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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

26.01.22

Costa Andrade - Poesia com Armas


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Costa Andrade (n. 1936), Poesia com Armas (1975; presente edição, segunda, 1977).

Capa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Depois de estudar no Huambo e no Lubango, Francisco Fernando da Costa Andrade viajou na década de 1950 para Portugal, onde cursou arquitectura e se envolveu na dinamização das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Posteriormente seguiu para o exílio, passando pelo Brasil, por Itália e pela Jugoslávia, antes de se juntar à guerrilha angolana, já durante a década de 1960.

 

Na sua actividade literária, política e militar adoptou diversos pseudónimos, como Africano Paiva, Angolano de Andrade, Fernando Emílio, Flávio Silvestre, Nando Angola, Wayovoka André ou Ndunduma Wé Lépi enquanto guerrilheiro.

 

Antes de esta obra, Costa Andrade havia já publicado Terra de Acácias Rubras (1960) e Tempo Angolano em Itália  (1962), publicando posteriormente O Regresso e o Canto (1975), Caderno dos Heróis (1977), O País de Bissalanka (1980), O Cunene Corre para Sul (1981) e Luanda: Poema em Movimento Marítimo (1997), entre outras.

 

Neste volume, que apresenta um prefácio ensaístico de Mário de Andrade (Mário Pinto de Andrade, 1928-1990), reunem-se poesias de diferentes cadernos, todos datados de antes da independência de Angola – O Capim Nasceu Vermelho (Huambo, 1960 - Lisboa, 1961), Canto de Acusação (1961 a 1963), Cela 1 (São Paulo, Brasil - Abril de 1964), Flores Armadas (1970...), O Guerrilheiro (Moxico, 1969, 1970 e 1971), O Amor Distante (Angola, 1969), Requiem para um Homem (1973), O Povo Inteiro (1974), O Lundoji e o Eco (Setembro de 1974) e O Futuro Nasceu da Noite (25 de Outubro de 1974).

 

Poeta profundamente emocional, atitude a que se alia uma sólida formação intelectual, Costa Andrade deixa transparecer na estrutura e nos conceitos de alguns dos seus poemas, particularmente nos mais longos, uma certa influência da heteronímia pessoana e, consequentemente, uma certa ressonância whitmaniana.

 

No conjunto destes cadernos consegue também, habilmente, entrelaçar traços profundamente líricos e amorosos com registos característicos de manifesto político, revelando um notável equilíbrio entre a sensibilidade do poeta e a vivência do guerrilheiro.

 

Transcrevem-se de seguida três poemas, que integram respectivamente os cadernos Flores Armadas, O Guerrilheiro e O Amor Distante:

 

ENXERTIA

Teu corpo mulata

é o corpo da vida nova

é o corpo do futuro.

 

Olha para ti

descansa os olhos sobre as coisas

desenha com os dedos na areia

a nossa humana geografia

 

verás as rosas enxertadas nas acácias

darem flores mais belas que elas próprias.

 

EMBOSCADA

O dia estranhamente frio

o tempo estranhamente lento

a vegetação estranhamente lenta

a estrada estranhamente clara

todos estranhamente mudos

placados e estranhamente à espera.

 

                    Um tiro

                    e as rajadas uns segundos

 

até que estranhamente duro

o silêncio comandou de novo os movimentos.

 

Talvez fossem homens bons os que caíram

mas cumpriam estranhamente o crime

de assassinar a pátria alheia que pisavam.

 

 

A PARTIDA

As horas chamaram-me.

 

Porquê que o tempo tem medida

e abre com punhais o seu avanço?

 

Por medo

não olhámos os relógios

nem em torno

nem nos olhámos

não nos falámos

com medo que as palavras

                                      as luzes

                                             as coisas

nos prendessem com cadeias inquebráveis.

 

Eram retratos dos pais

               e dos amigos

                     as casas velhas

o nosso quinto aniversário

as praias e os navios grandiosos

o que víamos.

 

Os murmúrios desgarrados

das presenças

parecem lianas poderosas.

 

                Mas quem mede o tempo agora?

                Quem tem coragem de dizer-me

                        que o tempo é um comandante

                                com plumas nos dedos ansiosos?

 

Oh paisagem da minha infância!

Oh mulemba solitária!

 

              As praças estão mais iluminadas

              a gente fala mais

              as vozes mecanizadas

              anunciam a partida de aviões

              para Tóquio ou Buenos Aires

                            não importa.

 

Corpo presente eu sinto as tuas mãos

                                                                 humedecidas

como se os olhos se tivessem transplantado

para chorar escondidos do luar

              e da hora exacta.

 

Longe 

os homens morrem sob a fúria americana de matar

e nós aqui sem palavras

              sem gestos            sem silêncio

não sabemos se a partida se retarda

não sabemos nada

queremos nada saber como se pedras

como se asfalto que encurta os pólos

               dos dois mundos em rotura.

 

Mas quem é esta gente

              que nos recorda sermos dois

                            nos instantes que antecedem o vulcão?

 

Não quero ouvir ninguém!

Não quero ouvir ninguém

              que eu sou um homem transformado

                     em temporal.

Eu não inventei os aviões

nem construí os aeroportos

              apenas me senti discriminado

                     homem sem sombra

                             a quem roubaram a juventude

                                    e os ecos.

 

Eu vou partir

             pagar um preço

                     para ser homem igual

                             ao mundo

                                   e pelo mundo em frente.

 

Não afastes o teu rosto desse espelho

                quero olhar-te assim sem que me vejas

                quero descobrir-me um braço mais

                o que parte a empunhar metralhadoras

                e os que ficam para estreitar-te

                num abraço permanente.

 

                A morte pode talvez supreender-me,

                um guerrilheiro pisa caminhos

                               que ninguém traçou

                        e a moradia dos seus passos

                        é um medo feito de mil coragens

                        reunidas

                                       no dever

                                 e no amor de olhar a própria terra

                 como quem beija um botão de rosa.

 

Não alongues o olhar agora

              que te vejo mais serena

quero beijar-te como se beija uma laranja sequioso

 

um laranjal que nos perdesse

para sempre

               entre os seus perfumes acres

                                                                 e suaves.

 

Dêem-me laranjas

dêem-me laranjas tão doces

                                      que os meus lábios

saibam pronunciar apenas paz

e desconheçam lágrimas de sal

e corações que batam apressados.

