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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

18.05.21

Luís Bernardo Honwana - Nós Matámos o Cão Tinhoso!


blogdaruanove

 

Luís Bernardo Honwana (Luís Augusto Bernardo Manuel, n. 1942), Nós Matámos o Cão Tinhoso! (1964; presente edição, segunda, revista, 1972).

Capa de João Machado (n. 1942).

 

Luís Bernardo Honwana constitui-se como um caso excepcional e singular entre os escritores africanos de língua portuguesa – com esta obra da sua juventude, o seu único livro de ficção publicado até hoje, atingiu uma consagração que lhe conferiu um estatuto de referência na literatura colonial portuguesa e na literatura moçambicana.

 

De facto, para além desta obra, Honwana, que regista numa nota à primeira edição – "Chamo-me Luís Augusto Bernardo Manuel. O apelido Honwana não vem nos meus documentos. Sou filho de Raul Bernardo Manuel (Honwana) e de Nally Jeremias Nhaca. Ele intérprete de administração da Moamba, ela doméstica. Tenho oito irmãos.", apenas publicou um outro livro de certa extensão, A Velha Casa de Madeira e Zinco (2017), obra que ele próprio refere ser um conjunto de "crónicas, depoimentos e testemunhos".

 

O presente volume inclui sete contos – Nós Matámos o Cão Tinhoso!, Inventário de Imóveis e Jacentes, Dina, A Velhota, Papá, Cobra e Eu, As Mãos dos Pretos e Nhinguitimo. O quinto destes contos, Papá, Cobra e Eu, viria a ser editado em separado, em 1975, nos Cadernos Capricórnio, que se publicavam na cidade angolana do Lobito. Honwana publicara ainda, em 1971, um outro conto inédito, Rosita até Morrer, na revista Vértice.

 

O aparecimento desta segunda edição na Afrontamento, uma editora do Porto, assume contornos peculiares, uma vez que Honwana já tinha estado preso durante três anos, precisamente a partir do ano em que publicara a primeira edição desta obra, devido às suas opções políticas – nesse ano tornara-se também membro da Frelimo.

 

Por isso, talvez não seja de estranhar que a quarta página desta edição apresente a seguinte indicação: "Edição de / Luís Bernardo Honwana / Lisboa 1972", um subterfúgio editoral que pretendia isentar a Afrontamento de represálias editoriais e políticas e evitar as consequências de eventuais apreensões, como se pode verificar na história da editora disponibilizada no seu site (www.edicoesafrontamento.pt).

 

Até então, a Afrontamento apenas havia publicado catorze obras, entre as quais O Homem Invisível (1954; edição Afrontamento, 1964), de Pablo Neruda (Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, 1904-1973), cuja contracapa apresenta o lema da editora – "Quando a desordem se torna ordem / uma atitude se impõe / AFRONTAMENTO", uma citação de Emmanuel Mounier (1905-1950).

 

A evidente opção ideológica e política desta editora explicará as razões pelas quais, em 1972, do seu heterogéneo e reduzido catálogo de quinze obras, quatro se encontravam esgotadas e sete estavam fora do mercado. Entre as obras esgotadas encontrava-se Vietnam, A Oposição à Guerra nos E.U.A. - Programa da Frente Nacional de Libertação do Vietname do Sul (1969) e entre as que estavam fora do mercado encontrava-se Em Defesa de Joaquim Pinto de Andrade (1971), que teve uma tiragem de 20 mil exemplares e se constituíu como o maior êxito de vendas da editora, até então.

 

Os sete contos de Nós Matámos o Cão Tinhoso! caracterizam-se por apresentarem narrativas desenvolvidas num tom aparentemente coloquial e despretensioso que, no entanto, é claramente subversivo e denuncia subtilmente a ideologia colonial, a injustiça social e as desigualdades raciais.

 

A tensão social e racial desenvolve-se de forma menos diáfana em contos como Nhinguitimo e Papá, Cobra e Eu, atingindo o seu culminar em Dina, narrativa que ilustra ainda, magistralmente, a vergonhosa impotência perante a indignidade e a desonra.

 

Apesar disto, Honwana fez questão de abrir a sua já referida nota à primeira edição com a seguinte declaração – "Não sei se realmente sou escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionam intimamente comigo ou traduzem factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer."

 

Este homem, que assim duvidava do seu estatuto como escritor, estudaria Direito, em Lisboa, a partir de 1970, tornando-se, depois de 1975, Secretário de Estado e Ministro da Cultura de Moçambique. Foi ainda presidente da Organização Nacional dos Jornalistas de Moçambique, presidente do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa e membro do Conselho Executivo da UNESCO, entre vários outros cargos exercidos em diversas instituições moçambicanas e internacionais.

 

Em 2014, esta obra, Nós Matámos o Cão Tinhoso!, foi agraciada com o Prémio José Craveirinha de Literatura, um prémio, instituído pela Associação de Escritores Moçambicanos, que pretende homenagear a memória e a obra do poeta José Craveirinha (1922-2003).

