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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

16.01.25

Revista Cultura (V)


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O número 39 desta revista apresenta o conto Titia, de Gabriel Mariano (José Gabriel Lopes da Silva, 1928-2002). Num registo coloquial próximo da oralidade, esta narrativa apresenta-nos o retrato de uma viúva que abandonou Cabo Verde, onde apenas um dos três filhos permaneceu, para viver sozinha em Lisboa, sem quaisquer amigos ou confidentes a não ser José, o narrador.

 

Embora ainda não tenha sido reproduzido o conto deste autor, intitulado Resignação, publicado em 1958 no número 14 desta mesma revista, número já aqui abordado, transcrevem-se de seguida os primeiros parágrafos de Titia, sem mais informações adicionais, uma vez que já foram anteriormente referidos alguns dados bio-bibliográficos sobre o escritor (https://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html):

 

"Titia nem teve paciência... Recado num dia, bilhete no outro... Caramba! Nem que fosse sangria desatada! É preciso compreenderem que eu nem sequer sou parente dela. Sim senhores... Nem filho, nem sobrinho, nem primo, nem nada. Chamo-lhe Titia por amizade.

 

Titia não é má pessoa, não. Só que de vez em quando tem suas rabujas... Hoje os seus filhos estão longe. Ela vive cá em Lisboa. Viver «cheio de buracos vazios» porque «dinheiro é pouco e velhice ingrata»... Veio para aqui com destino à Argentina. Zulmira, a filha mais velha, vive lá. Mas depois levantaram-se impedimentos, «assoprou aquele ventinho que tem de pegar toda a criatura sem sorte» e ela não seguiu. Foi resolvido que ela ficasse. Voltar para Cabo Verde era asneira... Nhônhô, o que está em Moçambique, foi de opinião que mais vale viver mal em Lisboa do que viver bem em S. Vicente. Sim, porque Titia já viveu bem... «Quem a visse hoje em dia com o seu balaio de compras debaixo do braço não dizia que estava ali uma quintanista, e das antigas...» Titia viveu bem enquanto o marido foi vivo. Negociante de baia. Ela mesma fazia os bolos para vender na Pracinha do Liceu. Foi assim que compraram a sua casinha no Lombo-de-Trás e puderam educar os filhos. Nhônhô tirou o sétimo ano e concorreu para Moçambique. Zulmira também estudou. Essa é que embarcou para a Argentina. Lela não quis estudar. Fez o terceiro ano e empregou-se na companhia Madeira. Parodista e mulherengo dos bons... Titia às vezes lastimava-se de Lela não ter o 7.º como Nhônhô.

 

– O que tu queres é esta vidinha de cachorro vadio...

 

Lela ria, ria e não dizia nada. O riso de Lela é sonoro e sacudido.

 

Pois, para Titia o bom tempo durou enquanto durou o marido. Homem é que é tecto de uma casa, já se vê. Depois começou a dispersão. Nhônhô casou, Zulmira foi para a Argentina e Lela tirou uma rapariga de casa. Que é que Titia ia fazer sòzinha na casa vazia? Sim. Que é? Foi então que ela resolveu embarcar também. Aqui em Lisboa aguentava-se com o dinheirinho que os filhos lhe mandavam. Filhos... vírgula... Só Nhônhô lá de Moçambique achava jazigo de lhe mandar qualquer coisa. Não era muito, já se sabe, pois, como vocês calculam, um homem casado tem de olhar para o futuro da mulher e dos filhos. Quanto aos outros Zulmira de vez em quando mandava roupas usadas e Lela só escrevia para dizer: «Mamãi do meu coração quando aprecer portador de confiança mando você uma boa encomenda. Seu filhinho que lhe estima do fundo da alma e que lhe pede a bênção Manuel». Titia ben se amofinava com o que ela chama «ingratidão familiar».

 

– Este moço não me escreve uma cartinha com tripa.

 

Tripa na linguagem de Titia é dinheiro."

 

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01.09.24

Obra Poética de Francisco José Tenreiro


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Francisco José Tenreiro (1921-1963) et al., Obra Poética de Francisco José Tenreiro (1967).