 

Os canhões       as armas       esperem do futuro

               museus da bestialidade humana

                a liberdade seja o fruto do pomar inesgotável

                configurado nas mãos de todos os que amam.

 

Até que eu desapareça não te movas

dos vidros que dentro de momentos serão intransponíveis.

 

Deixa que te fixe um gesto que não mude

              e me acompanhe

              e me confunda

              entre o estar presente e a ausência.

 

Agora

agora meu Amor

que se iniciam os passos da distância

podes chorar

ficar tranquilamente

                                   olhando o mar

porque só partem

              os guerrilheiros

              que amam a terra

                                   totalmente

                      a possuem

                             e engravidam

                                     com o próprio sangue.

 

 

© Blog da Rua Nove

12.11.21

Arlindo Barbeitos - Angola, Angolê, Angolema


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Arlindo Barbeitos (1940-2021), Angola, Angolê, Angolema (1976; presente edição, segunda, 1977).

Capa e ilustração de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Arlindo Barbeitos é o primeiro escritor com uma primeira obra publicada depois de 1974 que aqui se apresenta. Justifica-se tal opção por três razões – por um lado, muitos destes seus poemas foram escritos nas décadas de 1960 e 1970, antes do 25 de Abril, reflectindo um contexto anterior ao da independência de Angola; por outro lado, o seu primeiro livro, este, foi publicado ainda em Portugal, pela Sá da Costa; finalmente, a terceira razão prende-se com uma afirmação do próprio autor, registada na entrevista que introduz esta obra – " Transmito a minha poesia numa língua que não posso esquecer, é a língua colonial, mas que não deve ser a única língua a ser falada pelo povo angolano. Seria um massacre cultural horrível. Essa língua continua sendo ainda uma língua de estrangeiro em Angola. Então, já que aqui eu sou um ignorante, não conheço as línguas de Angola o suficiente, tento pelo menos, dando um conteúdo nosso, africanizar a língua colonial. Aliás, o próprio povo já o fez e o poeta, finalmente, segue-o. As línguas africanas foram capazes de uma poesia oral belíssima, porque não seriam elas capazes de uma poesia escrita belíssima também? Simplesmente os poetas é que não foram capazes, e o povo angolano não deve sequecer isso. "

 

De facto, não só a poesia do autor é belíssima como não poderia ser, no seu íntimo, mais africana. Militante da oposição política e armada ao regime colonial do Estado Novo, Arlindo Barbeitos não necessita de, a exemplo de outro militante da resistência armada, Costa Andrade (1936-2009), transformar a sua poesia num manifesto político explícito para lhe dar africanidade ou materializar a resistência ao colonialismo, que tanto coexiste subtilmente como explicitamente em alguns dos seus registos líricos.

 

Paradigma pleonástico da poesia enquanto poética, a sua obra ora assenta em modelos orientais, minimalistas e quase anafóricos, da poesia, ora em poemas onde a explícita crítica à realidade colonial se materializa na encadeada e desconcertante simplicidade do quotidiano.

 

Poeticamente, a sua resistência e sua angolanidade traduzem-se ainda, no título deste volume, na evocação da oralidade que a palavra "angolê" transmite e na inovação lexical do neologismo "angolema", que tanto sugere ser Angola um poema, como o poema, a sua poesia, ser Angola.

 

Deste volume transcrevem-se quatro poemas, com distintas características, pela sua ordem de publicação:

 

"amada

minha amada

a revolução

não é um conto

uma borboleta

não é um elefante

 

como agarrá-lo

 

devagarinho

o menino ia comendo o peixe frito

assim como quem toca gaita-de-beiço"

 

 

"à sombra da árvore velha de muitos sobas

só cresceram muxitos

 

o sussurrar encarcoleante dos surucucus d'areia

marcava dédalos efémeros

que os quissondes iam devorando

 

à sombra da árvore velha de muitos sobas

só cresceram muxitos"

 

 

"eu quero escrever coisas verdes

verdes

como as folhas desta floresta molhada

verdes

como teus olhos

que só a saudade deixa ver

verdes

como a menina duma trança só

que soletra em português sa-po sa-po

verdes

como a cobra esguia que me surpreendeu

naquela cubata sem outra história

verdes

como a manhã azul

que acaba de nascer

 

eu quero escrever coisas verdes"

 

 

"o Inácio cambuta

que vendia lotaria na Maianga

ficou assim

porque um dia quando a jogar à bilha

um rapaz de Maculusso

lhe passou a perna pela cabeça e fugiu

 

o camoquengue Camões 

que varria o chão na loja do Sidónio

ficou assim

porque um dia quando atrás das piteiras

um sapo preto

lhe mijou no olho direito

 

o André matumbo

que era contínuo na Fazenda

ficou assim

porque um dia quando na sanzala do Botomona

comeu laranja roubada com casca e tudo

 

o Luís molumba

que vadiava por todo o musseque

ficou assim

porque um dia não acreditou que o sipaio

seu primo

lhe ia dar uma bordoada com o pau do ofício"

 

© Blog da Rua Nove

26.10.21

Castro Soromenho - A Chaga


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Castro Soromenho (1910-1968), A Chaga (1970 [1964]; presente edição, terceira, 1985).

 

Embora o manuscrito seja datado de 1964, esta obra de Castro Soromenho apenas foi publicada postumamente. A primeira edição surgiu no Brasil (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970), a segunda em Portugal (Lisboa: Sá da Costa, 1979) e esta, a terceira, em Angola (Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1985).

 

A curiosidade desta terceira edição é que, efectivamente, foi impressa na República de Cuba, pelas Ediciones Cubanas, para a União dos Escritores Angolanos, no período de intervenção cubana em Angola, de apoio ao Movimento Popular de Libertação de Angola, que decorreu entre 1975 e 1991.

 

Recorrendo sempre às memórias que guardou de África, de onde saíu com menos de trinta anos, à vivência governativa de seu pai e à sua própria experiência administrativa, e até como recrutador de mão de obra, Castro Soromenho evoca aqui a herança negreira, que se prolongou até ao século XIX e ainda ecoava nalgumas práticas do século XX, denunciando os abusos e desvios de certos funcionários coloniais perpetrados a coberto dos seus cargos administrativos.

