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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

10.08.24

Revista Cultura (IV)


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O número 41 desta revista apresenta um conto de Onésimo Silveira (1935-2021), Superstição, e um poema de Ovídio Martins (1928-1999).

 

Uma vez que o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira, publicado no número 28 da revista Cultura, já foi aqui mencionado, reproduz-se hoje o poema de Ovídio Martins, cuja nota biográfica ficou registada em artigo anterior.

 

Intitulado Os Homens e a Montanha, o poema traduz todo o sofrimento e desespero dos trabalhadores rurais de Cabo Verde num registo de insistente monotonia, claramente associável ao movimento neorealista.

 

OS HOMENS E A MONTANHA

 

Os homens

cavaram sulcos na montanha

olharam o céu sem esperança

e esperaram o dia de amanhã.

 

Mas o dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Então os homens

foram à montanha

e cavaram mais sulcos

e esperaram o outro dia de amanhã.

 

Mas o outro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

E os homens cavaram

cavaram com raiva

sem dizer palavra

até as mãos sangrarem

mas todos sabiam que esperavam o terceiro dia de amanhã.

 

Mas o terceiro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Já os homens

não esperavam o quarto dia de amanhã?

Sim!

Curvados sobre a terra

cavam, cavam sempre

e continuarão a cavar

até que o seu dia de amanhã

chegue de certeza

num dia preparado

ao cimo da montanha.

 

© Blog da Rua Nove

 

 

01.07.24

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (II)


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Destaca-se neste artigo a produção literária de Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), que na presente colectânea apenas tem reproduzida a narrativa Dragão e Eu, conto que entretanto já havia sido publicado na revista Vértice, números 4 a 7, de Fevereiro de 1945.

 

Médico, natural da ilha do Fogo, Teixeira de Sousa foi presidente da Câmara Municipal de S. Vicente durante mais de cinco anos.

 

Pode dizer-se que as suas publicações se dividem em dois grandes períodos – um, onde surgem essencialmente narrativas curtas, que decorreu antes da sua aposentação clínica; outro, onde surgem maioritariamente romances, que decorreu depois dessa aposentação.

 

De facto, até meados da década de 1980, a sua produção literária editada resumiu-se praticamente a contos, dispersos por revistas e antologias, a um conto – Na corte d'El-Rei D. Pedro, publicado no volume Natal, editado pela Lusofármaco em 1970, de que foi co-autor com Orlando de Abuquerque (1925-1997) e Pedro Mayer Garção (1905-?), e à colectânea Contra Mar e Vento (1972).

 

A maior parte da sua obra ficcional surge a partir da década de 1980, num conjunto onde, para além de Capitão-de-mar-e-terra (1984), Djunga (1990) e Ó Mar de Túrbidas Vagas (2005), sobressaem os títulos de uma trilogia romanesca – Ilhéu de Contenda (1983), Xaguate (1987) e Na Ribeira de Deus (1992).

 

Transcrevem-se abaixo alguns parágrafos do conto que surge nesta antologia:

 

"Eu e o Dragão fomos companheiros inseparáveis nas jornadas para o interior. A princípio caminhou tudo muito bem, mas depois comecei a notar o ambiente hostil que me rodeava. Duma ocasião, apedrejaram-me na estrada e por acaso Dragão correu atrás do homem que se agachou por trás de um tamarindeiro. Em parte dava razão àquela gente. esperavam ansiosos pela chuva, que  não vinha.

Mesmo que chovesse, era já tarde. Compreendia que a situação se tornava cada dia mais difícil e eu tinha que trabalhar de qualquer forma. Dragão de vez em quando espetava as orelhas e punha-se a farejar por todos os lados. Eu sacava da pistola e parava a cavalgadura. Depois continuava, estrada fora, sempre atento às pessoas que passavam.

De regresso tinha o amor gostoso da Guida. Minha tia soube que eu andava ligado a uma rapariga de Fonte-Lexo. Falou comigo quase em segredo e com muito receio que disparatasse. Se a minha mãe soubesse, teria grande desgosto. Que atentasse nos homens que se amigavam com mulheres dessa laia e que nunca mais se libertavam dos seus braços. Não fizesse uma coisa daquelas porque mais tarde havia de me arrepender. Não me lembro do que lhe respondi mas o que é certo é ela nunca mais me ter tornado a falar no assunto.

As avaliações acabaram e tudo depois seguiu o caminho que já se esperava.

