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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

08.12.21

Modernos Poetas Cabo-Verdianos (I)


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Jaime de Figueiredo (1905-1974; selecção e apresentação), Modernos Poetas Cabo-Verdianos (1961).

 

Bibliotecário conservador da Biblioteca Municipal da Praia, na ilha de Santiago, para além de artista plástico, crítico, dramaturgo e ensaísta, Jaime de Figueiredo organizou esta antologia, considerada como a primeira da poesia cabo-verdiana.

 

Na introdução a esta colectânea, que reproduz alguma da produção poética de vinte autores, Jaime de Figueiredo estabelece três períodos para a poesia cabo-verdiana do século XX – o primeiro associado à geração da revista Claridade (1936), com autores nascidos entre 1902 e 1907, o segundo associado à geração da folha de letras Certeza (1944), com autores nascidos entre 1915 e 1920, e o último associado ao Suplemento Cultural (1958) e às publicações suas contemporâneas, com autores nascidos depois de 1925.

 

O critério seguido neste artigo, para a reprodução prioritária de algumas das poesias deste volume, prende-se apenas com a decisão de divulgar em primeiro lugar a obra de poetas ainda não referidos neste espaço, ficando a obra dos restantes para publicação posterior.

 

Assim, reproduzem-se agora dois poemas, o primeiro, Momento, de Jorge Barbosa (1902-1971), o segundo, Liberdade, de Pedro Corsino Azevedo (1905-1942), respeitando a cronologia de nascimento dos autores.

 

MOMENTO

 

Quem aqui não sentiu

esta nossa

fininha melancolia?

 

Não a do tédio

desesperante e doentia.

Não a nostálgica 

nem a cismadora.

 

Esta nossa

fininha melancolia

que vem não sei de onde.

Um pouco talvez 

das horas solitárias

passando sobre a ilha

ou da música 

do mar defronte

entoando

uma canção rumorosa

musicada com os ecos do mundo. 

 

Quem aqui não sentiu

esta nossa

fininha melancolia?

a que suspende inesperadamente

um riso começado

e deixa um travor de repente

no meio da nossa alegria

dentro do nosso coração,

a que traz à nossa conversa

qualquer palavra triste sem motivo?

 

Melancolia que não existe quase

porque é um instante apenas

um momento qualquer.

 

LIBERDADE

 

Olho-me a rir

espantado de me não conhecer.

 

Menino traquinas

que caiu no poço

e envelheceu lá dentro

não posso conceber

o que vêem as meninas

dos meus olhos

depois que sou livre.

 

Abrolhos são flores,

amores, vida.

O que é a magia da sombra!...

 

Agora já posso gritar:

Livre! Livre!

 

Tapei o poço da morte, a cantar.

 

© Blog da Rua Nove

18.10.20

Amadeu Ferreira - Um Dia de 12 Horas


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Amadeu Ferreira (1925-2002), Um Dia de 12 Horas (1966).

Ilustração da capa de José Garcês (1928-2020).

 

A presente obra foi galardoada com o prémio de novelística Fernão Mendes Pinto. No âmbito da ficção, Amadeu Ferreira já havia publicado o volume de contos Catana, Canhangulo e Arma Fina (1964) e viria a publicar depois o romance As Árvores Reverentes do Congo (1967).

 

Militar de carreira, o piloto-aviador Amadeu José Ferreira, já como coronel, foi comandante da base aérea de Sintra (1968-1969) e secretário-geral da Comissão Portuguesa de História Militar (1990-1993), entre vários outros cargos que desempenhou.

 

A narrativa deste romance evoca os trágicos acontecimentos ocorridos em Angola a 15 de Março de 1961, embora a chacina dos colonos portugueses e daqueles que lhes eram fiéis não surja como vector único ou central, sequer, da obra. Obviamente, sendo esta uma obra visada pela censura, nada refere sobre as subsequentes acções militares de retaliação, como a de 27 de Abril do mesmo ano.

 

Recorrendo a um processo parcial e verosimilmente autobiográfico, o enredo desenvolve-se ao longo de quatro partes e dezoito capítulos, apresentando um protagonista oriundo de Trás-os-Montes e aviador, como o autor, que, já em Angola, recorda a sua infância e adolescência no ambiente transmontano. 

 

A primeira parte da obra, onde se inscrevem estas rememorações, apresenta ainda um conjunto de várias reflexões sobre o indivíduo, a ética e as questões políticas, administrativas e sociais de Angola, bem como sobre o papel dos americanos na política mundial e na acção colonial.

 

A segunda parte, de uma forma surpreendente, apresenta uma narrativa na segunda pessoa para traduzir a familiaridade do protagonista com um colono branco chacinado e relatar aspectos da própria chacina.

 

De uma forma mais breve, a terceira parte apresenta algumas das consequências dos massacres daquele dia para a vida dos colonos brancos, mas também para os negros que inocentemente são perseguidos e acusados.

 

A quarta parte relata o regresso do protagonista à sua terra natal, de uma forma que deixa em aberto um possível regresso a Angola.

 

Da segunda parte desta obra transcrevem-se os últimos parágrafos do capítulo 10:

 

"  «Não te admires pois do modo como te falo, mas devia-te esta explicação. A despeito da distância toda na vertical que me separa de ti, deste isolamento que me rodeia enquanto distingo a fazenda traçada com trabalho e amor, compreendo bem os conflitos humanos do teu mundo de ontem e de hoje.

 

«Sabes?!... Estas coisas refinam quando se meditam; mais quando se apalpam e observam de perto. E este púlpito é particularmente propício à meditação. Ninguém nos estorva, ninguém nos distrai, pode dedicar-se todo o coração e parte do cérebro aos problemas do mundo. Os conflitos do homem, que aqui não chegam em ruído, surgem-me com mais clareza e despidos da ganga que lhes pode desvirtuar a verdadeira essência e natureza.

 

«Com estes créditos positivos, não posso louvar-te por tudo que fazias na fazenda. Mas antes de atirar-te a primeira pedra procurei entender que dentro da tua realidade não foste pior que todos os outros de todas as épocas, mas apenas igual e, em muitos sentidos, melhor. E numa sociedade não se condena um homem igual a todos os outros.

