03.10.24
Poesia de Moçambique (II)
blogdaruanove
Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).
Até à data desta colectânea, Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994) havia publicado 40 e tal Sonetos de Amor e Circunstância e uma Canção Desesperada (1970), O Morto. Ode Didáctica (1971), A Arca. Ode Didáctica na 1.ª Pessoa (1971), Uma Meditação / 2 Laurentinas e Dois Fabulírios Falhados (1971).
Por ocasião da efeméride comemorativa dos 400 anos de publicação de Os Lusíadas (1572), lançou ainda As Quybyrycas (1972), longa obra que poderá ser interpretada como uma irónica anti-epopeia travestida de paródia épica. Jorge de Sena (1919-1978), que na altura se encontrava em Moçambique para assinalar aquele evento camoniano e cuja estreita relação com o autor, e outros escritores moçambicanos, já se mencionou, foi o autor do prefácio a esta obra.
A sua poesia e os seus textos encontram-se também dispersos pela colaboração que manteve com Caliban (revista co-dirigida e co-editada com Rui Knopfli [1932-1997]), A Voz de Moçambique, Colóquio/ Letras e Notícias da Beira, entre outras publicações.
Sobre a obra de Grabato Dias, pronuncia-se assim Maria de Lourdes Cortez, no presente volume – "A ironia, o humor selvagem, o cunho da teatralidade, são, na obra de Grabato Dias, uma componente indispensável da sageza – e da saúde: é pelo riso – e por ter acedido a um terreno onde pode enfim respirar – que o poeta imerge em certos aspectos do mundo extremamente importantes e dolorosos. Face ao marasmo da vida, ao charco liso e morno da convenção, ao mecanismo sistemático do engano, a atitude desenvolta e o cinismo frívolo funcionam como privilégio defensivo, processo de distanciamento; e ganham, mesmo no seu desenrolar absurdo, uma lógica inquietante."
Nesta colectânea apresentam-se seis sonetos e uma longa poesia com estrutura de soneto, reproduzindo-se abaixo o poema Inhaminga, soneto que, à data deste volume, permanecia inédito, e do qual, parafraseando os trocadilhos tão caros ao autor, se poderá afirmar que, ao invés de uma conservadora e estagnada poesia de pousio, apresenta uma "ousada poesia de ousio":
POR INHAMINGA
Aqui me vi nascer nas gratas dobras
duma ternura em sândalo e pau rosa
com papaias do amor que ninguém usa
afora as mães, que usando embora as sobras
de um amor desusado, dão num sousa
um leite silva de amansar as cobras.
Aqui, sangue jocoso enviças as obras
do que deixei atrás votando à musa
esta grata malícia ou este ousio.
Nasço onde me prefiro. Aqui me adulo
onde acordado espero mais do frio
que da quente matriz onde me chulo.
Aqui nasço e renasço sem fastio
do desfastio que é estar vivo e fulo!
Ainda num registo de anti-epopeia iconoclasta, onde uma orgia de neologismos, trocadilhos, insinuações e inovações lexicais se entrelaça num provocativo e quase pornográfico delírio cacofónico, transcreve-se também a apoteótica Apoetese de Plurais:
ARIA EM EL
APOETESE DE PLURAIS
Dilatação das coronárias
fumigação de coronéis
coroação de funcionárias
que a vinte e seis papam donzéis
corneações já partidárias
de cavalinhos de carrosséis
osgas-cabrões, ratas falsárias
martas zézinhos ritas manéis
trazem de luto as dores canárias
e no escorbuto ouro de anéis
o absoluto mudou as árias
das cifras várias e faz pastéis
com as razões mais extraordinárias
e comissões de veterinárias
apalpam pasmos espasmam corcéis
do amor recibo das semennárias
traças de arquivo que lambém méis
grossos, lascivos, das luminárias
abelhas sábias rés de bordéis
que voam sós nos céus das várias
autoridades de cascavéis
plenipo putenciárias
filhos de apuros bem o sabeis
a morte é lenta e as três marias
são quase virgens, rica vintage
de trinta e três, licor de leis
licor de lérias primor das tárdias
hemo petizes perdizes débeis
da caça fina grossa de asnárias
discursativas odes cruéis
descansativos gódes por árias
e ventos vários showsando seis
glândulas nulas lulas mamárias
com leite ralo de hall de hotéis
galeões canela e naus corsárias
porões à vela stripastíseis
de membros mísseis desorbitais
falos passíveis de mil e seis
centos incríveis conventuais
maneiras cruas mas cozinháveis
de servir frios mas cozinháveis
a servir mortos mas comestíveis
a servir podres mas digeríveis
a servir chochos mas toleráveis
rebeldes sim mas algemáveis
no alguidar das leis agrárias
pataca a mim pataca às várias
patas e ratas patarratárias
zitas e parasitárias
parras com guitas nas nadegárias
autoridades alfandegárias
da raia aflita dos indizíveis
polvos gigantes indivizíveis
que irmãos nos cindem o bem possível
no cono inteiro da alimária."
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