 

Contudo, o autor não deixa de abordar o antagonismo e as divergências existentes entre várias etnias, apontando essa como uma das razões para a administração portuguesa colocar lundas nos cargos de  sipaios e capitas a controlar grupos de quiocos. Nesta sua habitual digressão pela caracterização étnica, coloca ainda os bangalas de permeio, como sendo aqueles que têm um certo sentido poético e ouvido musical.

 

Metaforicamente, as duas povoações com um só nome – Camaxilo, desdobram-se em muitas mais, pois, para além das povoações dos brancos e dos negros, existem dentro delas ainda outras "povoações", como a dos colonos e a da administração, a dos sipaios e capitas e a dos prisioneiros, a dos lundas e quiocos, ou a dos mestiços. A questão da mestiçagem, como decorrente de uma situação de facto mas não de jure, formalizada ou legalizada através do casamento entre brancos e negras, serve ainda para tratar frontalmente o racismo e o hipócrita relacionamento colonial entre raças.

 

Transcrevem-se de seguida os  primeiros parágrafos deste romance:

 

"As árvores estavam mergulhadas no nevoeiro e das frondes pesadas do orvalho da madrugada tombava uma chuva miudinha que fazia tiritar os homens que marchavam, em longa fila indiana, no vale de Camaxilo, para chegarem às suas terras altas antes de o cabo de sipaios apagar a fogueira do terreiro onde se apruma o pau da  bandeira.

A mão calosa de Gunga estendeu-se sobre o braseiro que restava da noite, os dedos megulharam rapidamente na cinza e como tenaz truxeram uma brasa, logo solta na palma da mão e rolada para a boca do cachimbo de água. Com sofreguidão puxou uma fumaça, uma nuvem de fumo envolveu-lhe a cara talhada de rugas, piscou os olhos raiados de sangue e atirou-se para a frente sacudido por forte ataque de tosse. Escarrou para o chão e quedou-se acocorado com a mutopa fumegante nas mãos a olhar para o vale ravinado a seus pés e esbeiçado no outro lado numa encosta suave a rasar-se à beira da povoação dos colonos. As cinco casas dos comerciantes, com grandes quintais defendidos dos matagais e da surtida da onça por fortes paliçadas, recortavam-se na luz do amanhecer na orla da planície de largos horizontes azuis para as bandas de Caungula.

Gunga acabava de enxergar o vulto, alto e esguio, do velho colono Lourenço, encostado a um pilar da varanda da sua casa de adobe, à beira da estrada que talha a planície, atravessa o povoado de colonos e, sombreada pela floresta de acácias vermelhas, desce numa curva à garganta do vale para através da ponte de madeira se prolongar em rampa até à povoação dos funcionários. Duas povoações e um só nome – Camaxilo.

Todas as manhãs, o velho Lourenço está ali na varanda a fumar o seu primeiro cachimbo, olhando para Camaxilo de cima onde, à volta do terreiro centrado pelo pau da bandeira e por uma mangueira de grande copa, branquejam os edifícios da Administração e residências dos funcionários. A gente do governo, civis fardados, alcandorara-se no alto do vale, com vista rasgada sobre a povoação de baixo, as lojas dos colonos a olho nu.

Entre o negro velho e o colono velho abre-se o vale, o rio Camaxilo ao fundo, o primeiro postado no alto das ravinas, o outro lá embaixo na lomba da encosta, à boca da planície. Ali estão há um ror de anos sob o mesmo céu ardente e sobre a terra perfumada de acácias."

 

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07.07.21

António Mendes Correia - Contos e Novelas Angolanos


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António Mendes Correia (1906-1982), Contos e Novelas Angolanos (1955).

 

Este livro apresenta sete contos e novelas – Um Caso de Consciência, A Nossa Terra é o «Huambo», Sonho Realizado, A Vingança da Morta, Um Fantástico Quissange, Condenados de Angola e Os Últimos Abencerragens.

 

Uma anotação à página de título de A Nossa Terra é o «Huambo» refere que este texto foi galardoado com o segundo prémio do Concurso Literário promovido pelo Município de Nova Lisboa, no ano de 1950, e uma anotação à página de título de Sonho Realizado refere que o texto foi galardoado com o primeiro prémio do Concurso Literário promovido pela Associação dos Naturais de Angola, no ano de 1951.

 

O volume abre com umas "Palavras Prévias" do autor que, ao longo de cinco páginas, discorre sobre a distinção entre conto, novela e romance, citando de permeio, e a esse propósito, a autoridade do escritor inglês E. M. Forster (1879-1970) e do crítico e teórico literário alemão Wolfgang Kayser [grafado Keyser, no texto) (1906-1960).

 

As sete narrativas, quiçá involuntariamente, não deixam de oscilar entre uma visão colonial etnocêntrica e uma visão paternalista ou crítica dos costumes gentílicos. Os conceitos subjacentes aos diversos enredos sofrem, por vezes, algum desequilíbrio na transposição para as formas narrativas adoptadas, dando talvez razão ao que o autor já anotara nas suas palavras prévias – "Mas... de almas cheias de boas intenções está o Inferno cheio. E será esse, certamente, o destino da do autor destes «Contos e Novelas», porque vai grande distância entre o saber, teòricamente [sic], como as coisas se fazem, e fazê-las, na realidade."

 

A Biblioteca Nacional de Portugal regista uma reedição desta obra, ocorrida no ano 2000, como sendo a primeira edição da mesma, não apresentando registo para este volume de 1955 da Coimbra Editora.

 

Do conto Os Últimos Abencerragens transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Perante este espectáculo inesperado, Cavango ficou paralizado. De pé, ao lado da velha escrava, observava-lhe o ritmo lento da respiração, ao mesmo tempo que cofiava, apreensivo, a barbicha já grisalha. Depois de uns momentos de hesitação, debruçou-se sobre ela, tirou da bainha de madeira um longo punhal que nunca o abandonava e cortou com ele uma tira de couro de gazela, com a qual lhe envolveu o braço e estancou o sangue. Agachando-se em seguida, transpôs a baixa e estreita porta da cubata e foi buscar à sua residência uma cabaça de «marufo». À força, introduziu, entre os dentes cerrados da velha escrava, o gargalo da cabaça, fazendo-lhe ingerir alguns goles da «marufo». Depois, acocorado ao lado dela aguardou a reacção provocada pelo líquido. Alguns minutos depois, a velha, virou lentamente a cabeça para a direita e descerrou um pouco as pálpebras. Os seus olhos mortiços de cão humilde, negros e liquefeitos, fitaram Cavango docemente, articulando num cicio, num sopro quase imperceptível:

 

– Num mata meu neta... o teu filho tá agora na barriga dela... porque nunca pôde estar no meu barriga...

