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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

08.12.16

Castro Soromenho - A Voz da Estepe


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Castro Soromenho (1910-1968), A Voz da Estepe (s.d. [c. 1956]).

 

Este opúsculo de 48 páginas republica dois contos do autor – A Voz da Estepe e Samba, que anteriormente haviam sido incluídos na sua obra Rajada e Outras Histórias (1943). 

 

Do conto que dá o título a este volume transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Um som vibrante de tambor quebrou o ar e foi levado pelo eco que o atirou planície fora. Matembele ainda tinha punhos fortes, mas ele próprio se surpreendeu com a violência com que tocara o atabaque.

 

– Velho, tu ainda estás novo! – disse-lhe um dos caçadores, o Capua, que desde rapaz só o tratava por velho.

 

Matembele riu e, entusiasmado como uma criança, recomeçou a martelar o tambor, para que todos ouvissem bem que começara a caçada a fogo de Dumba-iá-Cuito.

 

– O vento está bom – disse o velho, com a boca e os olhos a rirem.

 

E, entregando o tambor a um moço, empunhou o fuzil e dirigiu-se para o rio, abrigando-se à sombra da árvore, junto ao ancoradoiro.

 

Na linha azul do horizonte, começou a desdobrar-se uma serpentina de luz alaranjada, que em breve se transmudou numa faixa vermelha, como uma estrada de fogo entre o céu e a terra. De repente, rolou sobre essa faixa uma onda rubra que incendiou o céu, como um pôr de sol, e um rumor de mar encapelado correu sobre a planície, e com ele o vento trouxe uma onda de ar quente. E, de pronto, a voz da estepe acordou em todos os recantos.

 

Do capinzal largaram bandos de borboletas, de lindas e variegadas cores, em demanda da frescura rio, inquietadas com os rumores da planície. Matembele ficou-se a olhá-las com olhos de criança. Um grande pássaro negro riscou o espaço, batendo ruidosamente as asas sobre a cabeça do velho, e lançou um grito agoirento; e como se esse grito fosse aviso de desgraça a todos os pássaros da planície, logo o céu se encheu de asas das mais variadas cores, que se perderam para além do Cuilo.

 

Agora já não se enxerga a linha azul do horizonte. No céu que tomba sobre a terra reflectem-se as vagas de chamas que o vento ondula na planície. Ouve-se, num rumor distante, a respiração ardente da estepe. Os caçadores estão excitados com os rumores que vêm da planície e com a espera da caça. Para as bandas do rio, cruzam-se gritos de alegria selvagem, comentando a marcha do fogo e a violência do vento. Mas ainda não há sinal de caça, nas terras ribeirinhas e nas faixas que de um lado e do outro dividem a planície e são barreiras para o fogo e pontos de apoio de caçadores, porque, se o vento mudar de direcção, atirando com o fogo para ali, toda a caça que foge, em tropel, à frente do fogo, irá ao seu encontro.

 

Uma corpulenta pacaça e três tímidas gazelas, deitaram a cabeça para fora fora do capinzal, mas, logo que viram um dos caçadores, retrocederam precipitadamente. Ninguém deu um passo em sua perseguição, esperando pelo momento em que elas se viessem entregar à morte, quando já não pudessem suportar o calor ou açodadas pelo fogo. De repente, nas terras nuas da margem do rio surgiram, fugidos do capinzal, centenas de ratos, soltando guinchos e correndo como loucos, o que causou grande alegria aos caçadores que, por divertimento, os perseguiam com gritos e os chibatavam."

 

© Blog da Rua Nove

02.05.16

Ferrão Cardoso - Terra, Sol e Aventura


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Ferrão Cardoso (Jorge Ferrão Cardoso, datas desconhecidas), Terra, Sol e Aventura (1956).

 

Antes desta obra, Ferrão Cardoso havia publicado, em 1948, numa edição de autor, o volume de contos intitulado Caravana, anunciando-se aqui em Terra, Sol e Aventura a futura publicação de crónicas de viagem, sob o título Aguarela Africana, e um romance intitulado A Grande Metrópole, títulos sobre os quais não foi encontrada notícia ulterior. 

 

Posteriormente, publicou ainda um conjunto de crónicas sob o título Gesta das Terras Distantes (1962), O Aprendiz de Poeta (2002), um livro de poesia, e um novo livro de crónicas, que eventualmente será uma versão revista e aumentada de Aguarela Africana, intitulado Aguarela Nómada (2010).