A vila enchia-se de gente que abandonava os campos sem água. Vinham esfarrapados, magros, com chagas enormes fedendo a podridão. As mães traziam os filhos pequenos à cabeça, em grandes balaios. Paravam à porta dos sobrados e mostravam os cestos de carriço onde se viam olhos gulosos emergindo de carinhas murchas de fraqueza. Deambulavam pelas ruas num cortejo de tristeza e desespero.

Pinoti-Capador morreu inchado, a brincar com uma pedra. Perdiam o juízo e ficavam que nem umas crianças. Os meninos ganhavam rugas e pareciam uns anões velhos. De noite recolhiam-se no casarão da Escola e no outro dia, ia-se ver, eram vivos e mortos estendidos a esmo pelo chão.

Recomeçava a peregrinação pelas portas das casas e repetima-se as cenas que então se viam. Meninos chupavam tetas vazias, mães que recusavam o comer aos filhos, velhos que morriam nos largos públicos, na presença de toda a gente.

Quando lhes dava para emagrecer, iam a ponto de pouco faltar para uns esqueletos perfeitos. Mas depois inchavam e ficavam luzidios como a pele de um tambor. A seguir estiravam-se de comprido, os olhos escancarados para o céu aberto, sem nuvens, donde não caía a chuva.

Foi um tempo terrível aquele, para as gentes da ilha."

 

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12.06.24

poesias de m. antónio


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Mário António (Mário António Fernandes de Oliveira, 1934-1989), poesias de m. antónio (1956).

Capa de Israel de Macedo (datas desconhecidas).

 

Consagrado poeta, natural de Maquela do Zombo, fez os estudos liceais em Luanda, para onde a sua família se havia mudado entretanto, publicando as suas primeiras poesias ainda enquanto estudante liceal.

 

As suas actividades políticas levaram-no a estar próximo do Partido Comunista Angolano e do Movimento Popular de Libertação de Angola. A partir de 1963 passou a residir definitivamente em Portugal, estando ligado à Casa dos Estudantes do Império e às actividades dos movimentos de libertação ali desenvolvidas. No mesmo ano foi galardoado com o prémio Ocidente para poesia, do Secretariado Nacional de Informação, galardão que, na área do ensaio, foi também atribuído ao professor universitário Torcato de Sousa Soares (1903-1988).

 

Apesar das ligações do autor aos movimentos independentistas, Marcello Caetano (1906-1980), que haveria de suceder a António de Oliveira Salazar (1889-1970) como Presidente do Conselho de Ministros, pronunciou-se assim, em carta datada de 2 de Março de 1965, sobre a obra ficcional de Mário António:

 

"Já conhecia o poeta, o ensaísta, não me fora dado apreciar o prosador de ficção. Claro que o ser poeta é uma condição: e essa condição transluz na própria prosa. Mas neste livro [Crónica da Cidade Estranha, referido aqui: M. António - Crónica da Cidade Estranha - Literatura Colonial Portuguesa (sapo.pt)], embora nos olhos de quem viu haja sempre sonho, a realidade aparece na crueza da observação. E que admirável linguagem! Como a vida dessa Luanda negra e mestiça que eu ainda conheci a impor-se na cidade mal definida dos anos 30 tem no Mário António um contista fiel, amoroso e eloquente! Eloquência sem retórica, a eloquência da vida, dessa vida que nos faz conviver com as figuras evocadas, sentir as suas dores, partilhar dos seus anseios, inquietar-nos com as suas inquietações, entristecer-nos com os seus desalentos e vibrar com as suas alegrias!

Estranho que ao seu livro não tenha ainda a crítica dado todo o valor que ele tem como documento e como obra de arte. Eu considero-o um dos mais notáveis casos literários relativos à crise de transição por que passam os africanos."

 

Naquele mesmo ano de 1965, em carta datada de 7 de Junho, afirmou Roger Bastide (1898-1974) sobre o referido livro: "Votre livre m'apporte une autre Afrique que celle du folklore ou celle de la révolte - une troisième Afrique, qui a gardé toute la poesie de la première (mais maintenant une poésie intérieure) et toute l'amertume de la seconde (mais maintenant un simple goût de cendre dans la bouche et dans la bouche et dans le coeur)."

 

Depois do primeiro volume aqui destacado, e até 1974, publicou as seguintes obras em verso - Amor (1960), Poemas & Canto Miúdo (1960), Chingufo, Poemas Angolanos (1961), prémio Camilo Pessanha de 1961, 100 Poemas (1963), prémio Ocidente / Poesia de 1963, Mahezu (1966), Era Tempo de Poesia (1966), Rosto de Europa (1968), Coração Transplantado (1970).