 

«Foste um pioneiro e um embaixador; à tua maneira, como já disse. Mas quem te censura pensa também que quando se querem embaixadores por conta alheia, se lhes paga e se lhes ensina o como, o quando e o porquê do que se lhes exige? Não pensam nisso, mas estranham agora não lhes teres defendido o nome, o não inculcares nos trabalhadores a noção que eles próprios têm de Pátria e convivência social, o não teres elevado como eles desejariam o nível dos homens que te eram confiados para os trabalhos agrícolas ou domésticos. A verdade justa e real só pode pôr-se assim: que crédito tínhamos nós, Emílio, que tu, apesar de tudo, dos teus defeitos ou prepotências, não retribuísses com juros também acima dos legalmente estabelecidos? Que nos devias tu, Emílio?...

 

«Por isso digo para não te mortificares. De resto, não sabes mas vou esclarecer-te: todos os vizinhos em redor, espalhados por esta área imensa que posso enxergar da vertical da tua fazenda, estão como tu, amarrados como porcos no banco da matança. Aos bons e compassivos de nada lhes valeu o coração, e aos maus e refinados o fel não agravou os sofrimentos. O cataclismo foi gadanha que cortou cerce o trigo todo, granado ou chocho, e também o joio que na época própria escapou às mondadeiras. E isto pelo facto simples e verificado de que nenhum João do Congo procurou motivos e invocou razões válidas para o que foi feito.

 

«Tu não sabes, mas o que está a dar-se contigo passa-se à mesma hora por léguas e léguas. Não te mortifiques, Emílio, tu não eras santo, eras apenas homem.

 

«Eu digo eras, porque quase o não és. Se tirarmos esse sopro, teòricamente [sic] a animar-te ainda, sabes o que me pareces? A imagem, dura, choca e arrepia, mas a ti pouco impressiona já e eu tenho-te falado com franqueza que quero levar até ao fim. No mundo material, Emílio, a figura justa, fiel, da coisa a que te reduziram é o bucho. Lembras-te?... aquele enchido de carne e ossos a esmo, ensacados num estômago de porco?... És um bucho de ossos esmigalhados, carne picada, vísceras moídas, no saco que é a tua pele cheia de laivos de sangue pisado.

 

«À medida que as chufas, as troças e as pauladas cresceram, a dor física foi-se esbatendo na sucessividade dos golpes, e o tormento de alma, dos gritos abafados da tua mulher, foi-se embotando na semi-inconsciência que te ia invadindo. Começaste a ter uma boa desculpa para largar a vida e já não compreendias porque adiavam o golpe final. Não há centímetro quadrado que esteja sem mossa. Todos quiseram vingar a sua afronta, limpar a sua ofensa, desforçar o seu despeito recalcado, ou pelo menos afirmar uma posição com crédito a haver, agora que te viam vencido e amarrotado. Mas eles nem essa esperança última dum fim próximo te deixaram, quando a vida passou a fardo mais pesado que a morte. Foi a um bucho vivo que eles conscientemente te quiseram reduzir, e conseguiram-no. 

 

«Já não vês, Emílio, mas isso agora é um bem. Se visses, custava-te mais. A casa está esventrada, os trastes estraçalhados, o gerador, na barragem que era o teu orgulho, está desfeito. Os corpos de alguns que mais fielmente te serviram estão aqui e ali, no sítio onde foram acabando. Mas o corpo de Emília não está. A tua criada, escolhida por simpatia onomástica, tal como o João também sabia. Emília, sereia negra de mil fascinações, sabia que este teu dia não chegaria ao fim. Lembras-te que só ficou descansada quando se assegurou do teu regresso à fazenda na tarde seguinte, quando viu que a tua ausência não ia além de algumas horas?

 

«Os seus receios, Emílio, nada tinham com os azares de ante-ontem [sic] como julgaste por ser um dia 13, mas com a possibilidade de escapares ao que sabia esperar-te hoje, um dia 15, número sem história nas tradições do bruxedo e da superstição.

 

«E tenho outra prova, tenho outra prova de que ela sabia, Emílio, e se valeu da sua habilidade maior para te arranjar um parceiro de açougue, mas não vale a pena mostrar-ta.

 

«Quanto à tua mulher, aguentou uns tantos, mas depois... Não, neste assunto não quero falar; sei que não vês, mas ainda ouves; pouco, mas ouves, e se não te tenho poupado a desgostos, na franqueza que venho usando, neste ponto quero fazê-lo.

 

«Emílio, volto a falar-te com o à-vontade [sic] que apenas pus de lado ao referir-me à tua mulher. À medida que te foste tornando nessa miséria chagada que repugna e revolta os sentidos, estás a sublimar-te, e chega cá acima, a este ambiente asséptico onde o bafo dos ódios não persiste, a verdade justa daquilo que estás quase a ser. De nada te servirá essa lágrima grossa que soltou agora e pouco valerá o que vou dizer, até porque já não ouves talvez, mas eu entendo-te, Emílio, como irmão e como homem. Não por compaixão, não por lisonja, nem sequer por acordo total como viste, mas porque essa ausência de esperança que te deixaram neste segundo dia de menos de vinte e quatro horas foi penitência a absolver-te de todas as culpas que porventura possam assacar-te.

 

«Emílio?... Emílio?... Já não ouves?... Não, já não ouves, nem sentes.

 

«No meu mundo, Emílio, no meu mundo desta hora, com o Sol por testemunha e as nuvens por vizinhas, és agora o símbolo grande e trágico de todo o ser racional que neste dia e nesta terra, ensopada de ti, esvaziaram de esperança. Mas no mundo da matéria és finalmente um bucho sem alma, como eles queriam, ensacado na pele avergoada e repelente, a que as cordas, tensas, mantêm ainda a forma e seguram de encontro ao tronco grande da mulemba frondosa que domina o terreiro.» "

 

© Blog da Rua Nove

21.10.16

Castro Soromenho - A Maravilhosa Viagem


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Castro Soromenho (1910-1968), A Maravilhosa Viagem (1961).