 

De ascendência transmontana, Ferrão Cardoso nasceu no Porto e viveu parte da sua infância em Angola, no Huambo, passando depois a viver em Lisboa. Fez os seus estudos universitários em Coimbra, onde se licenciou em Medicina, regressando posteriormente a Lisboa, onde exerceu a especialidade de otorrinolaringologia no Hospital de Santa Maria.

 

Este volume reúne 14 contos, entre os quais o último, As Digestões Calmas, evoca as suas memórias e origens transmontanas, através da acção localizada em Vidago e na serra da Padrela. De todas estas narrativas, apenas Estrada de Damasco, Rotina, "Amuna" e Caboclo apresentam claramente localizações espaciais exteriores a Portugal continental.

 

Do conto Rotina transcrevem-se os primeiros parágrafos:

 

"Separadas meia milha, as duas margens do rio eram fechadas, densas de vegetação. Havia algumas boias balizando o trajecto navegável e pontões espalhados dos dois lados, rio fora.

 

Entre eles, num vaivém constante, o vaporzinho "Flor do Minho" com uma reduzida tripulação de negros e o capitão João de Deus conhecido em todo o mato.

 

Quando havia paquete, o vaporzinho descia o rio até ao litoral e voltava mais garrido, carregado de notícias frescas da metrópole e novos colonos. Até ao entreposto funante, quatro dias de viagem rio acima, o capitão João de Deus tinha tempo de cumular os recém-chegados de todas as atenções possíveis, e, ao mesmo tempo, conhecê-los e aconselhá-los. Pelos conselhos não levava nada, e a conversa era um entretenimento.

 

A coisa era sempre igual. E quando, no regresso, o vaporzinho chegava ao povoado do interior, lá estava a voz roufenha do velho Dôres perguntando «Como está o litoral?», e ele sempre respondendo «Salgado, salgado...», antes de começar a contar as novidades.

 

Viera para África ganhar dinheiro, magoado e insatisfeito como pouco que a vida lhe dera até então, mas depois, com o tempo, toda essa excitção passou. O dinheiro deixou de interessá-lo duma maneira absorvente, e ficou fazendo parte da paisagem, vendo chegar os outros, à cata do velo de oiro, inquietos e aventureiros como ele outrora.

 

Ia buscá-los ao paquete, assustados com o mundo estranho com que sùbitamente deparavam, e subia com eles o rio até ao entreposto. Aí, as casas aviadoras espalhavam-nos pelo interior. Eram duras provações. Mas depois, se havia sorte, lá estava o regresso, o capitão e o seu «Flor do Minho» para os trazer ao mar, a apanhar o navio que vinha da costa oriental rumo à metrópole."  

 

Hoje, o cais do litoral já não era mais um paredão tosco, com madeira meio apodrecida, enterrada na água. Tudo agora era uma sólida estrutura de concreto e grandes imóveis com ruidos de máquinas de escrever, e camaradas de óculos e caneta na mão davam àquilo um aspecto de confusão e dificuldade. João de Deus e o seu vaporzinho tinham que satisfazer uma data de papelada cada vez que lá iam, mas havia ainda os bons amigalhaços, a cerveja no Coelho, linguareiro como dantes, e sempre se conseguiam uns momentos bem passados. Quando zarpava rio acima, o capitão nunca ia desiludido.

 

João de Deus envelheceu e engordou, os pais morreram, a Gracinda já não está solteira, nem nova, nem o espera, e a aldeia, o regresso e as terras do Floripes pegadas com o seu Ribeiral não têm mais o interesse de antigamente.

 

Dantes, quando o navio partia, doía-lhe vê-lo ir-se. Quando o seu vulto acabava por desaparecer lá longe, no horizonte, tudo lhe parecia mais solitário ainda, e sentia uma grande tristeza. Era quando mais recordava todas as coisas deixadas.

 

Mas agora, quando isso acontecia, estava normalmente a beber cerveja no Coelho ou ainda às voltas com a papelada nalgum daqueles gabinetes difíceis, e os apitos do barco, ao partir, nem sequer o distraíam. Desaparecido no mar, a paisagem ficava igual.

 

E quando, depois, à noite, subia o rio, entre as duas margens negras, com o céu tranquilo no alto, João de Deus sentia que tudo aquilo era o seu lar, o único lar que viria a ter na vida. Não havia mais dúvidas."

 

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24.02.10

Manuel Lopes - Chuva Braba


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Capa do autor.

