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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

17.09.25

Revista Cultura (VIII)


blogdaruanove

 

Com já foi referido, este número da revista apresenta um conto de Onésimo Silveira (1935-2021), intitulado Superstição, e um poema de Ovídio Martins (1928-1999), que se transcreveu anteriormente.

 

Alguns dados bio-bibliográficos relativos a Onésimo Silveira também já foram mencionados, pelo que aqui se transcrevem, apenas, os primeiros parágrafos do conto Superstição. 

 

"A princípio, nhâ Livramento desconfiou ser pirraça dos filhos de nhô Giraldo; mas, por fim veio a ter a certeza de que era «medo», que era obra das almas desaparecidas. Por isso foi ela quem disse ao neto que se tratava de coisa malignas, porque «Planeta» estava mau.

 

– Impossível! – disse ela. Filhos de nhô Giraldo a tirar pedras todos os dias no Fundo de Nhô 'Velino, não pode ser... Não! há qualquer mistério nesta historiada...

 

– Sempre, sempre, mamã – observou Julim. Primeiro pensei que fossem as cabras que rolavam as pedras da ladeira; mas hoje, de-vontade, não deixei sair nenhumas da ribeira. E... pronto. Um bocadinho depois lá vinham novamente as pedradas... Parece até, que depois de bocê ter esconjurado... as coisas têm andado pior. Da primeira vez foi só uma pedrada... Meninos de nhô Giraldo, não pode ser, tanto mais que Toi e Esteve foram dar comida às cabras na Chã de Nhô Henrique Batista.

 

Nhâ Livramento passou as mãos descarnadas pelos cabelos brancos, que lhe tomavam a cabeça de ponta à ponta. Levou depois a direita à testa e benzeu-se: – «... Pai... Filho... Espírito Santo, Amen».

 

O clarão avermelhado do sol tombava sobre a linha do horizonte, para trás do Monte da Cara. Mal acabou de se benzer, nhâ Livramento deixou-se ficar parada a olhar vagamente em direcção à rocha da Craquinha, em cuja base fica o Fundo de Nhô 'Velino. Quando pressentiu que Julim acabara de amarrar as cabras no curral de pedra solta ligado à cozinha, deslizou religiosamente até à porta do seu quarto de dormir, estendeu o braço e puxou um mocho de tábuas de caixote e assentou-se; em seguida, com a voz denunciadora dos seus bons setenta e tantos anos, gritou: – «Julim! Ó Julim!».

 

Ligeiro que nem um cabrito Julim logo a encostar-se junto à avó, a quem tratava por mãe. Instintivamente acocorou-se, e a sua cara espantada tomou ares de alegria, assim que sentiu os dedos doces de nhâ Livramento roçar-lhe a carapinha. Como esta se demorasse sem dizer alguma coisa, Julim quebrou o silêncio:

 

– Mamã, e se uma pedra acertar em mim?!

 

– Credo, menino. Credo, Deus te salve? [sic] – berrou nhâ Livramento soerguendo-se do mocho.

 

Após breve pausa, continuou:

 

– ... E amanhã levas os bichinhos para Chã de Mesa, que esta trapalhada das pedras já não me está caindo nada bem!

 

– Mas, mamã, só no Fundo de Nhô Velino é que tem um ou outro pé de palha. Nos outros lugares, é pedra de cima de pedra...

 

– Fundo de nhô 'Velino, não! – retorquiu a velha, um tanto irritada. Tu não sabes a fama desse lugar, menino de Nossenhor. Eu é que sei o que se fazia por lá outrora... Mesmo que nha mãe que Deus haja dizia que lugar de pomba e vaidade é lugar sujo. Quando corria dinheiro, era uma vida de pândegas dia e noite... Agora, os espíritos daninhos que morreram naquela casa grande, que está a dois passos da estrada que dá para o Mato Inglês, têm de cangar nos coitadinhos...

 

– Mas meninos de nhô Giraldo nunca sentiram nada... Só eu, porquê?

 

– Menino, menino! Esta casa parece-me que não anda resguardada: ùltimamente tem havido aqui muita contrariedade... Se o leite não coalha antes de chegar à cidade, é o peixe que vem a cheirar mal; e, quando não é nem o leite ou o peixe, és tu que vens com a história das pedradas! Minha casa nunca foi sítio endemoninhado! Casa de oração é casa de boas sombras, é casa de  Deus Nossenhor 'Sus Cristo. Se há alguma coisa, que vá para os Paços Superiores!...

 

Assim que ouviu dizera nhâ Livramento que casa de oração é casa de boas sombras, Julim lembrou-se de acender a lamparina, não porque se fazia muito tarde, mas sim porque a velha lhe ralhava quando abandonava os santos às escuras. Dirigiu-se à cozinha e, de baixo de uma lata de manteiga «margarine», assente em três pedras negras, em que fervia barulhenta a cachupa, retirou um tição e com ele acendeu a lamparina a gasóleo."

 

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