07.12.23
Poesia de Moçambique (I)
blogdaruanove
Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).
Colectânea de poesia que terá surgido na sequência da visita de Jorge (1919-1978) e Mécia de Sena (1920-2020) a Moçambique, no ano de 1972, a propósito da celebração do quarto centenário de publicação de Os Lusíadas (1572).
O presente volume não indica qualquer ano de publicação, mas apresenta estudos introdutórios datados de 25 de Outubro de 1972 (Jorge de Sena) e Novembro de 1972 (Maria de Lourdes Cortez), pelo que a sua edição terá ocorrido em 1973, ano que corresponde à data de depósito legal na Biblioteca Nacional, de Lisboa.
Este é o primeiro, e único, número de uma projectada série, sobre a poesia de Moçambique, que não chegou a ter continuidade.
A ligação entre Eugénio Lisboa (n. 1930), Grabato Dias (pseudónimo de António Quadros, 1933-1994), Jorge de Sena, José Craveirinha (1922-2003) e Rui Knopfli (1932-1997), está bem documentada (veja-se um exemplo de estreita colaboração, entre Craveirinha, Knopfli, Lisboa e Quadros, aqui: https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290) e o seu relacionamento intelectual não é alheio à publicação da seminal revista Caliban, que surgiu no ano de 1972, como já foi referido (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-reino-submarino-28275).
Curiosamente, este volume, que pretende homenagear a obra poética dos três autores destacados na capa, apresenta uma maior extensão na análise crítica do que na reprodução de poemas – Sena analisa em seis páginas a obra de Craveirinha, que tem quatro poemas reproduzidos em quatro páginas; Cortez analisa em dezasseis páginas a obra de Grabato Dias, que tem sete poemas reproduzidos em oito páginas; e Lisboa analisa em vinte e duas páginas a obra de Knopfli, que tem quatro poemas reproduzidos em nove páginas.
Sobre a poesia de Craveirinha afirma Sena, no último parágrafo do seu estudo: "Poesia «negra»? Poesia «africana»? Por certo que sim a dele é. Mas tocada – ao revés do que pareça – de uma irónica e discreta melancolia, de uma sensualidade calma e distendida, de um contemplar de límpidos horizontes, de uma dorida tristeza de ser-se por destino voz, quando a vida poderia viver-se num amável e carinhoso silêncio de gestos e olhares. Talvez que, profundamente, e como contrapartida de uma primigénia e espontânea alegria de viver, isto seja a África, mais do que o imediato do aparente exótico ou da memória ou a experiência de séculos de terrores vividos. Mas, sem dúvida, é – acima de tudo – aquela nobreza da poesia ante que a crítica se envergonha dos seus juízos, como a humanidade deveria envergonhar-se de apenas sê-lo às horas em que não trafica consigo mesma."
De Craveirinha, que tem aqui apresentados os poemas Pureza, Nossa Cidade, Lustro à Cidade e 3 Refinamentos, reproduz-se o segundo poema, que já havia sido publicado na revista Caliban, números 3/4:
"Nossa cidade
esquisita na bilharziose das compridas
noites amansadas como gatas de estimação ronronando
aos pés do dono e sobre as citadinas
coxas de pedra entreabertas no lençol como
uma mulher saciada à segunda vez.
E nas ilhargas
da cidade os malditos meninos
de rostos tatuados de ranho seco
todos como pássaros fisgados no cajueiro dos malefícios
todos com os olhos amarelos de gemadas longínquas de sol africano
todos em carne viva sem sulfas de um naco de pão
todos a castanha de caju mastigada nos molares antropófagos da rua.
Nossa cidade
cemitério de mortos antes de o serem
e deserto povoado de um José-mulato jipe de carícias
nos joelhos nus das raparigas esfomeadas
também de angústias de cio
fêmeas e machos abotoados de ociosidade
devorando-se entre um boato e os relatos de futebol
ou enclausurando o universo no auomóvel a prestações
os dentes em riste de quem tange as violas
em ritmos a rebate nos pomos de alvenaria
mas quanto custa, afinal
quanto custa uma quinhenta de amendoins
do negrinho de faces tatuadas
de ranho seco?"
© Blog da Rua Nove