua que não posso esquecer, é a língua colonial, mas que não deve ser a única língua a ser falada pelo povo angolano. Seria um massacre cultural horrível. Essa língua continua sendo ainda uma língua de estrangeiro em Angola. Então, já que aqui eu sou um ignorante, não conheço as línguas de Angola o suficiente, tento pelo menos, dando um conteúdo nosso, africanizar a língua colonial. Aliás, o próprio povo já o fez e o poeta, finalmente, segue-o. As línguas africanas foram capazes de uma poesia oral belíssima, porque não seriam elas capazes de uma poesia escrita belíssima também? Simplesmente os poetas é que não foram capazes, e o povo angolano não deve sequecer isso. "
De facto, não só a poesia do autor é belíssima como não poderia ser, no seu íntimo, mais africana. Militante da oposição política e armada ao regime colonial do Estado Novo, Arlindo Barbeitos não necessita de, a exemplo de outro militante da resistência armada, Costa Andrade (1936-2009), transformar a sua poesia num manifesto político explícito para lhe dar africanidade ou materializar a resistência ao colonialismo, que tanto coexiste subtilmente como explicitamente em alguns dos seus registos líricos.
Paradigma pleonástico da poesia enquanto poética, a sua obra ora assenta em modelos orientais, minimalistas e quase anafóricos, da poesia, ora em poemas onde a explícita crítica à realidade colonial se materializa na encadeada e desconcertante simplicidade do quotidiano.
Poeticamente, a sua resistência e sua angolanidade traduzem-se ainda, no título deste volume, na evocação da oralidade que a palavra "angolê" transmite e na inovação lexical do neologismo "angolema", que tanto sugere ser Angola um poema, como o poema, a sua poesia, ser Angola.
Deste volume transcrevem-se quatro poemas, com distintas características, pela sua ordem de publicação:
"amada
minha amada
a revolução
não é um conto
e
uma borboleta
não é um elefante
como agarrá-lo
devagarinho
o menino ia comendo o peixe frito
assim como quem toca gaita-de-beiço"
"à sombra da árvore velha de muitos sobas
só cresceram muxitos
o sussurrar encarcoleante dos surucucus d'areia
marcava dédalos efémeros
que os quissondes iam devorando
à sombra da árvore velha de muitos sobas
só cresceram muxitos"
"eu quero escrever coisas verdes
verdes
como as folhas desta floresta molhada
verdes
como teus olhos
que só a saudade deixa ver
verdes
como a menina duma trança só
que soletra em português sa-po sa-po
verdes
como a cobra esguia que me surpreendeu
naquela cubata sem outra história
verdes
como a manhã azul
que acaba de nascer
eu quero escrever coisas verdes"
"o Inácio cambuta
que vendia lotaria na Maianga
ficou assim
porque um dia quando a jogar à bilha
um rapaz de Maculusso
lhe passou a perna pela cabeça e fugiu
o camoquengue Camões
que varria o chão na loja do Sidónio
ficou assim
porque um dia quando atrás das piteiras
um sapo preto
lhe mijou no olho direito
o André matumbo
que era contínuo na Fazenda
ficou assim
porque um dia quando na sanzala do Botomona
comeu laranja roubada com casca e tudo
e
o Luís molumba
que vadiava por todo o musseque
ficou assim
porque um dia não acreditou que o sipaio
seu primo
lhe ia dar uma bordoada com o pau do ofício"
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