 

Transcrevem-se de seguida os primeiros oito parágrafos do conto As Mãos dos Pretos:

 

"Já não sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.

Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar seja quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim mais claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deva ficar senão limpa.

O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:

«Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!»

Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.

Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.

Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.

Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mão dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!"

 

© Blog da Rua Nove

17.03.10

Henrique Galvão - Outras Terras, Outras Gentes


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Capa (?) e ilustrações de Fausto Sampaio (datas desconhecidas).

 

Henrique Galvão (1895-1970), Outras Terras, Outras Gentes, 2.º volume, (1942?).

 

Embora os dois volumes que constituem esta obra sigam estritamente, na sua organização, o itinerário percorrido pelo autor em terras angolanas, a obra afasta-se do registo seco das meras notas de viagem, assumindo-se como literatura de viagens na sua acepção mais elaborada.

 

A este facto não será estranha a prática literária do autor, que na década anterior havia sido distinguida já com vários galardões no âmbito da literatura colonial.

 

Apresentando cinco capítulos – Moxico, berço de rios; Terras do Fim do Mundo, Do Cuangar à Huíla, pelo Bié; Para Aquém e para Além da Chela e Do Lubango a Luanda por terras de Oeste, este segundo volume mantém o modelo desenvolvido no primeiro, apresentando-nos o itinerário por terras de Angola como pretexto para diversas narrativas e descrições literariamente elaboradas.

 

Do capítulo Para Aquém e para Além da Chela trancrevem-se dois excertos:

 

"E ficou assente que o Fraga iria ao Cuanhama, aparentemente no exercício do seu míster de funante – mas na verdade, como espião.

O grande aventureiro não cabia em si de contente.

Tinha saüdades do Cuanhama, das viagens aventurosas, das incertezas em terra hóstil, do alerta constante dos sentidos.

Era um jogador especial – mas vicioso como todos os jogadores. Não o tentava arriscar dinheiro nas tavolagens, mas apaixonava-o jogar a vida em pleno naquela grande roleta do Cuanhama.

Desde que tinham sido proíbidas as viagens dos funantes para além do Cunene, metera-se a funar nas terras ocupadas. Ganhava mais e tinha menos canseiras – mas não era a mesma coisa. Tinha perdido o amor ao dinheiro desde que percebera que não era a fortuna que o tentava nas grandes aventuras do Cuanhama. Em compensação sabia-lhe melhor a vida quando tinha que a ganhar todos os dias contra a morte. Deslumbrava-o, saboreada assim, como uma vitória sempre fresca.

Por isso era um jogador – e especial, porque tinha o vício de jogar a vida.

Foi com alegria de criança que preparou os seus carros como dantes.

Encheu-os de fazenda e de presentes para o Mandume. E quando os viu atestados e prontos, montou o "Sultão" e abalou, remoçado e restituído à alegria de viver.

Os funantes eram assim. E se assim não fôssem não seriam funantes."

 

 

"À data da minha última viagem pelo Cuanhama, reinava, em termos bem diferentes, é claro, a sobrinha do Mandume – a Kalinaxo.

O Cuanhama era então, como hoje, apenas uma circunscrição de Angola – e a Kalinaxo, apenas uma raínha preta, muito dona dos seus gados e pouco raínha das suas gentes.

Era fina e manhosa.

Bebia champagne como o Mandume, mas preferia trajar à maneira dos seus: a n'ctuba assente sôbre as nádegas, o peito ressequido orgulhosamente nu, a manteiga escorrendo do cabelo e o perfume do leite azêdo a espalhar-se em volta.

Quando conversei com ela, tinha um ar irónico mas triste – um meio sorriso que assentava como um postiço na máscara melancólica.

Tinha razão. Ela conhecera a vida fulgurante do Mandume e comparava-a com a monotonia da sua. Trazia encarcerada na substância aventurosa de cuanhama, a ância das guerras, das razias, da prepotência e do domínio – e esmorecia na paz, sob a quietação bovina das manadas e na sucessão de dias iguais.

Era apenas uma Raínha de pastores, vassala pràticamente de um Chefe de Pôsto – ela, a sobrinha do Mandume, que fôra Chefe altivo e indomável de guerreiros e ladrões!

Compreendo perfeitamente a melancolia da Kalinaxo - muito melhor do que compreendo o orgulho dos civilizados do nosso tempo.

Quando comparo as qualidades e defeitos de homens como o Fraga e o Mandume, com as qualidades e os defeitos dos triunfadores da minha geração, choca-me, antes de mais nada, a antítese entre dois sistemas morais.

Acima dos defeitos dos primeiros – ou como qualidade dos seus defeitos – pairava o respeito pela coragem, a consideração pela valentia e o culto organizado do brio individual e colectivo.

No alto das qualidades dos segundos – ou como um defeito das suas qualidades – vingam o desprêzo pela coragem e pelo carácter e os processos de deformação da coluna vertebral."

 

 

 

© Blog da Rua Nove