16.05.25
Poesia de Moçambique (III)
blogdaruanove
Capa de Vitor Evaristo (datas desconhecidas).
Rui Knopfli (1932-1997) já foi aqui referido múltiplas vezes, pelo que este artigo apenas reproduzirá um dos quatro poemas apresentados no volume.
Dois deles, Outubro 1969 e Disparates seus no Índico, constam do livro Mangas Verdes com Sal (1969), anteriormente mencionado (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/rui-knopfli-mangas-verdes-com-sal-31290), um outro, Normas para a Regulamentação do Discurso Próprio, surgiu na revista Caliban, números 3/4, sendo o excerto de O Escriba Acocorado um inédito.
No ensaio introdutório a esta selecção de Knopfli, declara Eugénio Lisboa (1930-2024), a propósito de anteriores obras do autor – "A poesia de Rui Knopfli, chegada depois das vozes declamatórias (indignadas ou simplesmente queixosas) de José Craveirinha ou de um Orlando Mendes, vinha dizer-nos, com modo dorido, que lhe não era possível outro discurso que não fosse o mais adequado a uma visão «um tanto crepuscular», segredando «palavras encardidas e magoadas», por certo as mais estrategicamente adequadas a convirem «este tédio profundo do tempo e da vida / mal vivida»."
Tendo Disparates seus no Índico sido já reproduzido, e não estando nenhum dos seus três outros poemas directamente relacionado com África, a opção é transcrever um poema explicitamente relacionado com os acontecimentos da crise académica de 1969, cujas manifestações e contestações ao regime decorreram entre Abril e Setembro daquele ano.
"OUTUBRO 1969
Súbito sobressalta a cidade
um pavor atónito. Existia
antes, latente, mas agora
vemo-lo, cefalópode
emergindo da sua tinta,
hélices sinuosas cortando
lentas o cansado óleo.
Mergulharemos na noite,
mergulharemos numa noite
inóspita e pejada de gemidos;
só terá coordenadas, características
e cheiro, o nosso medo.
O nosso medo ondulando
no óleo percutido pelas braçadas
tentaculares, o nosso medo
convergindo no feixe dos sentidos.
Não há tomates, não há tomates
para ele, quanto mais
para o pito da menina.
O nosso medo, membrana
impenetrável, saco sem fundo,
trampolim imprevisível.
A paisagem é a mesma,
o monstro todavia desencadeia
já a sua ofensiva. Não o vêem,
não o vêem os demais,
só o nosso medo lhe conhece
o santo e a senha, o rosto sem nome,
os olhos sem cor, os dentes sem boca.
Como ratos lobotomizados
colamo-nos à humidade da parede.
Não há apelo, não há redenção,
não há uma saída, a não ser
a parede, como fim.
A cidade é a mesma,
não viremos no necrológio
pois estamos vivos posto
que mortos. Se murmurados,
nossos nomes, ninguém os ouvirá,
pois estamos mortos posto
que vivos. Seremos a lembrança
a evitar, o hiato no diálogo,
a ausência preenchida.
Por nós, seremos bem comportados
e, no fim de tudo isto,
agradeceremos aos polícias
a porrada e os conselhos."
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