 

Deixou cair de novo as pálpebras. E alguns minutos depois, pendeu-lhe a cabeça mais para a direita ainda, e numa inspiração profunda soltou o último suspiro.

 

Cavango manteve ainda, durante algum tempo a neta da escrava mucuísse. E quando, ao fim de nove meses, deu à luz um rapaz cheio de vida, a que Cavango  quis pôr o nome de Kilela, fez desaparecer a mãe.

 

Dizia-se na tribo, muito em segredo, que fora vendida aos mutchilengues; mas outros afirmavam convictos que tinha sido enterrada viva."

 

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30.04.21

Luandino Vieira - Nós, os do Makulusu


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Luandino Vieira (pseudónimo de José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), Nós, os do Makulusu (1974).

Capa e ilustração de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Primeiro livro de Luandino Vieira publicado após o 25 de Abril de 1974, este volume integra uma nova colecção então lançada pela editora Sá da Costa, a colecção Vozes do Mundo, que apresentara no seu primeiro volume a obra Sagrada Esperança (1974), de Agostinho Neto (1922-1979) e anunciava como terceiro volume uma reedição de Terra Morta, de Castro Soromenho (1910-1968).

 

Até esta data, Luandino Vieira havia publicado A Cidade e a Infância (1959), A Vida Verdadeira de Domingos Xavier (1961), Luuanda (1964), Velhas Estórias (1964) e No Antigamente, na Vida (1969).

 

Embora Luuanda seja, talvez, a sua obra mais conhecida e discutida, certamente devido à atribuição do Grande Prémio de Novelística, que a Sociedade Portuguesa de Escritores (SPE) lhe concedeu em 1965, numa altura em que o autor cumpria pena de prisão de 14 anos no Tarrafal, e à subsequente polémica que resultou na sua proibição e na extinção da SPE, Nós, os do Makulusu surge como uma notável obra literária.

 

Escrita também no Tarrafal, entre 16 e 23 de Abril de 1967, é uma narrativa que se assume apenas como tal no frontispício, não reclamando sequer a denominação de novela ou romance. A verdade é que tal estrutura tipológica e tal nomenclatura não seriam adequadas para uma narrativa com as características inovadoras desta obra.

 

Quebrando as regras sintáticas, as estritas concordâncias gramaticais e as habituais delimitações e formatações de parágrafos, algo que ocorre, aliás, na sequência do que já acontecera em Luuanda, esta narrativa, que se inicia e conclui com a evocação da morte e, paradoxalmente, com a omnipresença de ausentes, desenvolve-se através de um discurso que encerra em si uma metafórica mestiçagem da língua portuguesa.

 

A subversão do discurso directo ou indirecto, a informal polifonia da memória narrativa e a aproximação à oralidade, constroem uma complexidade argumentativa e conceptual que desencadeia o fulgurante entretecer das múltiplas linhas da memória e do pensamento crítico apresentadas nesta obra excepcional.

 

Transcrevem-se, de seguida, alguns dos seus parágrafos:

 

"Estás a olhar a farda? Pensas que não tenho coragem de a despir e de me recusar como papagueámos todos a propósito dos tipos da Argélia? Mas eu sei o que tu nem sabes: isso é fácil, de certo modo é uma abstracção, ideias, etecétera. O mais difícil, Mais-Velho, acredita é vestir-lhe assim, um camuflado e ir ainda hoje à noite deitar com a Maricota ao Bê-Ó, não com Rute, estará fria de morte, as mulheres que amam conhecem a morte no amor, e ela generosa se entregar como sempre, sabendo que vou lhe matar no irmão em cada irmão que matar e vai chorar porque vou, não é porque vou lhe matar no irmão. Porque ela também sabe: as mulheres que amam, sabem que o amor e a vida são dois jogos de morte; que, se o irmão me vir – oh! Kibiaka da infância, salta e vamos sondar os gunguastros nas gaiolas! – de cima da sua árvore, que a sua mão não vai tremer quando me apontar a carabina do roceiro que decapitou e não tremerá e eu não tremerei se o vir primeiro e aponto a minha metralhadora e vou ficar com o coração leve a ver-lhe cair lá de cima do pau no capim alto e fofo da nossa infância. Que não é ele que revistarei; não é ele que vou procurar salvar para depois lhe matarem com torturas para lhe fazer falar o que ele não vai falar. Ele ficará, ficou, fica nos capins soterrados do Makulusu quando a gente pelejávamos até no cansaço e no sangue derramado porque vamos já, lavados de sujos, receber quicuerra e micondos de mamã Ngongo. isto, Mais-Velho, é que é difícil e tenho de o fazer: o capim do Makulusu secou em baixo do alcatrão e nós crescemos. E enquanto não podemos nos entender porque só um lado de nós cresceu, temos de nos matar uns aos outros: é a razão da nossa vida, a única forma que lhe posso dar, fraternalmente, de assumir a sua dignidade, a razão de viver – matar ou ser morto, de pé.

Mas eu sei que tu compreendes, mas não aceitas, tu não sabes o que é dormir tranquilo com Maricota no lado e saber que ela sabe e aceita o eu ir e matar ou morrer. Tu achas que isso é uma injustiça e tens razão, Mais-Velho. Mas me diz só: que posso eu fazer que não seja uma injustiça? Ou então prova que sim, que  o caminho é o que constantemente discutimos nestas tantas semanas, pega numa espingarda e vai para o lado do irmão da Maricota e mata-me. E então, Mais-Velho? Lês Marx e comes bacalhau assado, não é? Não te deitas com negras nem mulatas – a tua cunhada é mulata, fico descansado... – por respeito. Vê bem, Mais-Velho! Como tu és um baralhado: por respeito lhe recusas a humanidade dessa coisa simples, onde que só o humano se revela, onde só se pode aí comunicar, saber, aprender... Rio, sabes, mas me dói muito no coração, fico pesado de amargura. Espalha os teus panfletos, que eu vou matar negros, Mais-Velho! E sei que eles te dirão o  mesmo: «espalha os teus panfletos, vou matar nos brancos.»