 

 

Da Primeira Parte, Capítulo Quarto, transcrevem-se três parágrafos:

 

"Vieram do Bailundo distante os primeiros homens que viveram nestas terras com o nome tribal de Sambos. Mas há mais de dois séculos que aqui vieram parar os Nhembas. O seu chefe edificou cubatas no alto de um outeiro, no meio de vasta planície cruzada por rios e riachos. Eram oleiros e viviam da sua indústria, mas também criavam gado e lavravam terras ribeirinhas. Um dia, guerreiros Bailundos, fugidos à ira do seu soba que, mesmo depois de lhes ter morto o chefe, não cessava de os perseguir, pararam no sopé do outeiro e intimaram os Nhembas a abandonarem a aldeia, porque esse lugar só podia ser morada de fidalgos, deles que eram filhos do chefe Sambo, morto na guerra. Medrosos, os pacíficos Nhembas desceram o monte e nesse dia os atabaques dos filhos do Sambo tocaram aos ventos altos da aldeia abandonada, e o povo fugitivo dançou o batuque dos mortos, para que a alma de sambo descansasse em paz.

 

Eram seis os filhos do soba Sambo, cinco rapazes, caçadores de elefantes e hipopótamos, e a moça Alemba, que os irmãos escolheram para rainha. Ali, ela fundou a libata e deu ao país conquistado sem sangue o nome de seu pai Sambo. Tempos depois, Alemba casou com um caçador Ganguela que ousara levantar o fogo das caçadas na planície do Sambos e depois agasalhara na aldeia do outeiro para nunca mais de lá sair, preso nos braços da dona da terra. Seguindo os passos desse jovem caçador, muitos Ganguelas seus amigos vieram morar no país do Sambo e nunca mais regressaram à terra de além Cubango. De outra banda, vieram guerreiros Galangues que trouxeram de presente a Alemba punhados de terra branca, que «é o símbolo da vida e preserva da morte». Ganguelas, Galangues e Sambos cruzaram-se entre si.

 

Alemba morreu de velha, mas ficou viva para sempre na memória e na saudade do seu povo. E treze sobas reinaram no país que ela fundou. Os filhos do último chefe foram educados numa missão católica e ganharam como baptismo nomes europeus. Mas não esqueceram os velhos deuses africanos. E nos momentos de desgraça, é para eles que se voltam, implorando aos «espíritos bons» que intercedam em seu favor junto desses deuses. E sempre que o soba encontra na libata uma serpente, o povo dá-se em sacrifício aos deuses, porque é a alma de Alemba que voltou à terra no corpo da serpente para exigir sacrifícios humanos. Então, os Sambos adoram a serpente. Corre o sangue do sacrificado e a serpente desaparece – e a alma de Alemba regressa ao seu mundo misterioso... O povo baila doidamente nos fadáros dos batuques e cantam-se velhas canções em louvor de Alemba, que é a alma do próprio povo... E a paz desce de novo sobre a terra que recebeu o sacrifício de sangue."

 

© Blog da Rua Nove

 

31.05.15

Cândido da Velha - Equador


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Cândido da Velha (Cândido Manuel de Oliveira da Velha, n. 1933), Equador (1961).

 

Tendo nascido em Ílhavo, Cândido da Velha rumou a Luanda em 1957, data a partir da qual colaborou em diversos jornais angolanos, como A Província de Angola, ABC, Jornal de Angola, Notícias de Angola, e revistas, como Cultura. Colaborou ainda na revista brasileira Brasília do Sul. Anteriormente, impulsionara já, em Lisboa, a publicação dos cadernos culturais Atitude. 

 

Na Colecção Imbondeiro havia sido co-autor, com Luís Ataíde da Silva Banazol (n. 1919), do volume número 8, publicado em 1960, onde surgiu o seu poema Quero-te Intangível, África. No presente volume, que ostenta no interior uma ilustração de Hipólito Andrade (1933-2015), anuncia-se a existência de dois livros inéditos de Cândido da Velha – O Menino de Mãos Brancas e Poemas da Hora Diferente, de que não foi possível encontrar qualquer registo ulterior com estes títulos.

 

Posteriormente, o autor publicou As Idades de Pedra (poemas, 1969), Corporália (1972), Signo do Caranguejo (1972), Memória Breve de uma Cidade (1988), Navio Dentro do Mapa (1994) e Lugares do Vento Suão – Baixo Alentejo, 1976-1986 (1998), tendo também organizado uma Antologia de Contos - 31 Autores (1997).

 

Do conto O Homem e a Paisagem transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Tudo se fora do lugar maldito. Só a terra é que ficara. Ele também. Como abandoná-la se fazia parte integrante de si  mesmo? Vira-a ficar verde  e amarela, ora alagada, intransitável, ou mudada em cratera perdida do olhar de Deus. Mas afeiçoara-se «àquilo», à medida que os anos iam pesando na balança do séculos. Sofria tão desesperadamente como o plaino abandonado, estéril. Também ele se sentia «improdutivo». Jerónimo e os Gambos tinham feito família. Por isso não debandara com os outros. E também por uma voz íntima que, pela primeira vez, vinha à superfície como um ser, tangível, clara, perturbadora...

 

Num acto instintivo cuspiu nas mãos, esfregou-as depois uma na outra. Forcejou por desencravar a enxada. Deitou-a ao ombro e prosseguiu trôpego dos anos e das derrocadas. As árvores suplicavam clemência, contraídas para cima.

 

A porta chiou. Deixou-se cair pesadamente no banco; fincou os cotovelos nos joelhos e apoiou a fronte nas mãos. Um insecto entrou pela janela, zumbiu e abateu-se a pouca distância. Distraído, absorveu-se na contemplação do bicho que rodopiava aflitivamente, na semi-obscuridade do aposento, tentando recomeçar o voo. Em verdade não era o moscardo agonizante que ele via. Era a sua própria existência que se escoava como um frémito de asas quebradas.

