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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

03.03.17

Reynaldo Ferreira - Preto e Branco


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Capa de Martins Barata (1899-1970).

 

Reynaldo Ferreira (1897-1935), Preto e Branco (s.d. [1923]).

 

Jornalista, celebrizado com o pseudónimo de Repórter X, escritor e realizador de cinema, Reynaldo Ferreira viveu durante o final da década de 1910 em França, na Bélgica e na Holanda, e, já na primeira metade da década seguinte, em Espanha, país onde, aliás, nasceu o poeta Reinaldo Ferreira (1922-1959), seu filho.

 

Entrou para a redacção do jornal A Capital aos dezassete anos, colaborando em 1918 nos jornais Manhã, Opinião e Século, ano em que também passou a ser redactor do Le Soir, de Paris. De Paris seguiu para a Bélgica, onde colaborou no jornal Le Neptune, de Antuérpia, daí para a Holanda e finalmente para Barcelona.

 

Em Espanha, onde terá dado primazia à actividade literária sobre a jornalística, publicou diversas obras logo em 1921, como La Princesa que no Reia, Los Rusos de Mi Pension, El Taller de Madame X, El Vencedor, El Hombre que Vivió Doscientos Años.

 

Já em 1923, centrou novamente a sua atenção no jornalismo, publicando o livro Los Reyes en la Intimidad. No ano seguinte, ainda em Espanha, a sua obra El Botones del Ritz veio a ser adaptada ao cinema.

 

Uma das suas obras mais célebres, assinada com o pseudónimo Repórter X – Memórias de um Ex-Morfinómano, foi publicada em 1933.

 

Preto e Branco, uma pequena novela de 27 páginas divididas em cinco partes, surge como uma desconcertante reflexão sobre o racismo, a missionação e a insegurança íntima do protagonista, um milionário negro ocidentalizado que consegue mudar a cor da sua pele e vem a descobrir que essa decisão lhe traz a infelicidade. 

 

Da segunda parte desta obra transcrevem-se dois parágrafos:

 

"...Ainda ela não havia quebrado o seio, com as cordas que na sua tribu, [sic] enlaçava [sic] o peito das virgens que entravam na puberdade, dois homens brancos, vestidos de negro, irmãos de sangue e de fé se apresentaram um dia, dizendo aos indígenas que vinham ensinar-lhes que no ceu existia um Deus, e que esse Deus nada tinha de comum com os manipansos de madeira que eles adoravam. Todos os escutaram atentos, dispostos a crêr, na sua indolencia espiritual esse novo Deus que lhes ofereciam, prometendo-lhes paraizos eternos. E o sóba não hesitou em dar aos missionários a sua melhor cabana e as melhores esteiras. Ebu dormia, esse sono, sem sonhos dos seres primitivos, quando dois braços brutais, abriram em cruz os seus braços, e uma boca escaldante, mordeu com os lábios, a sua boca. Desperta e assustada pela violencia do ataque, quiz gritar, mas não poude. E então os seus olhos afilados pelo pavôr, cravaram-se na treva e reconheceram o mais novo dos missionários. Durante horas e horas, o seu espirito afugentado pela dôr fisica pelo panico, abandonou o corpo, num pesado desmaio. Quando voltou a si, já o sol ardia pela planicie sem fim – e os missionários haviam partido em direcção á cidade. Ela guardou o segredo daquele brusco assalto á sua virgindade – pobre flôr desprezada que o sóba não teria hesitado em regalar ao padre – até que o nascimento de Jolué a obrigou a revelá-lo.

 

Os moços da tribu exigiram, então, em berros, o corpo do recemnascido, cuja pele negra deixava adivinhar, através uma transparencia ligeiramente clara, a côr do homem que a fecundára. Mas as bestas das florestas tambem têm o instinto da maternidade; e Ebu, quando comprendeu que lhe iam arrancar do peito aquela cria ainda cria ainda quente do seu ventre, fugiu e, durante horas e horas, correu, correu como uma louca, com os pés a queimarem-se sobre a terra que escaldava como fogo vivo – até cair sem sentidos, vencida pelo cansaço e pela fome... Voltou a si sentindo que a sua cabeça repousava sobre os joelhos de alguem; colados ás fontes, lenços humidos, refrescavam-na com delicia. O filho, dormitava, ao seu lado. Procurou descobrir quem fôra o salvador, e os seus olhos encontraram-se com um homem, muito branco, todo vestido de negro. Era um dos missionarios; era o mais velhos dos dois; era... o reverendo Agostinho de Jesus."

 

© Blog da Rua Nove

31.03.10

Brito Camacho - A Caminho de África


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Brito Camacho (1862-1934), A Caminho d' Africa (1923).

 

Tal como muitas outras obras da década de 1920 e 1930, este livro relata aspectos da jornada que o autor efectuou "a caminho de África", neste caso uma viagem efectuada entre Lisboa e Lourenço Marques. 