Olha, Mais-Velho: não a odeias mais do que eu. E só há uma maneira de a acabar, esta guerra que não queres e eu não quero: é fazer-lhe depressa, com depressa, até no fim, gastá-la toda, matar-lhe.

Só porque tens razão, também tenho.

Desembeco na Travessa da Sé e é o cheiro a mar que me rusga. Mas quero sentir-lhe todo, não posso, não aceita, não lhe deixa o ramo branco das flores que estou levar, o fato escuro que pedi emprestado e a gravata disfarça. Não pode: mar mesmo só cheira a mar num corpo todo nu.

– Xalados, vocês!..."

 

© Blog da Rua Nove

08.02.21

Revista Atlântico (II)


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Revista número 5, 1944.

Capa de Manuel Lapa (pseudónimo de Manuel Francisco de Almeida e Vasconcellos, 1914-1974).

 

Esta revista do S.P.N. foi lançada em 1941 e teve duas séries, conforme já foi referido, cada uma delas com diferentes dimensões e diferentes opções gráficas. Esta primeira série, com direcção artística de Manuel Lapa, teve maiores dimensões (cerca de 28,2 x 21,2 cm.), um grafismo muito mais interessante do que a série seguinte, como se pode verificar numa anterior publicação deste blog (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/revista-atlantico-i-19333), e uma maior diversidade de artistas colaboradores.

 

Tal diversidade encontra-se exemplificada no presente número, com ilustrações e vinhetas, ou estampas extra-texto, de Bernardo Marques (1898-1962), Cícero Dias (1907-2003), Eduardo Viana (1891-1967), Frederico George (1915-1994), Ofélia Marques (1902-1952), José de Almada Negreiros (1893-1970), José de Lemos (1910-1995), Magalhães Filho (Manuel Maria de Sousa Calvet de Magalhães, 1913-1975), Manuel Lapa, Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), Maria Franco (datas desconhecidas), Miguel Barrias (1904-1952), Neves e Sousa (1921-1995), Noémia (datas desconhecidas), Rachel Bastos (1903-1984), Roberto de Araújo (1908.1969) e Sarah Affonso (1899-1983).

 

É precisamente um texto intitulado Païsagens [sic] de Angola, publicado neste número e da autoria de Neves e Sousa, essencialmente pintor e ilustrador, onde se combinam notas autobiográficas com notáveis descrições literárias de tom etnográfico e paisagístico, a razão que motiva este artigo.

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos, os últimos do texto, que se ocupam daquelas descrições:

 

"Na Quissama, tive o que se pode chamar a sensação de estar em África. Não tinha ainda visto lugares tão selváticos. A païsagem [sic], tôda [sic] em ocra e cinzento, grandiosamente nua, esmaga. O céu parece uma bacia de cobre aquecida ao rubro; não há palmo de terra ou fio de capim que não esteja estorricado pelo calor. Desesperados como leprosos, os imbondeiros, enormes e cinzentos, erguem aos céus os braços torturados, retorcidos em contorsões de dor, como que implorando clemência ao sol implacável. Nas senzalas, não há a alacridade do cantar de um galo ou do ladrar de um cão. Apenas o silêncio, um silêncio opaco, que se ouve, pesado como o ar antes das trovoadas.

 

Ouvi, na Quissama, os mais harmoniosos cantares indígenas. Vi raparigas dançando, vestidas de panos azuis; vi outras dançando  pintadas com a tinta encarnada da «tacula», os seios desnudos, as ancas ondeando em movimentos felinos, numa evocação vaga de danças de outras eras. oi então que pintei os primeiros batuques e o rio Cuanza, que se deixa escorrer, manso e manso, pelo meio da païsagem [sic], como fita de chumbo derretido brilhando ao sol.

 

Ao acabarmos a nossa volta pela Quissama, dirigimo-nos para o sul: Vila Luso, no planalto de Benguela... Havia, por lá, uma païsagem [sic] frouxa de savana arborizada, areia, um sol pálido como o daqui, e frio, muito frio. Pelas anharas verde sujo, há paus mortos, tortuosos, vestidos de negro pelo fogo das queimadas, e morros de salalé recortando, no ar, as suas avermelhadas e imprevistas silhuetas. Os paúis têm limos acinzentados, e à tona da água, nenúfares abrem corolas branco e ouro, espreitando, como a mêdo [sic], por entre os canaviais de um verde deslavado.

 

As senzalas são mal feitas, e paira, em tôdas [sic] elas, um cheiro enjoativo – misto de fuba azêda [sic], óleo e suor. Há sempre um «brouhaha» confuso de batucadas, de negrinhos piolhosos gritando, de mulheres cantando aos filhos rabugentos, de «caniques» em loucas corridas atrás de bacorinhos atrevidos, de cães e galinhas misturados a granel. Existem, lá, «muxiques» – feiticeiros bailarinos, com máscaras de pesadelo, ìntimamente [sic] ligados às cerimónias rituais e misteriosas da «mucanda». Pintei alguns quadros tendo como motivo queimadas e inúmeros estudos sôbre [sic] as danças dos muquixes «tchókué».

 

O último lugar que percorri foi a circunscrição dos Dembos – lugar de encanto, nevoeiro e café. Floresta! Árvores crescem desmedidamente da umidade [sic] sombria, roubando o sol à terra côr [sic] de sangue. Lianas sôfregas de luz lutam, buscando estrangular-se recìprocamente [sic]. Os Dembos, reis negros, outrora poderosos senhores de «guerras» do gentio, conservam, ainda hoje, a sua velha e pitoresca indumentária: boina de ráfia bordada, capa vermelha e azul, a arrastar, e um alarde de velhas espadas ferrugentas, espantando os ecos, telintando [sic] pelas pedras do caminho.

 

Há, também, nevoeiros viscosos, esverdeados, que se agarram à terra, envolvendo tudo como gigantescas medusas gelatinosas. Pintei, lá, montes semi-ocultos por véus de nevoeiro, e alguns Dembos arrastando, arrogantes, suas velhas capas..."

 

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31.01.21

Castro Soromenho - Histórias da Terra Negra (I)


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Castro Soromenho (1910-1968), Histórias da Terra Negra [volume I] (1960).

 

Estas Histórias da Terra Negra reunem em dois volumes, com extra-textos de Alice Jorge (1924-2008) e Júlio Pomar (1926-2018) e vinhetas de Salgado Dias (datas desconhecidas), todas as obras de Castro Soromenho publicadas até então.