 

 

Manuel Lopes (1907-2005), Chuva Braba (1956)

 

 

Juntamente com o seu conterrâneo cabo-verdiano Baltasar Lopes da Silva (1907-1989), autor do aclamado romance Chiquinho, Manuel Lopes foi um dos fundadores da revista Claridade, em 1936. Revista de inspiração insular, mas também veículo de autonomização cultural e singular afirmação literária, foi um marco essencial da literatura cabo-verdiana da primeira metade do século XX.

 

Manuel Lopes celebrizou-se, ainda, pela publicação desta novela (de acordo com a designação que ele próprio incluíu no volume) e pelos dois livros que se lhe seguiram - O Galo que Cantou na Baía (1959, contos) e Os Flagelados do Vento Leste (1960, romance), este último adaptado para o cinema em 1988 (ver http://www.imdb.com/title/tt0132161/.). Com este livro obteve em 1956 o prémio Fernão Mendes Pinto da Agência Geral do Ultramar.

 

Uma certa semelhança com o discurso neo-realista, nomeadamente o de Manuel da Fonseca (1911-1993) sobre as paisagens do Alentejo, evolui para uma descrição bem distinta e autónoma das paisagens e das gentes cabo-verdianas, no primeiro capítulo (II parte) de Chuva Braba, do qual se transcreve um breve excerto:

  

"Porto Novo não tem montanhas. Ali há vento à solta, mar raso por aí fora franjado de carneirada. Há distância: um azul que navega e naufraga num mundo sem limite. Lá adiante fica S. Vicente, cinzento e roxo, roxo e cinzento, depois é só horizonte. O mar, quando cai a calma sobre o canal, desliza ora para o sul ora para o norte, consoante a direcção da corrente, como as águas dum rio que ora descessem para a foz ora remontassem da foz para a nascente.

 

As árvores são torcidas e tenazes, têm a riqueza dramática das desgraças hereditárias ou das indomáveis perseveranças. Cheira a marisco que vem das praias de seixos rolados e areia negra. Cheira a poeira das ruas onde há bosta de mistura. Cheira a melaço e aguardente, a fazenda e a coiro dos armazéns. Cheira a maresia no vento que sopra sobre os telhados. Mas há água canalizada da Ribeira da Mesa, um chafariz público onde as alimárias bebem, uma horta exuberante no Peixinho e um jardim emaranhado e virgem à beira mar.

 

Porto Novo é vila de futuro, dizem. Uma estrada paralela à praia corta-a ao meio; é a rua principal. No seu portinho aberto de mar picado balançam, quase sempre, um ou dois faluchos vindos de S. Vicente. O comércio progride. As lojas são providas de toda a sorte de bugigangas. Têm fazendas medidas a jardas, lenços de cores berrantes, mercearia, quinquilharias, têm espelhinhos, jóias artificiais, barros de Boa Vista para todos os usos, alfaias, panelas, caldeirões de ferro de três pés, têm tudo. A clientela é vasta, quase a terça parte da população dos campos da ilha cai ali. Trazem produtos agrícolas, trocam ou vendem, invadem as lojas. Deixam os nomes nos livros de conta-corrente; pagam prestações. Há empréstimos, dívidas, hipotecas, juros astronómicos. Fornecedores de frescos à navegação do Porto Grande, vendedores e vendedeiras do mercado de S. Vicente vão ali adquirir frutas, galinhas, ovos, hortaliças, por baixo preço. Contrabandistas de aguardente pululam. Até a hora da debandada das tropas de burricos, dos homens e mulheres de campo, ao meio-dia ou uma hora da tarde, a estrada enche-se movimento e gritos num vaivém de feira ambulante, canastras, frutas, lenha, gado. Os faluchos zarpam ajoujados. S. Vicente devora tudo, pede mais. Uma vela branca e oblíqua cruza com outra no  meio do canal. À tarde Porto Novo é uma vila morta."

 

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21.02.10

Alexandre Cabral - Histórias do Zaire


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Alexandre Cabral (pseudónimo de José dos Santos Cabral, 1917-1996), Histórias do Zaire (1956).

 

Notável estudioso e especialista da obra camiliana, Alexandre Cabral publicou o imprescindível Dicionário de Camilo Castelo Branco (Editorial Caminho, 1988), entre dezenas de estudos, ensaios e obras de ficção. (No início da sua carreira, alguns dos seus trabalhos surgiram também sob o pseudónimo Z. Larbak.)

