18.02.22
Ruy Cinatti - Memória Descritiva
blogdaruanove
Ruy Cinatti (1915-1986), Memória Descritiva (1971).
Capa de João da Câmara Leme (1930-1983).
Poeta cuja obra está intimamente associada a Timor, onde viveu durante 1946 e 1947 e entre 1951 e 1955, tendo ali regressado ainda em 1966, Cinatti limita-se no presente volume, dedicado à memória de José Régio (José Maria dos Reis Pereira, 1901-1969), a evocar apenas num dístico a sua ilha dilecta – "Consegui tarde Timor / ilha perdida."
Já no ano anterior à saída deste volume havia publicado Uma Sequência Timorense, que consolidava a afirmação de uma essência poética intimamente ligada à ilha, após mais de vinte anos de uma vivência insular ora local, ora mental, ora emocional.
A sua obra, contudo, denotava também outras influências geográficas e culturais, como se pode constatar nos volumes Crónica Cabo-Verdiana (obra publicada em 1967, sob o pseudónimo Júlio Celso Delgado) ou Ossobó - História de um Pássaro das Ilhas de S. Tomé e Príncipe (1967), edição posterior de um conto da juventude que havia sido escrito em 1936, na sequência da sua participação no 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias Portuguesas de África Ocidental.
Distinguido com o Prémio Antero de Quental, em 1958, com o Prémio Nacional de Poesia, em 1968, com o Prémio Camilo Pessanha, em 1971, e com o Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia, em 1982, para além de diversas monografias específicas sobre determinadas características de Timor, editadas a partir de 1950, Cinatti havia ainda publicado, até 1971, os seguintes volumes de poesia – Nós Não Somos Deste Mundo (1940), Anoitecendo a Vida Recomeça (1941), Poemas Escolhidos (1951), O Livro do Nómada Meu Amigo (1958), Sete Septetos (1968), O Tédio Recompensado (1968) e Borda d'Alma (1970).
Transcreve-se de seguida o poema História Contemporânea, onde surge o dístico referido anteriormente:
"Enquanto a Europa ardia,
nós apodrecíamos.
(Heil Hitler, galhardetes, mocidade
e os VV da liberdade)
Fantochadas!
Mil novecentos e quarenta.
(Não esqueçam)
Amávamos a pátria com delírio.
Eu apanhei uma sova
por causa da Inglaterra,
porque era parvo, fiel
e lusitano.
A Espanha era ibérica...
(Não esqueçam)
Entretanto, outros e outros,
de antes e depois,
assumiam postos.
Repetiam passos dados.
Condenados.
E nós de Peniche ao Porto,
a pé,
novos peregrinos. (Não esqueçam)
Social, o colectivo
é o mote do dia
(repetido).
O indivíduo,
esse não (senão
quando habitar arbitrários
lugares vários).
Era doutrina encerrada
em discursos
com as patas no ar
em vez de apertos de mão.
Ó meritória
condição a nossa
de novos Amadizes!
Outrora havia prodígios.
Aos quinze,
era a Índia.
Aos dezassete o Japão.
Aos trinta
tínhamos dado a volta ao mundo
e voltado à terra, entre
Almada e a Caparica,
para escrever um livro:
Peregrinação!
Agora há que ver a vida
como ela é. (Não esqueçam)
Eu quis ir ao México.
Quis ir a Paris.
Era proibido.
Consegui tarde Timor,
ilha perdida.
Mas tanta sublimação
do super ego
no ego.
Mas tanta fastidiosa
inibição, intervenção...
Foi preciso ter pecado,
unir-me a mim próprio, todo,
para descobrir o mundo.
Há que ver a vida
como ela é. (Não esqueçam)
E merda para a Inglaterra,
bêbeda invertida,
maga, soleníssima
terra onde nasci. (Não esqueçam)
Mas nós somos portugueses.
Não esqueçamos."
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