 

A seca tornara-se num incidente banal. Também a vida e a morte deixaram de ter significado. Tinha fechado os olhos ao velho Tomaz, sem «pensar» nele, tal como fizera ao cachorro buliçoso que se disparava direito ao infinito para regressar daí a pouco, a excitação gasta, feliz da corrida e da liberdade. Não os depusera longe. Semeara-os perto da cubata, ali no quintal, debaixo dos magros ramos da acácia.

 

Havia ainda um problema: «não ter um vizinho a talhar-lhe a cova».

 

Bem pressentia que a estiagem seria a derradeira para ele. «Desapareces aos poucos, sabes? Este cangalho de ossos já não te deve preocupar» – monologava –. «Viste como a terra morre? É mesmo! Depois as chuvas fartam tudo e as plantas encolhidas nas raízes estremecem, constipadas, e espirram para fora. É o que farás, velho.» Ergueu-se para desentorpecer as pernas. O corpo do insecto era já um ponto negro familiar. Empurrou-o ao de leve com o pé e voltou a sentar-se. Reatou o fio dos sentimentos. – «É isso.... Hás-de dar um espirro monstro até a lama cobrir-se de montões exuberantes de capim.»

 

Pensava assim, pois recordava-se da vegetação, a crescer com mais furor, nos locais onde escondera das aves Tomaz e o cão.

 

Levantou-se e explorou o armário. À parte umas teias de aranha, duas moscas aprisionadas nos fios traiçoeiros, poderia  considerar-se «devoluto». De costas para o móvel, fixou os olhos na porta numa «esperança» antecipadamente malograda.

 

Nenhum auxílio humano à sua espera. Nenhuma voz de gente para a sua solidão.

 

Contrariara o destino, vendo todo o mundo desaparecer, assistindo àquele êxodo quase irreal que parecia desintegrar-se na luz excessiva do meio-dia. E o destino era partir com eles; aspirar o pó das picadas, tombar, por vezes, e para sempre, nas margens dos rios, depois de muitas léguas arrastadas em desespero e renúncia..."

 

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30.04.15

Reis Ventura - Cidade e Muceque


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  Capa de Haydée Moniz (datas desconhecidas).

 

 

Reis Ventura (1910-1988), Cidade e Muceque (1970).

 

Apresentando sete contos – O Homem das Sete Caras, Um Negócio bem Montado, Gente do Subúrbio, A Estalagem do Leão, O Cadillac, O Velho Bernardo, Tschimolonga, Carabina de Precisão e Olhos Assustados, este volume retoma ficcionalmente a temática dos trágicos acontecimentos de 1961 que o autor já havia tratado em Sangue no Capim (1962).

 

Esta abordagem é, aliás, explicitada nos textos que compõem as badanas, onde fica também evidente o compromisso ideológico do autor, a sua defesa do regime, e o orgulho perante a dinâmica civilizacional portuguesa implementada em Angola, como se constata nas seguintes passagens:

 

"A Luanda destes contos é a da década de sessenta, que já vai no meio milhão de habitantes, e já ergue prédios com mais de vinte andares, e já nos mostra um tráfego automóvel semelhante ao de Lisboa ou Porto, e já por vezes reune, na placa de estacionamento do seu aeroporto, quatro ou cinco grandes jactos intercontinentais. Esta é a Luanda de hoje, toda ela uma orgulhosa resposta ao desafio do terrorismo.

 

Por isso mesmo, insensìvelmente, sem um plano preconcebido nem uma prévia selecção de assuntos, todos os contos deste livro, menos um, são directa ou indirectamente relacionados com os acontecimentos e consequências da agressão cometida contra Angola."

 

Apesar de tudo, Reis Ventura não deixa de manifestar ainda uma certa preocupação humanitária e de preconizar uma particular ideia de convívio e irmandade anti-racista, particularmente no conto Olhos Assustados, onde se evocam alguns contornos das chacinas de 1961 e a variante de um episódio já narrado em Sangue no Capim.

 

Já nos contos O Velho Bernardo e Tschimolonga surgem retratos da aculturação dos autóctones de raça negra, que se assumem como contraponto aos denominados matumbos, por um lado, e, por outro, aos terroristas.

 

Mas é no conto Carabina de Precisão, de que se transcrevem abaixo alguns parágrafos, que se desenvolve a mais complexa e expressiva tensão interior em uma única personagem, através da narrativa de uma situação de combate, contexto que até então apenas tinha tido equivalente, na literatura colonial portuguesa deste período, em Aquelas Longas Horas (1968), de Manuel Barão da Cunha. 

 

"Assim se agitava na teia complicada dos seus amargos pensamentos, quando reparou que o combate já durava tempo demais. Normalmente ele dava o primeiro tiro, sempre que a patrulha portuguesa vinha ao nível de pelotão. O bando disparava então todas as suas armas e fugia logo, pois todos sabiam que os soldados portugueses eram rápidos e implacáveis na resposta.

 

Mas, agora, o combate ainda durava. E ao crepitar das metralhadoras, juntava-se, de vez em quando, o sopro ardente das bazucadas.

 

Com o seu instinto de bom soldado, o homem da carabina de precisão regressou de repente à consciência do perigo circundante. Apurou o olhar em redondo e apercebeu-se de que algo de especial estava a acontecer. O seu bando não fugira porque estava cercado. Os emboscados afinal eram eles.

 

Com infinita cautela, passando de ramo em ramo com a silenciosa agilidade dum gato selvagem, espreitou para todos os lados, com aquela agudeza visual que era uma das suas melhores qualidades de combatente. E teve um sobressalto ao concluir que havia, no cerco aos terroristas, mais de um pelotão. Sentiu na água dos olhos e no tutano dos ossos o álgido frio do medo à morte. Porque ele também estava dentro do cerco e sabia que os portugueses o procuravam há longos meses, para lhe cobrar o preço dos alferes abatidos. E verificava que ele e o seu bando, cujo comando aliaz lhe não pertencia, (os grandes cabecilhas do terrorismo não estavam bem seguros dele, porque ninguém confia muito num desertor, não é?...) – verificava agora que ele e o seu bando tinham de se haver com dois pelotões, talvez com uma companhia inteira.