 

No primeiro volume, o prefácio do consagrado sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), datado de 1959 e simultaneamente publicado no original francês e na tradução de Mário de Andrade (1928-1990),  desenvolve-se num ensaio crítico de catorze páginas, intitulado L' Afrique dans l'oeuvre de Castro Soromenho, que destaca Castro Soromenho como autor cimeiro da literatura portuguesa em geral e enquadra a sua obra no neo-realismo, em particular.

 

Este prefácio é seguido, neste volume, de dois livros, um dedicado aos Contos e Novelas, onde surgem os textos Samba, Calenga, Os Escravos dos Deuses, Rajada, A Morte da "Chota", A Árvore Sagrada, A Voz da Estepe, Perdeu-se no Caminho e O Lago Enfeitiçado, outro dedicado à Narrativa, onde surge o texto Lueji e Ilunga na Terra da Amizade.

 

Do prefácio de Bastide será talvez interessante destacar duas passagens, uma dedicada à literatura portuguesa, outra à obra de Soromenho.

 

Diz a primeira – "La littérature portugaise a toujours hesité entre deux tendances, une tendence centripète qui la lie à l'Espagne et à l'Europe, lui fait prendre le sentiment de sa responsabilité dans le concert des grands nations du continent, et l'autre, la contre-balançant, une tendance atlantique, qui la jette aux quatre vents de l'aventure et qui aujourd'hui la lie charnellement à l'Afrique. De là l'importance du «roman colonial»".

 

E a segunda – "Mais avec Castro Soromenho, le roman colonial cesse d'être le roman portugais du voyageur, séduit par l'appel de l'océan, l'exotisme des contrées lontaines, envoyant à la métropole une simple série de cartes postales illustrées et pittoresques. Il est celui de l'homme qui s'est enraciné en Angola; qui est y est né une seconde fois; s'est laissé refaçonner par la steppe, la solitude, le soleil et par les deux batouques, celui des hommes noirs dans le village, celui des dieux noirs dans le déchaînement des éclairs et de la pluie."

 

É possível que Bastide não tivesse um conhecimento alargado de diversos outros importantes autores da literatura colonial portuguesa, como Ferreira da Costa (1907-1974) e Henrique Galvão (1895-1970), enquanto paradigmas de narrativas enraizadas na essência africana, ou Manuel Ferreira (1917-1992) e Manuel Lopes (1907-2005), enquanto paradigmas maiores de narrativas neo-realistas, mas o destaque concedido à obra de Castro Soromenho é inteiramente merecido, não só como um dos pioneiros da literatura colonial portuguesa do século XX mas também como um dos mais notáveis escritores da prosa portuguesa de meados desse século.

 

 

Do conto Perdeu-se no Caminho transcrevem-se agora os primeiros parágrafos:

 

"Os homens caminhavam de costas voltadas para o sol, de regresso à aldeia, que a lonjura da estepe não deixara enxergar, mas que eles sabiam alcandorada além à beira de um abismo.

À frente marchavam os caçadores, azagaia ao ombro, passo largo, medindo pela jornada do Sol [sic] o caminho a vencer. À distância de um grito troteavam os carregadores, em longa fila indiana, paus lançados de ombro a ombro, vergados ao peso dos antílopes a escorrerem sangue. Pisavam-lhes as pegadas garotos com balaios à cabeça.

No carreiro, a serpentear pelo capinzal, alongava-se o rastro de sangue da carne morta.

Para além dos passos perdidos, nos caminhos transviados na linha azul da terra longe, o sol [sic] abriu-se em labaredas que, logo, incendiaram o céu para um crepúsculo rápido. No trilho das miradas a galgarem lonjuras caía uma penumbra macia e langue sobre a planície quente.

A voz do caçador que abria o caminho quebou [sic] o silêncio profundo da savana. Todos os olhares bateram o horizonte. Longe, uma coluna de fumo aprumava-se no caminho do céu a ensombrar-se. E os homens estugaram o passo. Queriam chegar à aldeia antes da noite. Ninguém desejava partilhar com leões e hienas, em pleno descampado, o festim da caçada.

Aqueles homens vinham de longe, da terra ensombrada pelo muxito do rio Xicapa. Foi ali, na clareira da pequena floresta aberta pelo rio, que eles surpreenderam a caça. As lanças afocinharam os bichos no seu bebedoiro. Aos gemidos dos animais em agonia os homens juntaram os seus gritos de triunfo.

Depois acenderam fogueiras e acocoraram-se à sua volta. Comeram, mãos e bocas cheias de sangue, nacos de carne mal passada por labaredas. Enconcharam as mãos e beberam água do rio. E fumaram pelo mesmo cachimbo. E falaram em caçadas e mulheres – e riram, riram as suas grandes gargalhadas. Horas depois, a cantarem, dizendo aos quatro ventos que eram quiocos, guerreiros valentes que não temem a morte, embenharam-se na pequena floresta para ganharem de nova a planície de capim amarelo, batida de lés a lés pelo sol chamejante.

E agora estão chegados à aldeia, na boca da noite, anunciando com cantigas bárbaras os feitos da caçada. Com gritos e palmas ritmadas, o povo saúda os seus caçadores, que trazem carne para a grande festa das sementeiras.

Gulo, o mais novo dos caçadores, que há  pouco deixara de ser escravo do soba, é apontado pelos companheiros como o mais valente e esperto na luta com a caça. Com gritos festivos, todas admiradoras se voltaram para ele. E Gulo sorriu aos companheiros.

As mulheres fizeram roda e puseram-se a cantar em louvor de Gulo, o macho valente e belo, que nem do leopardo ou leão tinha medo.

Entre as mulheres que o festejavam o caçador viu Samba, a jovem que lhe fora prometida, sorrir-lhe com a boca carnuda e os olhos húmidos cheios de desejos. E mal o povo se dispersou, sempre ruidosa a sua alegria, ele abeirou-se da rapariga e convidou-a a acompanhá-lo à festa das sementeiras."

 

 

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18.10.20

Amadeu Ferreira - Um Dia de 12 Horas


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Amadeu Ferreira (1925-2002), Um Dia de 12 Horas (1966).

Ilustração da capa de José Garcês (1928-2020).