 

Em prosa publicou também, até 1974, Gente para Romance: Álvaro, Lígia, António (1961), Crónica da Cidade Estranha (1964), Farra de Fim-de-Semana (1965), e Luanda - Ilha Crioula (1968).

 

Várias outras obras publicou depois de 1974, inclusive na área dos ensaios e estudos académicos, uma vez que se doutorou em estudos Portugueses no ano de 1987. Na sequência deste percurso, foi professor de Literatura Africana de Expressão Portuguesa, na Universidade Nova de Lisboa, e presidente da Secção de Literatura da Sociedade de Geografia de Lisboa. Foi ainda Director dos Serviços para a Cooperação com os Novos Estados Africanos da Fundação Calouste Gulbenkian.

 

Antes de publicar este primeiro volume de versos, havia colaborado, em 1952, nas revistas Távola Redonda, de Lisboa, e Mensagem, de Luanda, onde a sua poesia foi divulgada, escrevendo nesse mesmo ano o famoso poema Canto de Farra, posteriormente musicado, cantado e gravado (1975) por Ruy Mingas (1939-2024), com o título Poema da Farra.

 

Segundo a Fundação Calouste Gulbenkian, recebeu ainda, a título póstumo, o prémio Camões (embora o seu nome não conste da lista oficial de galardoados). A mesma Fundação instituíu, em 2001, um prémio literário com o nome de Mário António, que foi atribuído, nessa sua primeira edição, a Mia Couto (n. 1955), pelo romance O Último Voo do Flamingo (2000).

 

Neste volume publicam-se dezanove poemas, escritos entre 21 de Outubro de 1951 e 8 de Setembro de 1954, que, explicitamente, ora evocam memórias de infância ora transmitem impressões amorosas. De uma forma mais velada, outras ideias e situações se transmitem, como no poema que abaixo se transcreve:

 

"O AMOR E O FUTURO

 

Calar

esta linguagem velha que não entendes

(Tu és naturalmente de amanhã

como a árvore florida)

e falar-te na linguagem nova do futuro

engrinaldada de flores.

 

Calar

esta saudade velha

e a nostalgia herdada dos brancos marinheiros

e de escravos negros

de noite sonhando lua

nos porões dos negreiros.

 

Calar 

todo este choro antigo

hoje disfarçado em slow, bolero e blue

(Teu sentimento

e esta pressão dorida que não mente:

teus seios contra o meu peito

a tua mão na minha

o calor das tuas coxas

e os teus olhos ardentes...)

 

Calar tudo isso

(Tu és naturalmente do futuro

como a árvore florida)

e ensaiar o canto novo

da esperança a realizar

Cantar-te

árvore

espera de fruto

ante-manhã

 

Nascer do sol em  minha vida."

 

© Blog da Rua Nove

04.05.24

José Manuel Pauliac de Meneses Alves - Julinha Castanha de Cajú


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José Manuel Pauliac de Meneses Alves (datas desconhecidas), Julinha Castanha de Cajú (1973).

 

Apesar de existirem algumas referências a um José Manuel Pauliac Matos Chaves de Menezes Alves enquanto membro do Partido Socialista e candidato à Presidência da República, não se encontra grande informação sobre este autor.

 

Sabe-se, contudo, que ingressou no Colégio Militar em 1955 e frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa entre 1963 e 1968. Não há qualquer registo bibliográfico sobre o autor na PORBASE, nem este volume se encontra catalogado nessa fonte.

 

O exemplar que aqui se reproduz tem uma dedicatória autógrafa ao Comandante Silva Horta, datada de 2 de Agosto de 1973, na cidade do Mindelo. A dedicatória impressa na epígrafe do volume, que foi integralmente produzido nas Oficinas da Gráfica do Mindelo, apresenta o seguinte texto: "AO PROFESSOR MARCELLO CAETANO / Esperança de melhores dias para Cabo Verde. / Certeza de que o seu esforço de Político e de / Homem é o único que serve Portugal. / O único digno. / Dum Homem digno para um povo digno."

 

Entre os trinta e três poemas que compõem este volume surgem vários onde se abordam memórias e descrições de Cabo Verde, como Cabo Verde, Céu de Cabo Verde, Almoço no Mindelo em Casa da Aninhas, Evocação do Mindelo para Manuel Bandeira, Amanhecer de Domingo ou Pescador de Barlavento.

 

Outros há que apresentam retratos e ambientes de personagens ou espaços mais íntimos, como Menina Crioula, Menina Pobre do Bairro de Chãm de Alecrim, Filha de Rosa, desculpa-me, Julinha Castanha Cajú, Minha Nana de trazer por casa, Fraldas de Chiquinho em dó maior, Papanuene era seu nome, Botequim de Aguinaldo Pires, Relance da minha casa de telha de pau na rua Vasco da Gama ou Clarinha filha de Zézé Tavares, e Toco.