 

Alexandre Cabral produziu três interessantes volumes de ficção que reflectem a sua estadia em África – Contos da Europa e da África (1947), Terra Quente (novela, 1953) e Histórias do Zaire

 

Até à data de edição deste último livro, o autor havia também publicado já as seguintes obras – Cinzas da Nossa Alma (1937), Parque Mayer em Chamas (1937), Contos Sombrios (1938), Ferreira de Castro – O Seu Drama e a Sua Obra (ensaio, 1940), O Sol Nascerá um Dia (contos, 1942), Fonte da Telha (romance, 1949), Aspecto Literário da Obra do Prof. Egas Moniz (conferência, 1950) e Malta Brava (romance, 1955).

 

Histórias do Zaire, publicado novamente em 1982 (Livros Horizonte), é um volume característico da sua obra ligada a África – uma vivência centrada no antigo território do Congo  (particularmente nas antigas colónias da Bélgica e de França banhadas pelo rio Congo, ou Zaire) e um ponto de vista narrativo dedicado não apenas aos emigrantes portugueses mas também às populações naturais da região. O protagonismo destas constitui, aliás, o núcleo do livro. 'Daba-Goma', 'Kandot era o "boy" do Sr. Hiebler' e 'A "fula" Lubamba desapareceu' são narrativas que evidenciam ser a literatura colonial deste autor uma literatura que retrata a realidade, a magia e o inesperado das colónias africanas sem todavia ser, necessariamente, uma literatura apologista do colonialismo.

 

Embora por razões diversas, note-se que a violência e a tensão que pontuam o conto inicial, 'Gonçalves morreu numa noite de tempestade', surgem quase como premonição dos conflitos coloniais que irromperam em África nos anos subsequentes. Por esse facto, é surpreendente, mesmo, que este volume não tenha sido apreendido ou censurado pelo regime.

 

O único conto dedicado exclusivamente à presença portuguesa em África é a narrativa que encerra o volume – O "cacholas" [i.e., o clandestino]. Uma viagem de navio entre Angola e Portugal serve de pretexto para falar da vida a bordo, da diferença de classes, de viajantes clandestinos e de um tripulante cabo-verdiano, que acaba por falecer devido à indiferença dos serviços médicos de bordo. Um belíssimo conto que nos recorda a força dos contos de J. R. Miguéis (1901-1980) de temática semelhante, como 'Gente da Terceira Classe' e 'O Viajante Clandestino' (Gente da Terceira Classe, 1962).

 

A escrita de Alexandre Cabral, desenvolta e atraente, e o inusitado da ficção de muitos dos seus contos e novelas alertam-nos para a necessidade de redescobrir vários autores do século XX que têm vindo a cair no esquecimento.

 

  

 

Ilustração de Rogério Ribeiro (n. 1930).

 

 

Do conto O "cacholas" transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Durante as refeições, marcadas pela sineta do chefe, a despeito de se escoarem insípidas, com a galinha e a salada vulgaríssimas mascaradas de «churrasco bercy» e e «salada renascença», a intimidade era mais sentida.

 

Na 1.ª classe, os passageiros comiam vagarosamente e com o cerimonial exigido pela condição de tal clientela. Já o ambiente da sala de jantar da 2.ª era mais popular, ainda que, aqui e além, é verdade, como flor de estufa no meio de papoilas singelas do campo, um casal esforçava-se por puxar ao fino.

 

A mesa 9, então, era mesmo um disparate. Composta por empregados dos Caminhos de Ferro, de Moçambique, e outros que entraram no Cabo, representava um tufão vergastando a placidez estabelecida. Os criados receavam muitas vezes que a troca de opiniões, galhofeiras e mordentes, redundasse em disputa.

 

– O Porto, meu amigo, é uma cidade de trabalho, de gente honesta...

 

– Propaganda, cavalheiro. Propaganda. Toda a gente sabe que o Porto é a terra das tripas.

 

– Ah, sim! Então, oiça lá... mas oiça, canudo...

 

E por mais que gritasse ninguém o ouvia. Os parceiros riam da pilhéria. Tinha sido bem atirada, sim senhor.

 

Passando à 3.ª, transbordante como a pança de um glutão, verificava-se que a escala da decência tombara a zero. Quer dizer, aqui o pessoal não tinha a preocupação de se intrujar reciprocamente. Por isso mesmo, é de crer, as damas e cavalheiros da 1.ª nunca arriscaram o nariz naquela promiscuidade. Homens e mulheres dormiam pelos corredores, em cima das caixas de madeira, onde guardavam os seus haveres, ocupada como estava a própria sala de fumo. Um inferno! Havia uma expansão de sentimentos, uma confusão de malas e baús, e um odor de estrebaria, que só o campónio habituado aos apertos das carruagens da beira era capaz de tolerar.