 

Então havia, pelo menos, mais dois alferes.

 

Retezou os músculos, como a hiena que prepara o salto, e pôs-se à procura dos oficiais. Da sua posição elevada pode confirmar que um segundo pelotão avançava do lado contrário à picada, vindo do interior da mata. E pronto! – lá começava o fogo de morteiro...

 

Compreendeu que o seu bando estava fechado num círculo de fogo. E não se esquecia de que a tropa portuguesa sabia fazer as coisas... Se fosse o comandante do bando, teria ordenado o «salve-se quem puder!» Mas não era o comandante do bando. Nunca lhe tinham confiado o comando dum grupo de combate. Era apenas um atirador de pontaria infalível, com uma carabina de precisão..."

 

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31.01.15

Maria Perpétua Candeias da Silva - O Homem Enfeitiçado


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Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas), O Homem Enfeitiçado (1961).

 

Nascida na região de Caconda, Angola, Maria Perpétua Candeias da Silva, recebeu em 1949 uma distinção pelo seu conto Nihova, num concurso organizado pela Câmara Municipal de Nova Lisboa (actual Huambo).

 

Posteriormente escreveu os contos A Mulher de Duas Cores e Falsos Trilhos, que haveriam de vir a ser publicados em 1959, num só volume que conjuga esses dois títulos e foi agraciado com o prémio Fialho de Almeida da Câmara Municipal de Sá da Bandeira (actual Lubango). Publicou ainda o conto Escrava, na antologia Novos Contos d'África (1962), o volume Navionga: Filha de Branco (1966) e o conto Ka-tenda, Morto-vivo, na antologia Contos Portugueses do Ultramar (1969).

 

Acerca de Navionga, um parecer da censura prévia para o programa Horizonte: Semanário de Letras e Artes, da Emissora Nacional, de 17 de Agosto de 1967, programa que era coordenado por Amândio César (1921-1987), refere: "O livro apresentado para ilustrar a rubrica da pag. 5 [O Livro da Semana], cheio de crendices, será de divulgar?"

 

A exemplo do que acontecia com outras publicações de literatura colonial, também o conto O Homem Enfeitiçado é complementado com um glossário de 12 vocábulos – êpuita, kefècô, lombi, lonamba, ngôma, ossolo, tchimbari, tchimbombô, tchissanga, vigundo, virombô, vitambero, que antecedem a seguinte consideração: "Aos diálogos travados em umbundo «língua que conheço bastante bem», interpretando-os para português, procuro sempre dar-lhes sentido exacto nunca fugindo à pitoresca fraseologia da língua. O mesmo acontece com os monólogos."

 

Já neste conto a autora abordava temas que haveriam de levar à questão colocada pelo censor de Navionga, encerrando o glossário e o volume com a seguinte observação: "O feitiço da cabaça, segundo os nativos, é a mais terrível magia que a raça umbundo conhece. O Tchimbundo (feiticeiro), coloca água límpida numa grande cabaça e nela deita uns pós. Espera, e momentos depois faz umas orações e vai evocando a imagem de qualquer pessoa a quem deseja fazer mal. Esta acaba por se reflectir na água e é espetada com uma agulha ou qualquer instrumento de ponta fina em qualquer dos sítios onde se alojam os órgãos. Se for no coração, a pessoa tem morte repentina. Se for no estômago, fígado, etc., terá doença incurável em qualquer daqueles órfãos [sic] e desse mal virá a falecer."

 

O enredo deste conto desenvolve-se em torno do drama interior que Salupassa alimenta a partir da sua condição de tchimbari – um negro educado nos costumes dos brancos. Um negro que não passara pelo ritual do ekuendgê (circuncisão) e que perante homens e mulheres da sua raça nunca seria um verdadeiro homem. Antes seria sempre um homem enfeitiçado, e um marginal, pois não tinha sido purificado nem fortalecido pelo ritual.

 

Transcrevem-se de seguida alguns parágrafos de O Homem Enfeitiçado:

 

"Acontecia-lhe, já, passar noites seguidas sem dormir e, sem ânimo, faltava ao serviço e faltava a Navita! O diabo era o que vinha depois: ralhos da patroa por julgar que ele faltava por motivo de bebedeira, e ralhos de Navita que o julgava de diversas maneiras, conforme lhe dava na cabeça. Até adquirira o costume de, por desconfiança, quando ele lhe faltava, sair de casa dela, que ainda ficava longe, e aparecer-lhe na cubata. E, se o encontrava estendido na esteira, logo se aconchegava ao lado dele, pondo-se a acariciá-lo e a apalpá-lo. E se ele, esquecido da sua desgraça de homem, acabasse por lhe retribuir ardorosamente aqueles afagos... logo Navita, embriagada de desejo, se principiava a despir, ficando-lhe nua nos braços.

 

Então é que eram elas: havia-se sentido na terra do mel para de lá sair cheio de dor e vergonha e dar entrada numa outra terra amarga de sal e gindungo! Pobre dele! No momento mais apetecido, largava brutalmente Navita e deitava a fugir como «bambi» à frente do caçador negro e enfiava pela floresta, escondendo-se onde a sua rapariga o não pudesse ver! Ali, dava largas à sua dor: mordia-se raivosamente, chorando como qualquer mulher. Como desejava sinceramente a morte naqueles momentos! E como amaldiçoava a hora em que nascera!

 

E quando voltava a ver Navita, seguia-se uma cena tremenda: se ele ia vê-la à casa onde ela habitava com a irmã e o cunhado, uma casa de adobe coberta de capim, a rapariga, se o bispava, corria a fechar-se dentro de casa e só saía depois de muito rogada a sua presença. Mas quantas vezes não aparecia como um redemoinho de vento?: pondo-se a andar de roda dele como uma doida e a largar da boca grandes palavrões:

 

– Que vens cá fazer, homem capado? Se não consegues fazer nada a uma mulher, por que não me deixas em paz?