 

Um outro conjunto apresenta poemas abertamente constestários, onde a subtileza da crítica que perpassa por alguns dos anteriores aflora corajosa e amargamente, como em Revolucionário de pastilha elástica, Alucinogéneo para um borocrata [sic] às 6 da tarde, Acuso, Arejar esta terra ou Ainda é tempo.

 

Da leitura de todos eles, independentemente da sua poética mais ou menos conseguida, evola-se um sentimento de surpresa, pela fuga à lírica comum, à linguagem conservadora e às imagens e (pre)conceitos previsíveis, o que gera uma certa surpresa sobre o silêncio e o esquecimento que envolve esta obra.

 

Transcreve-se, de seguida, um poema que muito diz através do seu inesperado Portinglês:

 

"Black is na verdade beautiful

 

Quero um deus negro, a black church i'll need a black god.

com black hair, nos modos, cruz de pau negro,

com black dreams e misturá-lo na multidão.

Black ir de black à primeira comunhão.

 

Black is right, is reason to fight and forgive, nossos pecados,

encardidas nossas mãos.

Black is beautiful, como na canção,

é Brasil, é Angola, C. Verde, qualquer land onde esteja um irmão,

is my way to you, a kind of poem, a kind of blue.

 

É modo de ser, voz, negro é cor, happening, rua negra, casas também.

Harlem de revista, num mundo tecnicolor, cor de terra rica,

ouro, açúcar de cana, Morabeza, black is great, man...

O man black is great, o man black is great, yes man, black is great.

Let's help the world to become black.

Cor de caixão, de fumo, de algumas poeiras,

black is tomorrow and today,

i'll buy a black horse with wings, to teach me how to fly,

é tristeza, é trompete de New Orleans,

o man i love this colour, yes man is really great, yes man

just great.

 

Black é 500 anos de História.

Not stories man, no man.

Black is my colour, great colour man,

beautiful colour,

just beautiful colour, yes man, a kind of love a kind of blue,

a poem a true poem, para homens bons like you..."

 

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25.04.24

Kitatu Mu'Lungo


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Kitatu Mu'Lungo (1974).

 

Até esta data, David Mestre (n. 1948) publicara o livro de poesia Crónica do Ghetto (1973), sendo também coordenador e editor dos cadernos de poesia Bantu e Kuzuela, João Carneiro (n. 1947) publicara o livro de poesia Dezanove Recontos (1968) e Maria Ângela Pires (n. 1944) havia publicado Poemas (1968), em edição de autora.

 

Opúsculo singular de vozes singulares do período decorrido entre a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a independência de Angola, declarada a 11 de Novembro de 1975, congrega, ao longo das suas 56 páginas, textos onde, por entre a opressão, a esperança cintila nas palavras de David Mestre  "Porém / um dia pedir-te-ei gajajas e goiabas e fa- / remos um almoço de frutos que te hão-de es- / corregar do vestido e crescer-me nos pés / e cheios de alegria e liberdade abriremos / uma estrada / plantaremos uma árvore / não escreveremos um livro / mas faremos uma nação.", um desencanto anárquico e irónico perpassa pelo escatológico, sexualizado e quase violento registo de João Carneiro e uma inquieta incerteza toma voz na cidade de Maria Ângela Pires.

 

De David Mestre transcreve-se um excerto do primeiro texto de O pulmão (narrativa autogeográfica), datado de Catete, Outubro de 1971 / Luanda, Março de 1972:

 

"Que posso fazer por ti?

estas as palavras frequentes que digo es-

tirado na cela ao pôr da noite em África

latitude pequena para o teu grande rosto

e acho que o mais que posso fazer é um

pedido ao cabo

pergunta-lhe se podes vir

 

ele recomendar-te-á ao sargento e dei-

xar-te-ão visitar-me estirado na cela cheio de

mim a pensar no Congo ou ainda ou já no

Congo

o meu corpo aguardar-te-á mas lembra-te

não sou eu porque eu abri um buraco no tacto [sic]

anteontem por onde saí

era preciso respirar assim levei o pul-

mão real este é de plástico

não fales senão talvez ouçam o meu silên-

cio e  te façam perguntas sobre a minha deser-

ção de mim

(...)"