 

O vinho soltava-lhes a língua, chegando um atrevido a proclamar, em altos berros, que estavam a receber um tratamento pior que num campo de concentração fascista. Os criados, gente da mesma laia, ouviram o descoco sem protestar.

 

Servida a refeição da noite, a orquestra de bordo preparava-se para a função, tocando tangos deliciosos e rumbas barulhentas com o propósito firme de limpar a atmosfera da 1.ª de qualquer mancha de tédio. A juventude divertia-se e até os senhores em idade madura sacrificavam os apertos dos pés a uma volta de dança.

 

Não sendo permitida a intromissão dos viajantes da 2.ª ou da 3.ª, toleravam-nos, conquanto que vestissem o seu casaquinho domingueiro e se portassem com decência. Ao começo principiaram por espreitar a medo a sala luxuosa e acabaram por tomar conta dos domínios, num abuso intolerável, pensavam as senhoras respeitáveis, que se regiam pelo severo código da melhor sociedade. E tinham razão. Mas também se não fosse o entusiasmo da rapaziada invasora as suas soirées redundavam num estrondoso fiasco.

 

Às tantas, os homens da orquestra e a menina do piano arrumavam as papeletas, guardavam os instrumentos e recolhiam aos camarotes. A pianista, certamente por espírito romântico, ficava vagueando pela solidão do navio, de braço dado com o terceiro maquinista, de quem, admitia-se, recebia lições de náutica..."

 

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05.02.10

Reis Ventura e a Literatura Colonial Portuguesa


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Fotografia da década de 1920 com a seguinte legenda, manuscrita por Reis Ventura, no verso: "Creio que já lhe falei no passeio que demos todos os do curso superior a Caminha, de barco. Foi muito interessante. Como vê estamos todos à secular porque a Portugal não podemos ir de hábito. Este retrato foi-nos tirado pelos padres Jesuitas da Guardia no claustro do seu convento. Eu sou esse trampolineiro marcado com uma cruz. Reis". Na frente, no canto superior esquerdo, uma dedicatória parcialmente ilegível: "A meu irmão (...) do Vasco (...)".

 

 

Manuel Reis Ventura (1910-1988) foi um dos escritores que integrou aquela que se pode classificar como a segunda fase da literatura colonial portuguesa de inspiração africana, no século XX. A primeira fase, representada por escritores como Henrique Galvão (1895-1970), Julião Quintinha (1885-1968) e Castro Soromenho (1910-1968), desenvolveu-se entre as décadas de 20 e 40 coincidindo predominantemente com a recuperação do conceito de império colonial, preconizado pelo Estado Novo. A segunda fase veio a coincidir com o início da autodeterminação dos países francófonos de África, já na década de 50, e com a sublevação nas colónias portuguesas, na década seguinte. Em Angola, esta fase cristalizou-se à volta do Grupo da Província, um conjunto de artistas e escritores que contribuíram para o Suplemento Literário do jornal "a província de Angola" [sic], logo a partir da década de 40.

 

 

  

Luuanda, 1.ª edição brasileira (1965), à esquerda, e 3.ª edição portuguesa (1974).

 

 

Durante a década de 60, este grupo, apoiado tacitamente pelo governo e pela Agência Geral do Ultramar, veio a ser contestado, na sua literatura comprometida com  o regime, por escritores de oposição ao colonialismo e ao Salazarismo, como José Luandino Vieira (pseudónimo de  José Vieira Mateus da Graça, n. 1935). Um autor que já se notabilizara na década de 50 através da sua colaboração nas revistas Mensagem e Cultura, veio a ser galardoado em 1965 com o prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livro Luuanda (1963). Um prémio que se revelou controverso pela oposição que mereceu das instituições governamentais da época e pela evidente contestação ao regime que tal atribuição representava, visto Luandino Vieira ser então um preso político.

 

 

Cafuso (1956), capa de Neves e Sousa.