 

Depois parava, começava a olhá-lo fixamente. Deitava-lhe a língua de fora e, tornando a caminhar de roda dele, Salupassa, e fazendo gestos obscenos com as mãos, voltava a falar:

 

– Por que não me deixas só? Deixa-me e nunca mais cá venhas! Eu quero um homem que seja homem de verdade! Todo aquele que nasce tem direito ao mel que a vida dá. E eu quero desse mel e tu não prestas para o dar. Vai-te embora daqui, anda, sai, estás à espera de quê? – e cada vez mais zangada, enfurecida, já, continuava: – Vai-te embora e que eu nunca mais te veja. Ânus podre da tua mãe, ânus podre do teu pai, estúpida toupeira. Vai-te embora – e empurrando-o com força: – Vai-te que cheiras mesmo a carne podre e a tua roupa cheira a mijo de rato...

 

Ele nada dizia, não tinha mesmo forças para dizer nada. Olhava-a e parecia-lhe ver na sua frente uma Navita diferente, uma peste em vez de uma mulher, em vez da jovem mulher a quem tanto queria. Navita ficava com as feições decompostas, dos lábios principiava a sair-lhe uma espuma esbranquiçada e os olhos pareciam inchar dentro das órbitos [sic]. Ficava quase como os diabos que os livros das igrejas dos brancos mostravam. E ele, cheio de nojo daquela rapariga e cheio de raiva contra si próprio, virava costas e, de cabeça baixa, ia direito à sua cubata."

 

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01.05.14

Castro Soromenho - Terra Morta (II)


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Castro Soromenho (1910-1968), Terra Morta (1961).

 

Conforme anteriormente referido (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/15623.html), o romance Terra Morta surgira mencionado com a nota "Não pode entrar no mercado" na lista de obras deste autor publicada no livro Calenga (1945).

 

Com efeito, a Editorial Inquérito, que viria a editar deste autor os volumes Calenga e Homens sem Caminho (1946), tentara publicar e distribuir logo em 1944 aquele romance.

 

O texto foi distribuído para leitura pela Direcção dos Serviços de Censura em 5 de Janeiro de 1945, recebido pelo censor que emitiu o parecer, o então major Ávila Madruga (Manuel José Ávila Madruga, c. 1894- c. 1969), em 19 de Fevereiro e proibido por despacho de 18 de Abril daquele ano.

 

Transcreve-se de seguida, integralmente, o parecer, constante do relatório 2805, subscrito pelo censor:

 

"Romance da vida africana no interior de Angola. Com episódios de pouco interêsse, descreve-se a vida dos pequenos funcionários civis nos postos administrativos e a vida nas aldeias indigenas do interior da colónia. Em tôdas as narrações transparece a existência precária e pouco dignificante dos pequenos funcionários e a miséria de vida primitiva e de abandono dos indigenas. Mostra-se a penuria da população negra, explorada e massacrada pelos brancos que só têm a única preocupação de cobrar impostos e recrutar homens para trabalhos nas minas, arruinando as povoações e reduzindo cada vez mais a maior desgraça a existência dos pobres indigenas.

 

Vê-se a vida ociosa e viciosa dos funcionários, os abusos e despotismo exercido sôbre os negros. 

 

Demonstra-se a escravatura exercida por brancos portugueses e evidencia-se a miséria dos velhos colonos que lutam sem auxilio a par dos negros que definham e emigram para outras colónias onde lhes dão terras a [sic] sementes sem terem de pagar imposto.

 

Pela péssima propaganda da nossa administração colonial, da triste vida dos nossos funcionários e do abandono e exploração, por nós, dos negros, com que, ao ler-se êste livro, se fica, sou de opinião que não deve ser autorizada a publicação dêste romance por deletério e contrário à nossa acção colonial."

 

Uma cópia digital deste relatório pode ser consultada aqui: http://ephemerajpp.com/2011/12/12/censura-relatorio-no-2805-18-de-abril-de-1945-relativo-a-terra-morta-de-castro-soromenho/.

 

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31.10.13

Orlando da Costa - O Signo da Ira


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Sobrecapa de Sebastião Rodrigues (1929-1997).

 

Orlando da Costa (1929-2006), O Signo da Ira (1962, 2.ª ed.).

 

Entre outras razões complementares, foi certamente devido ao activismo do autor e às suas posições políticas dissidentes, as quais haviam motivado a sua detenção pela PIDE e o seu encarceramento por três vezes no iníco da década anterior, que esta obra teve a sua circulação e distribuição suspensas.

 

Apesar disso, este livro, premiado com o prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências em 1961, ano da sua primeira edição, ainda chegou a atingir uma tiragem próxima dos dez mil exemplares.

 

Antes desta obra em prosa, Orlando da Costa tinha já publicado três volumes de poesia A Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955).

 

Posteriormente, publicou as obras Podem Chamar-me Eurídice (1964), Sem Flores nem Coroas (1971), Canto Civil (1979), A Como Estão os Cravos Hoje? (1984), Os Netos de Norton (1994), O Último Olhar de Manú Miranda (2000), e Vocações Evocações (2004).

 

A acção deste romance decorre durante a II Grande Guerra, na então denominada Índia Portuguesa. Dos vários enclaves e ilhas que constituíram o antigo império português sobreviveram, até ao século XX, Dadrá e Nagar Haveli, reintegrados na Índia em 1954, e Damão, Diu, e Goa, reintegrados precisamente em 1961.

 

A influência neo-realista não deixa de se reflectir neste romance, onde não se retrata apenas a rígida estratificação traduzida pelas castas locais – curumbins, sudras, batcarás, mas também a intromissão protagoniza neste sistema pelos expedicionários portugueses, os paclés.

 

Por entre um ambiente de opressão e miséria, motivado pela prepotência das castas superiores, mas também pelo clima e pelas condições agrícolas, surgem as personagens femininas como se fossem a última das últimas castas. Mas são estas, particularmente Coinção, que se suicida, Natrél, e Quitrú, que se assumem como opositoras ao destino e à tradição, revelando uma força interior e uma atitude de revolta que não se encontra nos homens.

