01.07.24
Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (II)
blogdaruanove
Destaca-se neste artigo a produção literária de Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), que na presente colectânea apenas tem reproduzida a narrativa Dragão e Eu, conto que entretanto já havia sido publicado na revista Vértice, números 4 a 7, de Fevereiro de 1945.
Médico, natural da ilha do Fogo, Teixeira de Sousa foi presidente da Câmara Municipal de S. Vicente durante mais de cinco anos.
Pode dizer-se que as suas publicações se dividem em dois grandes períodos – um, onde surgem essencialmente narrativas curtas, que decorreu antes da sua aposentação clínica; outro, onde surgem maioritariamente romances, que decorreu depois dessa aposentação.
De facto, até meados da década de 1980, a sua produção literária editada resumiu-se praticamente a contos, dispersos por revistas e antologias, a um conto – Na corte d'El-Rei D. Pedro, publicado no volume Natal, editado pela Lusofármaco em 1970, de que foi co-autor com Orlando de Abuquerque (1925-1997) e Pedro Mayer Garção (1905-?), e à colectânea Contra Mar e Vento (1972).
A maior parte da sua obra ficcional surge a partir da década de 1980, num conjunto onde, para além de Capitão-de-mar-e-terra (1984), Djunga (1990) e Ó Mar de Túrbidas Vagas (2005), sobressaem os títulos de uma trilogia romanesca – Ilhéu de Contenda (1983), Xaguate (1987) e Na Ribeira de Deus (1992).
Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos do conto que surge nesta antologia:
"Eu e o Dragão fomos companheiros inseparáveis nas jornadas para o interior. A princípio caminhou tudo muito bem, mas depois comecei a notar o ambiente hostil que me rodeava. Duma ocasião, apedrejaram-me na estrada e por acaso Dragão correu atrás do homem que se agachou por trás de um tamarindeiro. Em parte dava razão àquela gente. esperavam ansiosos pela chuva, que não vinha.
Mesmo que chovesse, era já tarde. Compreendia que a situação se tornava cada dia mais difícil e eu tinha que trabalhar de qualquer forma. Dragão de vez em quando espetava as orelhas e punha-se a farejar por todos os lados. Eu sacava da pistola e parava a cavalgadura. Depois continuava, estrada fora, sempre atento às pessoas que passavam.
De regresso tinha o amor gostoso da Guida. Minha tia soube que eu andava ligado a uma rapariga de Fonte-Lexo. Falou comigo quase em segredo e com muito receio que disparatasse. Se a minha mãe soubesse, teria grande desgosto. Que atentasse nos homens que se amigavam com mulheres dessa laia e que nunca mais se libertavam dos seus braços. Não fizesse uma coisa daquelas porque mais tarde havia de me arrepender. Não me lembro do que lhe respondi mas o que é certo é ela nunca mais me ter tornado a falar no assunto.
As avaliações acabaram e tudo depois seguiu o caminho que já se esperava.
A vila enchia-se de gente que abandonava os campos sem água. Vinham esfarrapados, magros, com chagas enormes fedendo a podridão. As mães traziam os filhos pequenos à cabeça, em grandes balaios. Paravam à porta dos sobrados e mostravam os cestos de carriço onde se viam olhos gulosos emergindo de carinhas murchas de fraqueza. Deambulavam pelas ruas num cortejo de tristeza e desespero.
Pinoti-Capador morreu inchado, a brincar com uma pedra. Perdiam o juízo e ficavam que nem umas crianças. Os meninos ganhavam rugas e pareciam uns anões velhos. De noite recolhiam-se no casarão da Escola e no outro dia, ia-se ver, eram vivos e mortos estendidos a esmo pelo chão.
Recomeçava a peregrinação pelas portas das casas e repetima-se as cenas que então se viam. Meninos chupavam tetas vazias, mães que recusavam o comer aos filhos, velhos que morriam nos largos públicos, na presença de toda a gente.
Quando lhes dava para emagrecer, iam a ponto de pouco faltar para uns esqueletos perfeitos. Mas depois inchavam e ficavam luzidios como a pele de um tambor. A seguir estiravam-se de comprido, os olhos escancarados para o céu aberto, sem nuvens, donde não caía a chuva.
Foi um tempo terrível aquele, para as gentes da ilha."
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