 

A presente obra foi galardoada com o prémio de novelística Fernão Mendes Pinto. No âmbito da ficção, Amadeu Ferreira já havia publicado o volume de contos Catana, Canhangulo e Arma Fina (1964) e viria a publicar depois o romance As Árvores Reverentes do Congo (1967).

 

Militar de carreira, o piloto-aviador Amadeu José Ferreira, já como coronel, foi comandante da base aérea de Sintra (1968-1969) e secretário-geral da Comissão Portuguesa de História Militar (1990-1993), entre vários outros cargos que desempenhou.

 

A narrativa deste romance evoca os trágicos acontecimentos ocorridos em Angola a 15 de Março de 1961, embora a chacina dos colonos portugueses e daqueles que lhes eram fiéis não surja como vector único ou central, sequer, da obra. Obviamente, sendo esta uma obra visada pela censura, nada refere sobre as subsequentes acções militares de retaliação, como a de 27 de Abril do mesmo ano.

 

Recorrendo a um processo parcial e verosimilmente autobiográfico, o enredo desenvolve-se ao longo de quatro partes e dezoito capítulos, apresentando um protagonista oriundo de Trás-os-Montes e aviador, como o autor, que, já em Angola, recorda a sua infância e adolescência no ambiente transmontano. 

 

A primeira parte da obra, onde se inscrevem estas rememorações, apresenta ainda um conjunto de várias reflexões sobre o indivíduo, a ética e as questões políticas, administrativas e sociais de Angola, bem como sobre o papel dos americanos na política mundial e na acção colonial.

 

A segunda parte, de uma forma surpreendente, apresenta uma narrativa na segunda pessoa para traduzir a familiaridade do protagonista com um colono branco chacinado e relatar aspectos da própria chacina.

 

De uma forma mais breve, a terceira parte apresenta algumas das consequências dos massacres daquele dia para a vida dos colonos brancos, mas também para os negros que inocentemente são perseguidos e acusados.

 

A quarta parte relata o regresso do protagonista à sua terra natal, de uma forma que deixa em aberto um possível regresso a Angola.

 

Da segunda parte desta obra transcrevem-se os últimos parágrafos do capítulo 10:

 

"  «Não te admires pois do modo como te falo, mas devia-te esta explicação. A despeito da distância toda na vertical que me separa de ti, deste isolamento que me rodeia enquanto distingo a fazenda traçada com trabalho e amor, compreendo bem os conflitos humanos do teu mundo de ontem e de hoje.

 

«Sabes?!... Estas coisas refinam quando se meditam; mais quando se apalpam e observam de perto. E este púlpito é particularmente propício à meditação. Ninguém nos estorva, ninguém nos distrai, pode dedicar-se todo o coração e parte do cérebro aos problemas do mundo. Os conflitos do homem, que aqui não chegam em ruído, surgem-me com mais clareza e despidos da ganga que lhes pode desvirtuar a verdadeira essência e natureza.

 

«Com estes créditos positivos, não posso louvar-te por tudo que fazias na fazenda. Mas antes de atirar-te a primeira pedra procurei entender que dentro da tua realidade não foste pior que todos os outros de todas as épocas, mas apenas igual e, em muitos sentidos, melhor. E numa sociedade não se condena um homem igual a todos os outros.

 

«Foste um pioneiro e um embaixador; à tua maneira, como já disse. Mas quem te censura pensa também que quando se querem embaixadores por conta alheia, se lhes paga e se lhes ensina o como, o quando e o porquê do que se lhes exige? Não pensam nisso, mas estranham agora não lhes teres defendido o nome, o não inculcares nos trabalhadores a noção que eles próprios têm de Pátria e convivência social, o não teres elevado como eles desejariam o nível dos homens que te eram confiados para os trabalhos agrícolas ou domésticos. A verdade justa e real só pode pôr-se assim: que crédito tínhamos nós, Emílio, que tu, apesar de tudo, dos teus defeitos ou prepotências, não retribuísses com juros também acima dos legalmente estabelecidos? Que nos devias tu, Emílio?...

 

«Por isso digo para não te mortificares. De resto, não sabes mas vou esclarecer-te: todos os vizinhos em redor, espalhados por esta área imensa que posso enxergar da vertical da tua fazenda, estão como tu, amarrados como porcos no banco da matança. Aos bons e compassivos de nada lhes valeu o coração, e aos maus e refinados o fel não agravou os sofrimentos. O cataclismo foi gadanha que cortou cerce o trigo todo, granado ou chocho, e também o joio que na época própria escapou às mondadeiras. E isto pelo facto simples e verificado de que nenhum João do Congo procurou motivos e invocou razões válidas para o que foi feito.

 

«Tu não sabes, mas o que está a dar-se contigo passa-se à mesma hora por léguas e léguas. Não te mortifiques, Emílio, tu não eras santo, eras apenas homem.

 

«Eu digo eras, porque quase o não és. Se tirarmos esse sopro, teòricamente [sic] a animar-te ainda, sabes o que me pareces? A imagem, dura, choca e arrepia, mas a ti pouco impressiona já e eu tenho-te falado com franqueza que quero levar até ao fim. No mundo material, Emílio, a figura justa, fiel, da coisa a que te reduziram é o bucho. Lembras-te?... aquele enchido de carne e ossos a esmo, ensacados num estômago de porco?... És um bucho de ossos esmigalhados, carne picada, vísceras moídas, no saco que é a tua pele cheia de laivos de sangue pisado.

 

«À medida que as chufas, as troças e as pauladas cresceram, a dor física foi-se esbatendo na sucessividade dos golpes, e o tormento de alma, dos gritos abafados da tua mulher, foi-se embotando na semi-inconsciência que te ia invadindo. Começaste a ter uma boa desculpa para largar a vida e já não compreendias porque adiavam o golpe final. Não há centímetro quadrado que esteja sem mossa. Todos quiseram vingar a sua afronta, limpar a sua ofensa, desforçar o seu despeito recalcado, ou pelo menos afirmar uma posição com crédito a haver, agora que te viam vencido e amarrotado. Mas eles nem essa esperança última dum fim próximo te deixaram, quando a vida passou a fardo mais pesado que a morte. Foi a um bucho vivo que eles conscientemente te quiseram reduzir, e conseguiram-no. 