 

A título de curiosidade refira-se que o recentemente reeleito presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa (n. 1961), é filho de Orlando da Costa.

 

Trancrevem-se de seguida alguns parágrafos desta obra:

 

"A idade e a miséria traçavam desde muito cedo o destino daquela gente. Quando os músculos começam a ceder, voltam os olhos para os filhos. Amarram-se a eles até onde podem, implorando ao seu trabalho de servos a subsistência das suas vidas. Não pedem mais do que estes lhes haviam pedido, quando crianças.

 

E, todos os sábados, velhos e velhas, partilhando um mesmo destino na terra da sua nascença e da sua morte, descem à cidade num lúgubre cortejo de andrajos e orações, de chereta estendida à porta dos batcarás. Sob os panos e camisas encardidas, descarnados e ressequidos, os peitos dos homens e das mulheres assemelham-se. Uma voz única eleva-se daquelas bocas sumidas e ossudas – Ômanmari... –, ecoando tristemente de porta em porta. Um punhado de arroz cai nas cheretas em troca da oração e o cortejo prossegue, arrastando-se devagar naquele ritual semanal, em que os filhos mais humildes da terra imploram aos céus altíssimos bênçãos para os seus senhores.

 

Durante seis dias da semana a mulher de Pedrú, encolhida a um canto do casebre, entre gemidos, torturada por uma doença que ninguém no povoado logrou ainda curar, e com a lucidez dos predestinados a agonizar lentamente, ganha forças para aos sábados erguer-se como uma sombra e juntar-se a custo ao caudal de velhos maltrapilhos e estropiados que, de mão estendida num gesto sem revolta, ficam remoendo com as próprias entranhas uma oração de todo o sempre...

 

«Quando chegará a sua vez?...», pensa de olhos tristes a velha Bostian. «Já não falta muito...». Com a mão encarquilhada esmaga os olhos disfarçadamente e depois passa pelos lábios secos aquele sabor a sal que fica na sua pele enrugada. «Não deve faltar muito». É sabido que ela, também, não deixará de cumprir o seu destino, o destino deles todos. Voltará, dentro em pouco, aos sábados, ao tombar da noite, vergastada pela canseira das estradas percorridas, as veias inchadas à flor da pele, a poeira e o suor coalhados nas rugas do seu corpo. Junto à cintura, aconchegados, talvez alguns punhados de arroz. «Mas agora... até para os velhos que mendigam... a vida vai mal!...» À porta dos batcarás já não lhes dão arroz. As cheretas seguras por aquelas descarnadas mãos de pedintes recolhem os poiçás que lhes vão dando de porta em porta.

 

– Não há arroz, nem para os batcarás! – dizia-se agora e era verdade.

 

– Tomem lá quatro anás. É para todos.

 

– Meia rupia. É bab Ligôr que manda dar, é para distribuir por todos.

 

Ômanmari... – e a oração de agradecimento, dita à beira dos balcões das casas, soa mais triste e trágica naquele coro de mendigos."

 

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30.08.13

Luandino Vieira - Duas Histórias de Pequenos Burgueses


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

Linóleo de Luandino Vieira (n. 1935).


Luandino Vieira (pseudónimo de  José Vieira Mateus da Graça, n. 1935), Duas Histórias de Pequenos Burgueses (1961).

 

Este conjunto de textos, publicado na Colecção Imbondeiro com um título sem qualquer relação com os dois contos apresentados – Inglês à Hora e O Sábado, As Raparigas e o Gato, apresenta duas narrativas datadas por Luandino Vieira de 2 de Julho de 1954 e 20 de Abril de 1955, respectivamente.

 

Segundo o autor, o título escolhido indiciaria "os momentos que atravessei e atravessaram os adolescentes da minha geração – melhor, da minha idade – perdidos nos quadros duma classe social cujas perspectivas já pressentiam ou sentiam ultrapassadas." Concluindo a sua introdução a este volume, Luandino Vieira declara – "O pequeno-burguês será, em breve, um animal pré-histórico."

 

Embora tal conceito remeta já para as posições que o autor haveria de desenvolver na sua obra mais célebre, Luuanda (1963), na continuidade de uma consciência idiossincrática de África com eventuais raízes num certo ideal social preconizado pelo grupo da Seara Nova e, posteriormente, pelo neo-realismo, estes contos abordam efectivamente a problemática da adolescência e da insegurança adolescente no seu relacionamento com o sexo oposto, evocando muita da temática que havia sido abordada por autores presencistas.

 

Luandino Vieira publicara até àquela data alguns dos seus textos em duas colectâneas – Contistas Angolanos (1960) e Poemas Angolanos (1961), havendo publicado anteriormente, também, o volume de contos A Cidade e a Infância (1954).

 

Residindo actualmente em Portugal, Luandino Vieira recusou em 2006 o prémio Camões, ano em que publicou o primeiro romance da anunciada trilogia De Rios Velhos e Guerrilheiros – O Livro dos Rios.

 

 

Do conto Inglês à Hora transcrevem-se os últimos parágrafos:

 

"Olhou-o. Notou um leve desprezo nos lábios dela. Mas porquê aquilo do marido? Estaria ela a fazer jogo claro, ou seria outra inconsciência?...

 

– Leia mais um bocadinho.

 

Ele recomeçou:

 

"I'm going to get out of this town" Nick said

 

"Yes" said George "That's a good thing to do"

 

Sim, o melhor é ir-me embora, senão perco a cabeça. Que quererá ela dizer com aquela conversa de marido? O meu marido... Era isso, oferecia e negava. Negava e oferecia. Era o seu jogo. Jogo um pouco perigoso porque oferecia tanto como negava.

 

– No próximo dia você tem outro conto: "The Devil and Daniel Webster".

