20.03.23
Júlio Celso Delgado - Crónica Caboverdeana
blogdaruanove
Júlio Celso Delgado (pseudónimo de Ruy Cinatti, 1915-1986), Crónica Caboverdeana (1967).
Escritor cuja obra é habitualmente associada a Timor, Ruy Cinatti, a exemplo de outros autores que pontualmente escreveram sobre locais menos expectáveis na sua topografia literária, como Maria Ondina Braga (1932-2003), adopta aqui um pseudónimo (que, na dedicatória manuscrita, assume quase como heterónimo – " [...] com um sorriso do heterónimo e o agradecimento e estima do Ruy Cinatti / Julho 68") para retratar a condição individual e sócio-geográfica da população de Cabo Verde.
Esta crónica poética, onde o lirismo fica soterrado pela realidade crua e trágica do quotidiano, assume formas múltiplas e polifónicas, de matiz expressionista e registo quase neo-realista, cujas características estruturais e conceptuais estão claramente expressas em algumas secções como A Fome e Os Governadores, ou em subtítulos como A Sociedade em Algumas Vozes, O Ambiente em S. Vicente ou Memórias de um Furriel Miliciano Expedicionário.
Alguns dados biobibliográficos sobre o autor podem ser consultados num outro artigo, anteriormente publicado neste espaço, sobre Ruy Cinatti (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/ruy-cinatti-memoria-descritiva-36318).
De este volume transcrevem-se dois poemas, As Moscas e Se eu me casar aos vinte:
AS MOSCAS
Acudi, Senhor! As moscas
comeram-me o coração.
Não foi só a falta d'água,
nem os pastos, nem as cabras
a roerem trapos,
a lamberem pedras
e a morrrem de olhos virados em água.
Pior do que a fome, as moscas
azuis, voluptuosas,
devorando uma mulher
perseguida pela fome,
caída à beira da estrada
quando se deu a invasão
das moscas em Cabo Verde...
Se eu me casar aos vinte,
já casado aos dezasseis,
sei que terei um filho
agorinha, e que fiz pela vida.
O resto,
é coisa que eu não sei.
Carregar sacos no cais,
ir à pesca ao domingo,
olhar o mar que é tão lindo,
embalar-me numa morna
até sentir que são ondas
os ventres a meu colados;
beber forte até não ter
sítio onde cair morto
e depois dormir, dormir
e sonhar com o paraíso,
são coisas que também sei.
Afinal, sabemos tudo
menos aquilo que eu não digo
e que é a razão segura
de sermos pobres de pobres
em Cabo Verde.
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