 

De João Carneiro transcreve-se um dos Três Anti-Autos, datados de Luanda, Setembro de 1974:

 

"DO INFERNO

marimbo-me nas certezas fálicas do teu corpo amorfo inerte nem estás morta porque nunca soubeste ressuscitar e esta merda será talvez uma terra um país um povo e mijaremos felizes sobre as massas"

 

De Maria Ângela Pires transcreve-se o segundo dos Sete Poemas para a Cidade em Agosto, datados de Luanda, Agosto de 1974:

 

"Povoada de tiros

os olhos abertos

longamente acesos

por séculos de memória

 

Agora a revolta

nos punhos secos das mulheres

nas pernas magras nervosas

das crianças

a raiva

nos dentes dos homens

 

o grito de alívio

a saber a morte"

 

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04.03.24

Novos Contos d' África (I)


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Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

© Blog da Rua Nove

16.02.24

Carlos Gouveia - Utanha Wátua


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Carlos Gouveia (1930-2006), Utanha Wátua (1972).

Capa de Alfredo Freitas (datas desconhecidas).

 

Este volume integra a colecção Cancioneiro Angolano, que, sob a direcção de Filipe Neiva (António Filipe Sampaio Neiva Soares, n. 1940), Orlando de Albuquerque (1925-1997) e Wolfango de Macedo (Fernando Aníbal Wolfango Pereira de Macedo, n. 1931), já havia publicado Angola Poesia 71 e anunciava a próxima publicação de As Vozes Perguntam, de Orlando de Albuquerque, O Silêncio das Cidades, de Artur Queiroz (n. 1945), Fase 1, de João Serra (1950-2013) e Também já fomos um, de Ruy Burity da Silva (n. 1940), obra que já se anunciava em 1969 mas da qual não há resgisto posterior .

 

Autor de O Vagabundo da Cidade (1972), Olowali Yeto (1978), Na Rota dos Escravos (1994), em prosa, e de Olusapo (1980), A Noite do Meu Exílio (1992), De Benguela - Poemas de Amor e Não Só (1995), em verso, Carlos Gouveia colaborou em diversas publicações periódicas angolanas, como Intransigente, Jornal de Benguela, Jornal de Angola, Sul e a província de Angola. As crónicas publicadas neste último jornal, sob título homónimo, foram reunidas no primeiro volume acima referido.

 

Em 1967 foi galardoado com o primeiro prémio de poesia lírica nos jogos florais de Benguela, com o poema Prece a mamã Chica, reproduzido na presente obra, estando alguns dos seus poemas incluídos na Antologia de Poetas Ultramarinos (1971), organizada pela revista Prisma.

 

O volume Utanha Wátua apresenta 40 poemas cujas temáticas oscilam entre memórias do passado e da infância (A Idade da Fruta, O meu barco de bimba, Para lá do rio), a realidade social e racial de Angola (Chão de Terra, A Última Esperança, Dona Margarida, Madalena), o desespero latente e a ânsia por um quotidiano diferente (Motivo para um Poema, Um Poema em cada Rosto, Calulú), onde se enredam os encantos e desencantos de Benguela, e dos seus bairros suburbanos, sobre os quais pairam indizíveis indignidades e silenciadas injustiças. 

 

Manuel Nunes Cardiga (n. 1933?) faz ainda outras leituras, no seu prefácio à obra: "Poeta da negritude, Carlos Gouveia? Antes, poeta dos humildes, sem olhar à pigmentação da pele. Poeta dos dramas que super-abundam no mundo sub-urbano de qualquer cidade angolana, tornado paladino da compreensão e da fraternidade."

 

O mesmo crítico prossegue a caraterização do autor e da sua poesia acrescentando: "(...) imagens da sua vida real, ao longo do eterno peregrinar de 35 anos, através desta Benguela de feitiços, cazumbi, praias morenas, bairros e sanzalas marginais, prenhes de sofrimento e angústias."

 

Transcreve-se, de seguida, o poema que dá título a esta obra, um poema que parece ser de um minimalismo elementar, superficial e quase repetitivo, mas onde as revoltas contidas e os protestos silenciados se insinuam e sobrevivem.

 

Aliás, na dedicatória manuscrita, patente neste exemplar da obra, Carlos Gouveia refere: "(...) oferece o autor estes poemas da verdade. Toda a verdade é dolorosa por isso a reprimimos. (...)"

 

"O Sol queima

a pele das pessoas,

a cabeleira da terra

fica ressequida,

gretada,

faminta,

desolada...

 

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

 

Lá nos longes, na montanha,

o calor queima a terra,

 o coração do homem

fragmenta-se,

a paisagem alimenta-se

de solidão...