 

Esta viagem, contudo, não seria efectuada num mero âmbito jornalístico nem com a finalidade de o autor se estabelecer como colono. Médico e político destacado da I República, durante a qual chegou a exercer o cargo de Ministro do Fomento, Brito Camacho relata-nos a viagem que o levou até Moçambique, onde iria exercer o cargo de Alto Comissário entre 1921 e 1923.

 

Autor de algumas dezenas de títulos, que englobam quer textos de natureza política quer crónicas e textos ficcionais, Brito Camacho oferece-nos ao longo deste volume diversas considerações sócio-políticas intercaladas com interessantes descrições dos locais por onde foi passando.

 

Transcrevem-se de seguida dois excertos da obra, o primeiro sobre S. Tomé e Príncipe, o segundo sobre o início das suas funções em Moçambique, trecho que encerra o volume:

 

"Desce a noite pelas encostas dos montes, cobertos de vegetação exuberante até aos ultimos cocurutos, e ainda temos que ir a Rio d'Ouro. A distancia não é grande, mas ha que percorrel-a em vagonete, puxado a mulas, num decauville sem maquinas.

 

Tenho a impressão de caminhar atravez de uma floresta sem murmurios, no silencio augusto de uma noite opaca... Aquela anedota do homem que se deitava no chão para ouvir crescer a herva, seria historia verdadeira em S. Thomé, que eu bem sinto os galgões da seiva na rêde vascular destes gigantes frondosos; bem vejo o arfar destes peitos rudes abrigando pulmões cujos alvéolos são cavernas, e nos silencios da conversa, as inevitaveis pausas sincopais que rompem o fio de todo o falaciar palreiro, o que eu oiço é o bater rithmico, o tic-tac isocronico do coração de Pan a dormir na floresta, embriagado de perfumes exóticos.

 

Pois se no meu regresso de Agua Izé, perto da cidade, eu notei que um óakas, á margem da estrada, do lado direito, crescera um palmo!

 

O Rio d'Ouro é uma torrente que vem lá de cima, não sei donde, quebrando-se nas fragas, tumultuoso e devastador no tempo das cheias, reduzido agora a  um minusculo fio  de agua cantante, que atravessamos numa pinguela feita de pernadas e troncos. Sobe-se uma pequena rampa e está-se nas instalações da roça, uma das melhores propriedaddes de S. Thomé. Somos recebidos por uma multidão de pretinhos chilreantes, alegres e desenvoltos como passaros em liberdade – bom dia doutô! bom dia doutô!"

 

 

"Ganso d'Almeida, meu condiscipulo, era um rapaz muito inteligente, muito amigo de ler, e tinha uma graça infinita. De quando em quando dava-lhe para fazer versos, quasi sempre satyras e epigramas.

 

Um dia, a gracejar, tendo-me elle lido uma ode que fizera na vespera, perguntei-lhe:

 

– Como diabo é que fazes versos depois de leres Victor Hugo?

 

E vai elle responde, como a justificar-se d'uma acusação grave:

 

– Peço perdão, mas eu não faço versos depois de ler Victor Hugo; faço-os depois de ler o Pedro Covas.

 

Vinha a ser o Pedro Covas um poetastro da Vidigueira, colaborador de todos os almanaques de Portugal e Brasil, com estravasamento de rimas por alguns jornaes da provincia. Pedro Covas, a poetar, abusava talvez das liberdades que a Carta garantia a todos os cidadãos, e como isso lhe dava prazer, e não prejudicava ninguem, sangrava a veia poetica  até quasi ficar anemico. A especialidadde de Pedro Covas era o acrostico, genero de composição poetica, então muito em uso. Ganso d'Almeida entretinha-se, muitas vezes, a parodiar-lhe a versalhada, mandando-lhe a troça pelo correio.

 

Reflectindo na resposta dada, achei que o meu amigo tinha rasão. Só um verdadeiro, autentico poeta tem o direito de fazer versos depois de ler as Orientais; mas pode qualquer ter escrupulos de versejar depois de ler o Almanaque de Lembranças?

 

São horas de ir para o emprego.

 

No jardim, a caminho da Secretaria, um velho colono, vindo ao meu encontro, dá-me familiarmente os bons dias, e informa que o Enes e o Mousinho, em geral, despachavam na Residencia.

 

Desfecho-lhe esta, que o deixa aturdido:

 

– Pois sim, mas o Pedro Covas despachava sempre na Secretaria.

 

Forte de semelhante evocação, animado da coragem que ao Raposão faltou no momento em que iria cair lhe nas mãos a fortuna da Titi, instalo-me no gabinete de despacho e toco a campainha, chamando o continuo.

 

– Saberá v. exa, que já chegou o sr. director da agrimensura.

 

– Mande entrar.

 

Começa a minha administração.

 

Que Deus lhe ponha a virtude..."

 

© Blog da Rua Nove