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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

09.11.24

Orlando Mendes - Véspera Confiada


blogdaruanove

 

 

Orlando Mendes (1916-1990), Véspera Confiada (1968).

Capa de Alfredo da Conceição (1919-2011).

 

Orlando Mendes, de quem Eugénio Lisboa (1930-2024), logo em 1969, noutro contexto (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290), viria a dizer  "(...) poeta cheio de dignidade recolhida que é Orlando Mendes (tão pouco citado, tão imerecidamente preterido por outros de interesse poético infinitamente menor...)", havia publicado até ao ano de 1968 os volumes de poesia Trajectórias (1940), Clima (1959), Depois do Sétimo Dia (1963), Portanto, eu vos escrevo (1964) e o romance Portagem (1966).

 

Posteriormente, em poesia, haveria de publicar Adeus de Gutucumbui (1974), A Fome das Larvas (1975), País Emerso I (1975) e II (1976), Produção com que Aprendo (1978), Lume Florindo na Forja (1980) e Faces Visitadas (1985).

 

Publicou ainda uma peça de teatro, Um Minuto de Silêncio (1970), e duas obras infantis Papá Operário Mais Seis Histórias (1980) e O Menino que não Crescia (1986).

 

Nascido na Ilha de Moçambique, veio a licenciar-se em Ciências Biológicas na Universidade Coimbra, especializando-se depois em botânica e fitosanidade, o que explicará a sua afinidade e proximidade com o autor do desenho da capa, Alfredo da Conceição, que se viria a consagrar como notável ilustrador naturalista de fauna e flora.

 

Nas badanas do presente volume, Eugénio Lisboa aprecia da seguinte forma o autor e a obra – "Numa terra em que quase tudo é ao nível do «pouco» e em que a seriedade literária, portanto, pouco se faz notar, Orlando Mendes consegue ser, ao mesmo tempo, o dono de uma Obra poética que se destaca junto ao nível das mais conseguidas, e o dono de um  rosto humano que quase ninguém conhece. Digamos que se trata de uma certa vitória."

 

E acrescenta – "É um homem simples, discreto, trabalhador, de pouco convívio. Nem sequer cultiva a convivência literária e, para o caso, tanto melhor! Não sei se lê muito, se pouco. Tem a sua vida à parte, às vezes difícil (supomos), e vai, em silêncio e sem escândalos (que ajudam), debitando, a espaços largos mas teimando, um discurso poético e uma conduta cada vez mais exemplares."

 

Para concluir – "Numa terra, numa época e numa sociedade em que o intelectual é òbviamente o homem a liquidar (já foi dito!), e o intelectual com dignidade o homem a liquidar duplamente, Orlando Mendes acrescenta ao peso substancial destes dois pecados, a chaga suplementar de uma exemplar modéstia. Confessemos que é demasiado!"

 

Para o autor, "a seiva elementar de África", que menciona no seu poema "história", parece ser intrínseca ao ritmo e ao sentido da poesia, não tendo de ser explícita nem tendo de afirmar continuamente a sua africanidade em referentes do real. Daí a quase ausência de menções explícitas a África, neste volume, ou de um léxico que, imediata e especificamente, para ela remeta.

 

Transcrevem-se, por isso, duas das poucas poesias que constituem excepções a essa prática:

 

chegada

 

Para o homem chegado de Lisboa

Trazendo mulher e filhos e calos

Nas mãos e gostos a vinho e broa

Nos lábios frios de madrugá-los,

 

Para o homem perplexo neste cais

De África, novos gostos terão

Entre lembranças e outros sinais

De estar, o vinho e também o pão.

 

Os pais sofram a crise intermitente

De viver ou morrer com a seara

E a saudade que os atormente.

 

Os filhos cresçam queimando a  cara

com o sol que o menino negro sente

às costas da Mãe que gera e ara.

 

manhã de junho

 

Ao longo do litoral avisado frequentemente,

Estão a decorrer exercícios de fogos reais

Para o mar calmo na minha infância insular.

E mufana cheira a pólvora e brinca na areia.

 

No campo, anda a máquina de colher o arroz

Alugada pela maquia e gastando combustível.

O homem semeou, porém, pardal-ladrão dispôs

Do grão maduro, apesar  de tambores de lata,

Petardos e tiros e de o avião ter destruído

Milhões de machos e fêmeas, com parathion.

 

Uma nuvem verdadeira ou de insectos subtis

Ou talvez de olhos apontados contra o sol,

Encobre o seco perfil de madala mais velho

Erecto sobre a savana que recebe os mortos,

O chikomu e o suor e as sementes guardadas.

 

A mil trezentos e tal metros distante dali,

A vaca pariu em boa hora, o leite escasseia.

Mas choveu há dias e rebentam capins tenros

E a lagarta invasora só aparece em Dezembro.

 

Uma palhota acabara de ser arranjada quando

Vibraram os dinas por toda a vasta planície

E não repicam os sinos e não tocam a rebate

E a dilacerante prenhez deita-se na esteira

Com os randes que vieram do Transvaal em nó

Junto ao seio, as mãos raspando o chão frio."

 

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