 

Terra grávida de sede,

Homem vazio de esperança,

Milho enfezado,

mandioca desenraizada,

paisagem dolorida,

Sol de Fogo

a escaldar cabeleiras;

 

Lavra ressequida,

Céu límpido,

núvens brancas,

rosto negro,

suores frios

no calor do drama...

 

Chuva que não vem

matar a sede;

Fome que aumenta,

lavra perdida,

anémica;

Frutos pendentes,

doentes;

Pedras frias,

mudas;

Cão esquelético,

dorme,

um sono de ossos;

Abutre espreita

a vida que morre;

Homem corre

léguas de suor;

Chora,

lágrimas de dor;

Grita,

vozes de séculos;

Gesticula,

movimentos de criança !

 

A seca persiste,

a terra existe,

as raízes murcharam,

os olhos fecharam,

as bocas saciaram

mil protestos.

E o grito ecoa

nos espaços siderais:

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA !

UTANHA WÁTUA ! ...

 

A paisagem magoada

colocada a nú

a escravidão do mundo ! ..."

 

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06.01.24

Revista Cultura (III)


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O número 15 desta revista apresenta um conto de Francisco Mascarenhas (Francisco Xavier St. Aubyn Mascarenhas, 1928-2016), intitulado Arrependimento, que, tal como a maioria da literatura cabo-verdiana ali divulgada, já havia sido publicado anteriormente na revista Cabo Verde, um "Boletim de Propaganda e Informação" do regime, editado entre 1949 e 1964.

 

Francisco Mascarenhas nasceu no Mindelo, onde frequentou e concluíu os estudos liceais. Licenciou-se depois no Instituto Superior dos Estudos Ultramarinos, em Lisboa, começando a trabalhar como funcionário aduaneiro a partir de 1951.

 

Embora seja autor de obra literária pouco extensa, escreveu ainda para a revista Claridade e para o jornal O Arquipélago, colaborando também com a Rádio Barlavento, do Mindelo, a partir de 1955. Neste mesmo ano surgiu colaboração sua nos números 71 e 72, de Agosto e Setembro, do boletim Cabo Verde, com os textos intitulados Contrabando e As Nossas Ilhas: Uma Aguarela.

 

Do conto Arrependimento transcreve-se um parágrafo:

 

"A culpada de tudo tinha sido a Nuninha. Sim, só ela e mais ninguém. Por causa das suas coisas é que ele estava naquela situação, triste e abandonado. Nha Guida dizia-lhe sempre que deixasse aquela tentação da Nuninha, que apenas queria explorá-lo. Todos diziam à boca cheia, que aquela menina não gostava nem dele nem de ninguém neste mundo. Ela o que procurava era a satisfação dos seus caprichos. Com efeito, nha Guida via as coisas de longe. Tinha sempre pressentimentos. Ela tinha razão. Nuninha nunca se preocupou com emprego. Desprezava lugares de servir. De resto, não sabia fazer nada. Nem cozinhar, nem lavar, nem engomar. Viveu sempre «em pé». Mas andava sempre perfumada, pintada, de nylon e de crepe, de sapatos de camurça, jóias nas orelhas, no pescoço e no pulso. Ela já tinha namorado meio mundo e desgraçado muitos rapazes novos. O seu amor era egoísta, frívolo, passageiro.  Dava a vida para a folia, para bailes, cinema e fumo. Chalino sentia-se infantilmente embeiçado por ela. Todos o aconselharam repetidas vezes a pô-la de parte. Por isso zangou-se com os melhores amigos e esteve indiferente com a própria nha Guida e gente de família, que diàriamente lhe pediam que deixasse aquela menina que só servia para o arreliar, tirar-lhe todo o dinheirinho e sossego. Quase tudo quanto ganhava na baía, debaixo de sol, de suor e descomposturas, ia parar às mãos vesperinhas de Nuninha, que, nem por isso, lha agradecia e deixava de dar as suas voltas duvidosas."

 

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29.12.23

Antologia da Ficção Cabo-Verdiana Contemporânea (I)


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A presente antologia, com selecção de Baltasar Lopes (1907-1989), introdução de Manuel Ferreira (1917-1992) e comentários de António Aurélio Gonçalves (1901-1984), apresenta um conjunto de contos e excertos de romances da autoria de nove escritores – António Aurélio Gonçalves, Baltasar Lopes, Francisco Lopes (1932-2001), Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002), Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), Jorge Barbosa (1902-1971), Manuel Lopes (1907-2005), Pedro Duarte (Pedro Gabriel Monteiro Duarte, 1924-2016) e Virgílio ("Djila") Pires (1935-1985).

