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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

16.02.24

Carlos Gouveia - Utanha Wátua


blogdaruanove

 

 

Carlos Gouveia (1930-2006), Utanha Wátua (1972).

Capa de Alfredo Freitas (datas desconhecidas).

 

Este volume integra a colecção Cancioneiro Angolano, que, sob a direcção de Filipe Neiva (António Filipe Sampaio Neiva Soares, n. 1940), Orlando de Albuquerque (1925-1997) e Wolfango de Macedo (Fernando Aníbal Wolfango Pereira de Macedo, n. 1931), já havia publicado Angola Poesia 71 e anunciava a próxima publicação de As Vozes Perguntam, de Orlando de Albuquerque, O Silêncio das Cidades, de Artur Queiroz (n. 1945), Fase 1, de João Serra (1950-2013) e Também já fomos um, de Ruy Burity da Silva (n. 1940), obra que já se anunciava em 1969 mas da qual não há resgisto posterior .

 

Autor de O Vagabundo da Cidade (1972), Olowali Yeto (1978), Na Rota dos Escravos (1994), em prosa, e de Olusapo (1980), A Noite do Meu Exílio (1992), De Benguela - Poemas de Amor e Não Só (1995), em verso, Carlos Gouveia colaborou em diversas publicações periódicas angolanas, como Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Sul e a província de Angola. As crónicas publicadas neste último jornal, sob título homónimo, foram reunidas no primeiro volume acima referido.

 

Em 1967 foi galardoado com o primeiro prémio de poesia lírica nos jogos florais de Benguela, com o poema Prece a mamã Chica, reproduzido na presente obra, estando alguns dos seus poemas incluídos na Antologia de Poetas Ultramarinos (1971), organizada pela revista Prisma.

 

O volume Utanha Wátua apresenta 40 poemas cujas temáticas oscilam entre memórias do passado e da infância (A Idade da Fruta, O meu barco de bimba, Para lá do rio), a realidade social e racial de Angola (Chão de Terra, A Última Esperança, Dona Margarida, Madalena), o desespero latente e a ânsia por um quotidiano diferente (Motivo para um Poema, Um Poema em cada Rosto, Calulú), onde se enredam os encantos e desencantos de Benguela, e dos seus bairros suburbanos, sobre os quais pairam indizíveis indignidades e silenciadas injustiças. 

 

Manuel Nunes Cardiga (n. 1933?) faz ainda outras leituras, no seu prefácio à obra: "Poeta da negritude, Carlos Gouveia? Antes, poeta dos humildes, sem olhar à pigmentação da pele. Poeta dos dramas que super-abundam no mundo sub-urbano de qualquer cidade angolana, tornado paladino da compreensão e da fraternidade."

 

O mesmo crítico prossegue a caraterização do autor e da sua poesia acrescentando: "(...) imagens da sua vida real, ao longo do eterno peregrinar de 35 anos, através desta Benguela de feitiços, cazumbi, praias morenas, bairros e sanzalas marginais, prenhes de sofrimento e angústias."

 

Transcreve-se, de seguida, o poema que dá título a esta obra, um poema que parece ser de um minimalismo elementar, superficial e quase repetitivo, mas onde as revoltas contidas e os protestos silenciados se insinuam e sobrevivem.

 

Aliás, na dedicatória manuscrita, patente neste exemplar da obra, Carlos Gouveia refere: "(...) oferece o autor estes poemas da verdade. Toda a verdade é dolorosa por isso a reprimimos. (...)"

 

"O Sol queima

a pele das pessoas,

a cabeleira da terra

fica ressequida,

gretada,

faminta,

desolada...

 

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

 

Lá nos longes, na montanha,

o calor queima a terra,

 o coração do homem

fragmenta-se,

a paisagem alimenta-se

de solidão...

 

Terra grávida de sede,

Homem vazio de esperança,

Milho enfezado,

mandioca desenraizada,

paisagem dolorida,

Sol de Fogo

a escaldar cabeleiras;

 

Lavra ressequida,

Céu límpido,

núvens brancas,

rosto negro,

suores frios

no calor do drama...

 

Chuva que não vem

matar a sede;

Fome que aumenta,

lavra perdida,

anémica;

Frutos pendentes,

doentes;

Pedras frias,

mudas;

Cão esquelético,

dorme,

um sono de ossos;

Abutre espreita

a vida que morre;

Homem corre

léguas de suor;

Chora,

lágrimas de dor;

Grita,

vozes de séculos;

Gesticula,

movimentos de criança !

 

A seca persiste,

a terra existe,

as raízes murcharam,

os olhos fecharam,

as bocas saciaram

mil protestos.

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA ! ...

 

A paisagem magoada

colocada a nú

a escravidão do mundo ! ..."

 

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