26.01.22
Costa Andrade - Poesia com Armas
blogdaruanove
Costa Andrade (n. 1936), Poesia com Armas (1975; presente edição, segunda, 1977).
Capa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).
Depois de estudar no Huambo e no Lubango, Francisco Fernando da Costa Andrade viajou na década de 1950 para Portugal, onde cursou arquitectura e se envolveu na dinamização das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Posteriormente seguiu para o exílio, passando pelo Brasil, por Itália e pela Jugoslávia, antes de se juntar à guerrilha angolana, já durante a década de 1960.
Na sua actividade literária, política e militar adoptou diversos pseudónimos, como Africano Paiva, Angolano de Andrade, Fernando Emílio, Flávio Silvestre, Nando Angola, Wayovoka André ou Ndunduma Wé Lépi enquanto guerrilheiro.
Antes de esta obra, Costa Andrade havia já publicado Terra de Acácias Rubras (1960) e Tempo Angolano em Itália (1962), publicando posteriormente O Regresso e o Canto (1975), Caderno dos Heróis (1977), O País de Bissalanka (1980), O Cunene Corre para Sul (1981) e Luanda: Poema em Movimento Marítimo (1997), entre outras.
Neste volume, que apresenta um prefácio ensaístico de Mário de Andrade (Mário Pinto de Andrade, 1928-1990), reunem-se poesias de diferentes cadernos, todos datados de antes da independência de Angola – O Capim Nasceu Vermelho (Huambo, 1960 - Lisboa, 1961), Canto de Acusação (1961 a 1963), Cela 1 (São Paulo, Brasil - Abril de 1964), Flores Armadas (1970...), O Guerrilheiro (Moxico, 1969, 1970 e 1971), O Amor Distante (Angola, 1969), Requiem para um Homem (1973), O Povo Inteiro (1974), O Lundoji e o Eco (Setembro de 1974) e O Futuro Nasceu da Noite (25 de Outubro de 1974).
Poeta profundamente emocional, atitude a que se alia uma sólida formação intelectual, Costa Andrade deixa transparecer na estrutura e nos conceitos de alguns dos seus poemas, particularmente nos mais longos, uma certa influência da heteronímia pessoana e, consequentemente, uma certa ressonância whitmaniana.
No conjunto destes cadernos consegue também, habilmente, entrelaçar traços profundamente líricos e amorosos com registos característicos de manifesto político, revelando um notável equilíbrio entre a sensibilidade do poeta e a vivência do guerrilheiro.
Transcrevem-se de seguida três poemas, que integram respectivamente os cadernos Flores Armadas, O Guerrilheiro e O Amor Distante:
ENXERTIA
Teu corpo mulata
é o corpo da vida nova
é o corpo do futuro.
Olha para ti
descansa os olhos sobre as coisas
desenha com os dedos na areia
a nossa humana geografia
verás as rosas enxertadas nas acácias
darem flores mais belas que elas próprias.
EMBOSCADA
O dia estranhamente frio
o tempo estranhamente lento
a vegetação estranhamente lenta
a estrada estranhamente clara
todos estranhamente mudos
placados e estranhamente à espera.
Um tiro
e as rajadas uns segundos
até que estranhamente duro
o silêncio comandou de novo os movimentos.
Talvez fossem homens bons os que caíram
mas cumpriam estranhamente o crime
de assassinar a pátria alheia que pisavam.
A PARTIDA
As horas chamaram-me.
Porquê que o tempo tem medida
e abre com punhais o seu avanço?
Por medo
não olhámos os relógios
nem em torno
nem nos olhámos
não nos falámos
com medo que as palavras
as luzes
as coisas
nos prendessem com cadeias inquebráveis.
Eram retratos dos pais
e dos amigos
as casas velhas
o nosso quinto aniversário
as praias e os navios grandiosos
o que víamos.
Os murmúrios desgarrados
das presenças
parecem lianas poderosas.
Mas quem mede o tempo agora?
Quem tem coragem de dizer-me
que o tempo é um comandante
com plumas nos dedos ansiosos?
Oh paisagem da minha infância!
Oh mulemba solitária!
As praças estão mais iluminadas
a gente fala mais
as vozes mecanizadas
anunciam a partida de aviões
para Tóquio ou Buenos Aires
não importa.
Corpo presente eu sinto as tuas mãos
humedecidas
como se os olhos se tivessem transplantado
para chorar escondidos do luar
e da hora exacta.
Longe
os homens morrem sob a fúria americana de matar
e nós aqui sem palavras
sem gestos sem silêncio
não sabemos se a partida se retarda
não sabemos nada
queremos nada saber como se pedras
como se asfalto que encurta os pólos
dos dois mundos em rotura.
Mas quem é esta gente
que nos recorda sermos dois
nos instantes que antecedem o vulcão?
Não quero ouvir ninguém!
Não quero ouvir ninguém
que eu sou um homem transformado
em temporal.
Eu não inventei os aviões
nem construí os aeroportos
apenas me senti discriminado
homem sem sombra
a quem roubaram a juventude
e os ecos.
Eu vou partir
pagar um preço
para ser homem igual
ao mundo
e pelo mundo em frente.
Não afastes o teu rosto desse espelho
quero olhar-te assim sem que me vejas
quero descobrir-me um braço mais
o que parte a empunhar metralhadoras
e os que ficam para estreitar-te
num abraço permanente.
A morte pode talvez supreender-me,
um guerrilheiro pisa caminhos
que ninguém traçou
e a moradia dos seus passos
é um medo feito de mil coragens
reunidas
no dever
e no amor de olhar a própria terra
como quem beija um botão de rosa.
Não alongues o olhar agora
que te vejo mais serena
quero beijar-te como se beija uma laranja sequioso
um laranjal que nos perdesse
para sempre
entre os seus perfumes acres
e suaves.
Dêem-me laranjas
dêem-me laranjas tão doces
que os meus lábios
saibam pronunciar apenas paz
e desconheçam lágrimas de sal
e corações que batam apressados.
Os canhões as armas esperem do futuro
museus da bestialidade humana
a liberdade seja o fruto do pomar inesgotável
configurado nas mãos de todos os que amam.
Até que eu desapareça não te movas
dos vidros que dentro de momentos serão intransponíveis.
Deixa que te fixe um gesto que não mude
e me acompanhe
e me confunda
entre o estar presente e a ausência.
Agora
agora meu Amor
que se iniciam os passos da distância
podes chorar
ficar tranquilamente
olhando o mar
porque só partem
os guerrilheiros
que amam a terra
totalmente
a possuem
e engravidam
com o próprio sangue.
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