 

Prosseguindo com o critério de mencionar em primeiro lugar autores cuja obra ainda não tenha sido transcrita neste espaço, destaca-se hoje o trabalho de Francisco Lopes, representado nesta colectânea com dois contos – Chuva de Agosto, que havia sido publicado no Boletim Cabo Verde, em Outubro de 1958, e O Ourives (inédito).

 

Francisco Lopes frequentou o liceu no Mindelo, licenciando-se posteriormente em Filologia Germânica na Universidade de Lisboa. Regressou em 1959 a Cabo Verde, onde foi docente no Liceu Gil Eanes até 1960, e, a partir desse ano, na Escola Industrial e Comercial do Mindelo, onde veio a desempenhar os cargos de subdirector, até 1974, e director, até 1988.

 

Uma vez que havia frequentado também o curso de Direito, exerceu ainda as funções de Procurador Geral da República na comarca do Barlavento, entre 1961 e 1963, e, entre 1964 e 1974, as de juíz substituto no Tribunal de S. Vicente. Depois da independência de Cabo Verde, veio a ser director regional de educação para as ilhas do Barlavento e presidente da Câmara Municipal de S. Vicente. Entre diversos outros cargos, foi também director da Rádio Barlavento.

 

Em 1960 co-organizou, com Baltazar Lopes, o número 9, o último, da revista Claridade, onde publicou o conto O Resgate. No cinquentenário da mesma revista, celebrado em 1986, contribuiu para uma edição comemorativa, extra-série, com o conto Bisca Interrompida.

 

Do conto Chuva de Agosto, traduzido para língua inglesa em 1972, aquando da sua publicação na África do Sul, e para língua russa em 1983, aquando da sua publicação na URSS, transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Uma atmosfera pegajenta, como só acontece nos dias que precedem as grandes chuvas de Agosto, amortalhava a ribeira. Parecia que o céu se unia à terra, àquela terra boa e generosa, num abraço de calor molhado, sufocante, que vinha de um ror de nuvens carregadinhas de humidade que cavalgavam por cima do vale, como alimárias desenfreadas, semm deixar cair pingo d'água. Um relâmpago cortou o céu em requebros de centopeia, seguido de um grande estrondo. O trovou reboou pela ribeira, cresceu, ganhou força, e, entrechocando-se pelas vertentes, desabou sobre a povação. Lá longe as cumieiras da Rocha Grande devolveram o eco num rugido sinistro.

 

Simão Toca estava sentado no alto do cabeço. Olhou para o céu, semicerrando os olhos feridos pela intensa claridade. Quedou-se assim por algum tempo, vasculhando as nuvens com a vista, a abanar a cabeça devagarinho, devagarinho, como quem escuta uma conversa com atenção. Aquilo era linguagem de chuva de Agosto que não tardava a cair. O que o aborrecia era a questão do dique. Tinha feito uma plantação mesmo a meio da ribeira e a única esperança de a salvar era o dique ficar pronto antes de as-águas. Simão Toca fez um sinal a André, que andava perto, metido numa moita. André aproximou-se.

 

– Boas-horas, nhô Simão – disse numa voz despreocupada. Simão Toca mal lhe respondeu e continuou ali especado, numa posição característica, pernas afastadas, mãos debaixo do queixo, apoiadas numa bengala de nós grossos que se espetava verticalmente no chão, direita como fio de prumo. Simão Toca repuxou os olhos para cima e encarou André.

 

– Então, esta obra no dique fica pronta antes da chuva de Agosto, não? – André rodava o boné entre as mãos.

 

– Trabalho vai indo, nhô Simão, vai indo – respondeu. Dificuldade é o dique ter de passar dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto, no lado norte. Simão Toca mal ouviu a resposta. Levantou-se de repente, como que sacudido por uma ideia luminosa e apontou para a ribeira.

 

– Olha ali, André, olha-me para aquele milheiral lá em baixo. Não notas nada? André fez um aah! inexpressivo, como quem não conseguia perceber. Ali moço – ali no caminho do dique. É aquela rocha, moço, é aquela rocha. Basta um fogo de dinamite para a deitar abaixo. Desviamos a rota da ribeira e nem é preciso acabar o dique no lado norte. André só então percebeu para onde Simão Toca apontava. Olhou para ele, olhou para a rocha, voltou a olhar para ele e arriscou numa voz hesitante:

 

– Mas nhô Simão aquele milheiral é já dentro da propriedade de Djoquinha de Nhuto e se a gente der fogo ele não vai ficar contente. Pode até dar contenda judicial.

 

Simão Toca voltara a sentar-se. Deu uma gargalhada e estendeu o braço para André.

