21.06.22
M. António - Crónica da Cidade Estranha
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M. António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), Crónica da Cidade Estranha (1964).
Ensaísta, ficcionista e poeta, Mário António havia publicado até à data de edição desta obra os seguintes livros de poesia – Poesias (1956), Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo - Poemas Angolanos (1962; prémio Camilo Pessanha), 100 Poemas (1963; prémio Ocidente) e o romance Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), para além de ter colaborado em diversas revistas, como Mensagem (1952), e publicado alguns ensaios.
Posteriormente haveria de publicar Farra de Fim-de-Semana (1965), Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Luanda - Ilha Crioula (1968), Rosto da Europa (1968), Coração Transplantado (1970) e inúmeros ensaios que marcariam o seu percurso académico e de investigação, o qual culminaria num Doutoramento em Estudos Portugueses, com especialização em Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa (1987).
Depois de concluir o curso liceal, em Luanda, foi observador meteorológico de 1952 a 1963, ano em que passou a frequentar, em Lisboa, o curso de administração ultramarina no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina. Enquanto activista político, colaborou na fundação do Partido da Luta Unida dos Africanos de Angola (1953) e do Partido Comunista Angolano (1955), partidos que haveriam de estar na origem do Movimento Popular de Libertação de Angola, fundado em 1956.
É ainda autor da letra do conhecido Poema da Farra, musicado e cantado por Ruy Mingas (n. 1939).
A presente obra divide-se em duas secções – a primeira, com uma narrativa mais longa, datada de 1957-58, que se desenrola ao longo de 83 páginas e XV capítulos; a segunda, intitulada Apêndice, com um conjunto de dez textos mais curtos, ostentando títulos diferenciados cada um, apresentados ao longo de 32 páginas.
Do capítulo XIV transcrevem-se alguns parágrafos:
"Ele ama os cheiros da cidade como ninguém. ou talvez não seja bem assim. há os que os não sentem, mergulhado sempre neles; e há os acostumados aos ambientes esterilizados, inodoros (mas têm um cheiro, sim, que ele já sentiu!), que deitam a mão ao nariz quando o seu apurado olfacto acusa certas presenças incomodativas. Incomodativas e plebeias.
Mas ele acha que sim, que tudo tem um cheiro. E os únicos cheiros que não ama são precisamente aqueles que a patroa não sente na casa onde tem de limpar constantemente os móveis, o chão, tomar banho (a patroa sempre aflita com o seu cheiro de catinga), cheiros que não são da vida, mas só cheiros, isolados, incomodativos. Sim, esses realmente incomodativos: o «polish», a graxa, a cera e, agora se lembra, aquelas coisas que fazem da senhora uma pessoa diferente, depois que ela se fecha no quarto para se preparar.
Dos outros cheiros ele gosta, ou melhor: entrega-se-lhes. O cheiro a terra, material, entrando pelas narinas, da sua cubata. Cheiro variável com o tempo. Enorme, envolvente, colando-se ao corpo, quando o Sol do meio-dia reduz as sombras; repousante, sossegado, à noite, quando a paisagem dorme; inquietante, como uma mulher, quando a chuva se vai embora e pingos desgarrados tamborilam no zinco do telhado.
Há ainda os vários cheiros da vida, os cheiros das aglomerações humanas. De todos, o mais complexo, vário, colorido, gritante, é o do mercado, com as mulheres sentadas no chão, as quindas à volta, um abano a afugentar as moscas que querem pousar nos bagres secos, negros e submetálicos; no bombó assado; na batata-doce escondendo sob a pele queimada, baça, uma quentura amarela; nos dendéns vermelhos; nos limões de casca seca e ácida; nos cocos cor de capim da cubata... ou então em coisas que ele aprecia mais mas que são raras, misteriosas e estranhas, como o jinjimo ou o muxilo-xilo, cada um exalando o seu cheiro, numa longa gama, com gradações, correspondências e contrastes, dispersões e tempos mortos, pausas e sequências até ao infinito, numa composição avassalante. Diante do mercado – a mais complexa composição de cheiros que conhece –, ele não resiste: entrega-se. E fecha os olhos precisamente pela mesma razão por que o senhor doutor fecha os dele, ao pé da telefonia, a ouvir aqueles sons que ele também gostaria de entender, mas só lhe chegam de mistura com o tinir da louça que lava.
E os cheiros acres, poderosos, construtivos, dos homens no trabalho? Lembra-se de quando trabalhou na estrada, a picareta, na longa fila de homens vergados. Um cheiro que tinha modulações, ia a dizer, musculares, se retinha e expandia, e martelava com um som cavo e compassado nas suas narinas. Um cheiro poderoso, hipnotizante, que identificava os homens.
Também lhe agradavam os cheiros da praia, das formas coloidais que a maré vazante deixa sobre a areia, um cheiro que parece vir de baixo da terra e sobe, sobe, até afogar um homem. Ou o cheiro do fumo das fogueiras em que se assam mabangas, vivo, pontuado de renúncia e estranhamente apetitoso. Ou ainda o cheiro do peixe a secar ao sol, tão identificado com a luz que dir-se-ia vir do alto e ocupar todo o espaço."
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