 

«Já não vês, Emílio, mas isso agora é um bem. Se visses, custava-te mais. A casa está esventrada, os trastes estraçalhados, o gerador, na barragem que era o teu orgulho, está desfeito. Os corpos de alguns que mais fielmente te serviram estão aqui e ali, no sítio onde foram acabando. Mas o corpo de Emília não está. A tua criada, escolhida por simpatia onomástica, tal como o João também sabia. Emília, sereia negra de mil fascinações, sabia que este teu dia não chegaria ao fim. Lembras-te que só ficou descansada quando se assegurou do teu regresso à fazenda na tarde seguinte, quando viu que a tua ausência não ia além de algumas horas?

 

«Os seus receios, Emílio, nada tinham com os azares de ante-ontem [sic] como julgaste por ser um dia 13, mas com a possibilidade de escapares ao que sabia esperar-te hoje, um dia 15, número sem história nas tradições do bruxedo e da superstição.

 

«E tenho outra prova, tenho outra prova de que ela sabia, Emílio, e se valeu da sua habilidade maior para te arranjar um parceiro de açougue, mas não vale a pena mostrar-ta.

 

«Quanto à tua mulher, aguentou uns tantos, mas depois... Não, neste assunto não quero falar; sei que não vês, mas ainda ouves; pouco, mas ouves, e se não te tenho poupado a desgostos, na franqueza que venho usando, neste ponto quero fazê-lo.

 

«Emílio, volto a falar-te com o à-vontade [sic] que apenas pus de lado ao referir-me à tua mulher. À medida que te foste tornando nessa miséria chagada que repugna e revolta os sentidos, estás a sublimar-te, e chega cá acima, a este ambiente asséptico onde o bafo dos ódios não persiste, a verdade justa daquilo que estás quase a ser. De nada te servirá essa lágrima grossa que soltou agora e pouco valerá o que vou dizer, até porque já não ouves talvez, mas eu entendo-te, Emílio, como irmão e como homem. Não por compaixão, não por lisonja, nem sequer por acordo total como viste, mas porque essa ausência de esperança que te deixaram neste segundo dia de menos de vinte e quatro horas foi penitência a absolver-te de todas as culpas que porventura possam assacar-te.

 

«Emílio?... Emílio?... Já não ouves?... Não, já não ouves, nem sentes.

 

«No meu mundo, Emílio, no meu mundo desta hora, com o Sol por testemunha e as nuvens por vizinhas, és agora o símbolo grande e trágico de todo o ser racional que neste dia e nesta terra, ensopada de ti, esvaziaram de esperança. Mas no mundo da matéria és finalmente um bucho sem alma, como eles queriam, ensacado na pele avergoada e repelente, a que as cordas, tensas, mantêm ainda a forma e seguram de encontro ao tronco grande da mulemba frondosa que domina o terreiro.» "

 

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21.06.19

Augusto Casimiro - Portugal Atlântico


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Augusto Casimiro (1889-1967), Portugal Atlântico (1955).

 

Compilação de vários poemas datados de diferentes anos – 1914 (Acampamento – Noite, O Zambeze e um Mapa, Fogueira de África), 1924 (Horas Africanas, Oração da Noite Africana), 1944 (Colono), este volume foi distinguido com o Prémio Camilo Pessanha em 1954.

 

Inspirados por todos os territórios coloniais banhados pelo Atlântico, como o nome sugere, predominam, contudo, nestes poemas, referências a Cabo Verde, particularmente às ilhas Brava e Santo Antão, e a Angola.

 

Não deixa de ser interessante o facto de parecerem perpassar, em algumas destas composições poéticas, conceitos também presentes na Mensagem (1934), de Fernando Pessoa (1888-1935), impressão que, do mesmo modo e do ponto de vista estrutural, tende a ser suscitada no início do volume.

 

Com efeito, as primeiras poesias integradas na secção Pela Batalha ao Restelo apresentam títulos sugestivos dessas evocações – Portugal, A Canção do Novo Restelo, Sinfonia do Mar Alto, Hora do Ponto.

 

Curiosamente, para sublinhar toda estas ténues evocações, até a própria expressão "É a hora!", patente no poema Nevoeiro (1928), de Pessoa, surge no poema Oração da Noite Africana, alegadamente datado de 1924, embora num contexto completamente diferente.

 

Um ponto distinto nesta estruturação, no entanto, é a secção intitulada Canto ao Brasil no Mar, que apresenta três poemas dedicados a esta temática.

 

Desta obra, transcrevem-se, de seguida, o poema Fala Crioula e o soneto Prece, inspirados, respectivamente, por Cabo Verde e Angola:

 

 

FALA CRIOULA

 

"Esta fala é sempre nossa.

Fala crioula?... Afinal,

Para alma que bem a ouça,

É fala de Portugal!

 

É uma fala de menina,

Andou ao colo, amimou-se,

Ficou sempre pequenina,

E, de preguiça, mais doce.

 

Ouço-a agora, embala, arrola...

Sabe a amor, sabe a tristeza...

Na voz da gente crioula

Oiço a alma portuguesa...

 

E, às vezes, com mais doçura...

Algumas palavras têm

Mais humildade e altura,

Mais gosto da terra e além...

 

Morabêsa... amor e beijo

Que se não dá, que se fala,

Em que há gosto de desejo

E o aroma que o cravo exala...

 

O que é doce à alma e ao gosto

É sabi... sabe a carinho...

Saber não contém desgosto...

O que é mais sabi... é sabinho.

 

Grandeza... Entre nós humilha

Se não é Deus. Grandeza

Aqui, nas almas da Ilha,

É alegria, é morabeza...

 

Contente... quem diz contente

Entre nós diz alegria,

Mas na boca desta gente

Só quer dizer: simpatia...

 

A fala crioula é nossa

Trouxe-a ao colo Portugal..."

 

 

PRECE

 

"Terra de Angola, Mãe da Primavera:

– Só de te descobrir logo o tocou,

Ao primeiro que veio e te encontrou,

Do teu bárbaro encanto a lei severa.

 

Estás, sempre e sem fim, à nossa espera.

Por ti sofremos. Contra ti pecou

A nossa Alma e a tua nos perdoou.

– Quem amar-te não soubesse te perdera...

 

Desejada e rendida te violámos

E ficamos escravos, de ti... Esta hora

É a doutro encontro, como dois irmãos,

 

Na terra em que sonhamos e lavramos,

À luz igual duma fraterna aurora, 

Um destino mais alto, dando as mãos."

 

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