 

– Qual contenda, qual quê. Eu tenho Djoquinha de Nhuto dentro da minha mão. Assim – disse – carregando na última sílaba e fechando o punho num gesto significativo. Dentro da minha mão – ouviste? André pediu licença e afastou-se lentamente. De longe Simão Toca ainda lhe gritou:

 

– Passa pela ribeira e põe os homens a trabalhar bem. Quero o dique pronto antes da chuva de Agosto."

 

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07.12.23

Poesia de Moçambique (I)


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Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).

 

Colectânea de poesia que terá surgido na sequência da visita de Jorge (1919-1978) e Mécia de Sena (1920-2020) a Moçambique, no ano de 1972, a propósito da celebração do quarto centenário de publicação de Os Lusíadas (1572).

 

O presente volume não indica qualquer ano de publicação, mas apresenta estudos introdutórios datados de 25 de Outubro de 1972 (Jorge de Sena) e Novembro de 1972 (Maria de Lourdes Cortez), pelo que a sua edição terá ocorrido em 1973, ano que corresponde à data de depósito legal na Biblioteca Nacional, de Lisboa.

 

Este é o primeiro, e único, número de uma projectada série, sobre a poesia de Moçambique, que não chegou a ter continuidade.

 

A ligação entre Eugénio Lisboa (n. 1930), Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994), Jorge de Sena, José Craveirinha (1922-2003) e Rui Knopfli (1932-1997), está bem documentada (veja-se um exemplo de estreita colaboração, entre Craveirinha, Knopfli, Lisboa e Quadros, aqui: https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290) e o seu relacionamento intelectual não é alheio à publicação da seminal revista Caliban, que surgiu no ano de 1972, como já foi referido (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-reino-submarino-28275).

 

Curiosamente, este volume, que pretende homenagear a obra poética dos três autores destacados na capa, apresenta uma maior extensão na análise crítica do que na reprodução de poemas – Sena analisa em seis páginas a obra de Craveirinha, que tem quatro poemas reproduzidos em quatro páginas; Cortez analisa em dezasseis páginas a obra de Grabato Dias, que tem sete poemas reproduzidos em oito páginas; e Lisboa analisa em vinte e duas páginas a obra de Knopfli, que tem quatro poemas reproduzidos em nove páginas.

 

Sobre a poesia de Craveirinha afirma Sena, no último parágrafo do seu estudo: "Poesia «negra»? Poesia «africana»? Por certo que sim a dele é. Mas tocada – ao revés do que pareça – de uma irónica e discreta melancolia, de uma sensualidade calma e distendida, de um contemplar de límpidos horizontes, de uma dorida tristeza de ser-se por destino voz, quando a vida poderia viver-se num amável e carinhoso silêncio de gestos e olhares. Talvez que, profundamente, e como contrapartida de uma primigénia e espontânea alegria de viver, isto seja a África, mais do que o imediato do aparente exótico ou da memória ou a experiência de séculos de terrores vividos. Mas, sem dúvida, é – acima de tudo – aquela nobreza da poesia ante que a crítica se envergonha dos seus juízos, como a humanidade deveria envergonhar-se de apenas sê-lo às horas em que não trafica consigo mesma."

 

De Craveirinha, que tem aqui apresentados os poemas Pureza, Nossa Cidade, Lustro à Cidade e 3 Refinamentos, reproduz-se o segundo poema, que já havia sido publicado na revista Caliban, números 3/4:

 

"Nossa cidade

esquisita na  bilharziose das compridas

noites amansadas como gatas de estimação ronronando

aos pés do dono e sobre as citadinas

coxas de pedra entreabertas no lençol como

uma  mulher saciada à segunda vez.

 

E nas ilhargas

da cidade os malditos meninos

de rostos tatuados de ranho seco

todos como pássaros fisgados no cajueiro dos malefícios

todos com os olhos amarelos de gemadas longínquas de sol africano

todos em carne viva sem sulfas de um naco de pão

todos a castanha de caju mastigada nos molares antropófagos da rua.

 

Nossa cidade

cemitério de mortos antes de o serem

e deserto povoado de um José-mulato jipe de carícias

nos joelhos nus das raparigas esfomeadas

também de angústias de cio

fêmeas e machos abotoados de ociosidade

devorando-se entre um boato e os relatos de futebol

ou enclausurando o universo no auomóvel a prestações

os dentes em riste de quem tange as violas

em ritmos a rebate nos pomos de alvenaria

mas quanto custa, afinal

quanto custa uma quinhenta de amendoins

do negrinho de faces tatuadas

de ranho seco?"

 

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