 

 

Em plena década de 60, devido à guerra, o compromisso ideológico de Reis Ventura para com o regime acentuou-se, vindo a sua literatura a ser fortemente condicionada por esse facto. A sua prosa passou a reflectir aspectos panfletários e dogmáticos, características já anteriormente sugeridas na personagem Bolchevique de A Romaria, congregando o reconhecimento do regime e dos defensores do sistema colonial. Nesta transição perdeu-se, contudo, a simplicidade, a clareza e a atracção de uma prosa corrida que o autor desenvolvera nos anos 50. Assim, talvez as suas obras literariamente mais conseguidas tenham sido precisamente as dessa década, merecendo particular destaque os romances que constituem a trilogia Cenas da vida em Luanda – Quatro Contos por Mês (1955), Cidade Alta (1958), Filha de Branco (1960), bem como o romance parcialmente autobiográfico Cafuso (1956). Nesta última obra, o narrador intradiegético relata a sua passagem por Tuy, a sua preparação sacerdotal e o abandono da vocação. Reis Ventura efectuara esse mesmo percurso, tendo embarcado para Moçambique em 1934, de onde transitou para Angola, três anos depois. Deste último romance, transcrevem-se algumas passagens que retratam de um modo divertido a vocação sacerdotal da personagem adolescente:

 

"O meu nome é José da Silva Taveira e tenho alguns estudos. Cheguei mesmo a cursar Filosofia com os Padres Franciscanos do Colégio de Santo António, na cidade fronteiriça de Tuy. Eu já lhes conto como isso aconteceu."

 

(...)

 

"Entrei, muito acanhado, na pobre saleta, famosa em toda a aldeia pela sua mesa de centro e alguns móveis desirmanados que meu pai trouxera do Brasil. O sr. Padre Inocêncio lá estava, alto e encorpado, com a testa rompendo até à coroa por entre duas farripas altas de cabelos, a fitar-me com os olhos bondosos, por baixo das sobrancelhas espessas. Naquela sua voz sonora de prègador de nomeada, perguntou-me logo, sem rodeios:

– O menino quer ir para o colégio?

Colhido de surpresa, derivei para minha mãe um olhar indeciso.

– Vá, responde! – encorajou ela.

Na minha consciência infantil, entendi que me destinavam para padre. Ràpidamente, corri os olhos cobiçosos pela grande fila de botões que o austero franciscano ostentava na batina. Lembrei-me dos puxões de orelhas que tinha apanhado pela mania de tirar à braguilha das calças o material para o jogo do botão. E, no meu íntimo, concluí:

– "É furo!"

O sr. Padre Inocêncio, bem longe dos meus silenciosos cálculos, ergueu-me o queixo com dois dedos amáveis e, olhando-me com bondade, proferiu:

– É um colégio muito grande, numa cidade muito bonita. Queres ir?

Mirei-lhe novamente os botões da batina. Caramba! Eram mais de vinte, alinhados, pretos, luzidios... E, resolutamente, respondi:

– Eu quero, sim senhor."

 

 

Engrenagens Malditas (1964), capa de António Lino (1914-1996).

 

 

A propósito da controvérsia que envolveu a atribuição do prémio do SPN em 1934, transcreve-se um excerto da entrevista que Reis Ventura concedeu ao jornal "a província de Angola" em 10 de Junho de 1970:

 

"– Sabemos que ganhou o Prémio Antero de Quental em concorrência com Fernando Pessoa...

– Não é verdade! E sinto-me envergonhado sempre que se fala nisso. Aconteceu apenas que a "Mensagem" de Fernando Pessoa, apresentada como "a Romaria", ao primeiro concurso literário do Secretariado da Propaganda Nacional, em 1934, não tinha o mínimo de cem páginas, exigido pelo Regulamento para as obras concorrentes ao Prémio Antero de Quental. Mas, ao atribuir-lhe o Segundo Prémio (apenas para respeitar a letra do Regulamento), o Júri proclamou o valor excepcional da "Mensagem" e declarou equiparados  os dois prémios da Poesia. Perante tão clara atitude, até eu, que era então ainda um garoto cheio de pequenas vaidades, compreendi que o Primeiro Prémio de Poesia, em 1934, estava conferido, de direito e de facto, a uma obra de génio, perante a qual os meus versinhos de rapaz nem sequer existem."

 

Estas considerações tinham sido já consubstanciadas estrutural e conceptualmente em A Grei (1941), obra que em plena guerra colonial ressurgiu com o título Soldado Que Vais À Guerra (1964). Nesta reedição ligeiramente modificada, Reis Ventura passou a apresentar como composições introdutórias quatro poemas que anteriormente surgiam no final do livro e cujos títulos e conceitos são obviamente evocativos da Mensagem – Viriato, Aljubarrota, O Sonho do Infante, 1640.

 

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