 

Portanto, no próximo seria o Diabo... Ela olhava-o com o mesmo sorriso luminoso, trocista, cheio de sensualidade. Entreabriu os lábios, uns lábios grossos, sensuais. Fechou os olhos. Depois, abriu-os e sorriu. Ele não teve coragem... Mas talvez no próximo dia...

 

– ... "O Diabo e Daniel Webster" – disse ela.

 

Sim, o Diabo... Talvez o Diabo e Sr. Lima!

 

– Boa noite, Sr. Lima!

 

– Boa noite...

 

Os seus olhos ficaram espiando-se. Ela sorriu-lhe. Como ele ia ser feliz no estrangeiro!

 

Cá fora um negro bateu com o portão. Perto, na casa ao lado, o rádio atirava para o ar Al Martino e a sua voz de ouro...

 

"Here in my heart..."

 

Ele sumiu-se na sombra e ela ficou olhando a escuridão dos passos dele."

 

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06.04.12

Castro Soromenho - Terra Morta (I)


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Castro Soromenho (1910-1968), Terra Morta (1961).

 

Como já foi referido anteriormente, este é um romance da década de 1940 que surgia referenciado na lista bibliográfica de Calenga (1945) com a seguinte nota – "Não pode entrar no mercado". Obviamente, este facto contradiz as declarações que afirmam ter esta obra sido escrita em 1949 (cf. http://sobrecs.wordpress.com/2012/03/10/susan-a-de-oliveira-terra-morta-perspectivas-da-historiografia-literaria-e-da-historia-social-de-angola/).

 

Em 1949 surgiu efectivamente, no Brasil, a primeira edição em português desta obra, a que se seguiu em 1956 a primeira edição francesa (http://sobrecs.wordpress.com/2011/07/16/jinga/), com tradução de Violante do Canto (n. 1923) e prefácio do consagrado antropólogo e sociólogo Roger Bastide (1898-1974). Depois de publicada em Portugal pela primeira vez em 1961, esta obra teve várias reedições nas últimas três décadas.

 

A autorização de publicação deste romance em Portugal, após quase duas décadas de proibição, não deixa de ser surpreendente. Afinal, em Fevereiro desse ano começara a sublevação em Angola, tendo a obra sido acabada de imprimir em Julho de 1961. Mais, o espaço ficcional da narrativa decorre no Camaxilo, terreola da Lunda-Norte, província encravada entre a fronteira e a província de Malange, a qual, por sua vez, confinava com as três províncias onde ocorrera a sublevação – Zaire, Uíge e Quanza-Norte.

 

Tendo uma visão sobre África completamente distinta da do regime, Castro Soromenho desenvolve aqui uma narrativa desassombrada sobre a realidade angolana.

 

É assim que a desencantada vila de Camaxilo surge como um microcosmos onde a sobrevivência no presente se cruza com a nostalgia do passado e a incerteza quanto ao futuro. Brancos, pretos e mestiços, administradores, velhos colonos, cipaios, capitas, sobas e negros das senzalas movem-se à volta dos dois bairros da vila, num opressivo clima de tensão e distensão.

 

À nostalgia do passado, da abundância da borracha e do marfim para os negociantes brancos, contrapõe-se no presente a insatisfatória cultura do algodão e o declínio do comércio. Para os sobas, e a população das senzalas, a liberdade passada contrapõe-se à obrigatoriedade de pagar impostos e à obrigatoriedade de os homens prestarem um ano de serviço nas minas da companhia, aquela que viria a ser a Diamang.

 

As inundações, a fome e as mortes que perpassam pelo romance culminam simbolicamente com o incêndio do edifício da administração e a antes anunciada mudança da sede da circunscrição para Caungula. Fim de ciclo. Terra morta.

 

 

Castro Soromenho, tendo à sua direita o escritor José Cardoso Pires (1925-1998), o fundador da editora Ulisseia (1948), Joaquim Figueiredo Magalhães (1916-2008) e o escritor Manuel da Fonseca (1911-1993). (Imagem retirada de: http://sobrecs.wordpress.com/2011/09/25/o-diario-de-lisboa-na-morte-de-castro-soromenho/.)

 

Deste romance transcrevem-se alguns parágrafos sobre a época das chuvas e as inundações:

 

"O fio de água de há três meses, sumindo-se no fundo do vale sob o verde sombrio da floresta, tornou-se em pouco tempo rio caudaloso, rumorejante, cavando fundo a terra das margens e arrancando pela raiz árvores que carrega no dorso ao longo da selva para a estepe do Cuilo.

 

O homem nu não se afoitava com a sua almadia a ganhar caminho das aldeias ribeirinhas. E os bichos há muito deixaram de procurar os seus bebedoiros da quadra do cacimbo, à sombra da floresta que cobre o vale.

 

Os homens e os bichos abandonaram, medrosos, a fúria do rio. Só a floresta lhe oferece luta, obrigando-o a revolver-se no labirinto das suas árvores e a desviar-se aqui e ali das barreiras de cipós. Enfurecido, o rio atira-se contra a floresta, que o tenta apertar no leito, invade-lhe as terras sombrias, abre-lhe rasgões por onde estende os seus braços, envolvendo-a e pondo a nu raízes seculares. E segue, bramindo, para a planície que logo se lhe oferece, dando-lhe largas para se espraiar. É ali, na terra nua de horizontes desolados, que se lhe quebram as energias. A sua fúria abranda pouco a pouco, deixa-se de ouvir o seu bramido, e os despojos que ganhou, em dura luta, à floresta, vão ficando pelo caminho, na planície alagada para onde  fogem os peixes atormentados pela impetuosidade da corrente. E segue, brando, no seu leito natural, através da planície, onde as águas paradas ao longe vão enegrecendo sob as asas das aves que descem em voos rápidos para apanharem pequenos peixes.

 

Ao fundo da estepe, com uma mancha negra de floresta na linha do horizonte, o rio entra num tremedal, desaparece sob os lodos verdes e negros, com flores vermelhas, amarelas e azuis a perfumarem o céu baixo e sombrio, para surgir mais adiante, junto à floresta, por onde abre caminhos tortuosos que o levam para a boca de outro rio."

 

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