 

Esta compilação póstuma da poesia do autor apresenta a seguinte nota prévia – " VISA A PRESENTE EDIÇÃO DAR MAIS DURADOURA EXPRESSÃO À HOMENAGEM AO PROF. E POETA FRANCISCO JOSÉ VASQUES TENREIRO, PROMOVIDA EM SEIS DE MAIO DE MIL NOVECENTOS E SESSENTA E SEIS PELA ASSOCIAÇÃO DOS ANTIGOS ALUNOS DO INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA ULTRAMARINA, EM SESSÃO PÚBLICA A QUE DEU A HONRA DE PRESIDIR O DIRECTOR DO INSTITUTO, PROFESSOR DOUTOR ADRIANO MOREIRA. NESTA EDIÇÃO SE ARQUIVAM, POIS, OS DOCUMENTOS NESSA SESSÃO, ANTECEDENDO A  OBRA QUE NESSA MESMA OCASIÃO SE DECIDIU PUBLICAR. SÃO DEVIDOS AGRADECIMENTOS À EXCELENTÍSSIMA SENHORA DONA MARIA MADALENA COSTA LANÇA DE VASQUES TENREIRO PELAS FACILIDADES OFERECIDAS A ESTA PUBLICAÇÃO. "

 

Com efeito, este volume, para além da obra poética do autor, apresenta também uma notícia publicada no Diário de Lisboa, em 7 de Maio de 1966, um texto intitulado O Geógrafo Francisco Tenreiro, da autoria de Raquel Soeiro de Brito (n. 1925) e o texto Francisco José Tenreiro, Poeta, da autoria de Mario António Fernandes de Oliveira (1934-1989).

 

Reproduz, em seguida, o conteúdo integral das obras Ilha de Nome Santo ("Coimbra – MCMXLII") e Coração em África ("Lisboa – 1964"). No seu texto, Raquel Soeiro de Brito refere que, no âmbito da literatura, para além destes volumes, Francisco José Tenreiro havia publicado ainda o conto Nós Voltaremos Juntos, em 1942, Tarde de Tédio e O Velho Pioneiro Morreu (Theodore Dreiser), em 1946, e a antologia Poesia Negra de Expressão Portuguesa, em co-autoria com António Domingues (1921-2004) e Mário Pinto de Andrade (1928-1990), em 1953. Acescenta ainda que o escritor deixara prontas para publicação as obras Coração em ÁfricaProcesso Poesia, uma antologia de poesia africana.

 

Uma vez que, anteriormente, já aqui se publicou um poema que integra Ilha de Nome Santo, Canção do Mestiço, transcreve-se hoje um poema de Coração em África, Mamão Também Papaia, escrito em São Tomé na Páscoa de 1962, ficando para outra oportunidade poemas mais longos, e evocativos da poética de Cesário Verde (1855-1886) e Fernando Pessoa (1888-1935), como Amor de África:

 

"Mamão

também papaia.

 

Que sabor é o teu mamão

também papaia

que andas na boca dos pobres

e és delícia matinal

do Senhor Administrador?

 

Qual a tua sedução

mamão também papaia?

 

Será esse teu ar estranho

de seres melão e nasceres nas árvores

ou esse rosto de mama de mulher preta

recordando ao Senhor Administrador aquela

cujo seio se abriu em filhos mulatos

brincando pelas traseiras da Casa Grande?

 

Que força é tua

mamão também papaia?

 

Será porque alivias o rotundo ventre

do Senhor Administrador

e soltando a barriga do Senhor Administrador

libertas a neura e o sorriso

do Senhor Administrador

deixando-o mais macio e de olhos parados

para o dia de sol e quentura do Senhor?

 

Oh! Mamão também papaia

na boca de pobres e de ricos

de pretos de brancos e de mulatos,

fruto democrático da minha ilha!"

 

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10.08.24

Revista Cultura (IV)


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O número 41 desta revista apresenta um conto de Onésimo Silveira (1935-2021), Superstição, e um poema de Ovídio Martins (1928-1999).

 

Uma vez que o conto Destino de Bia Rosa, de Onésimo Silveira, publicado no número 28 da revista Cultura, já foi aqui mencionado, reproduz-se hoje o poema de Ovídio Martins, cuja nota biográfica ficou registada em artigo anterior.

 

Intitulado Os Homens e a Montanha, o poema traduz todo o sofrimento e desespero dos trabalhadores rurais de Cabo Verde num registo de insistente monotonia, claramente associável ao movimento neorealista.

 

OS HOMENS E A MONTANHA

 

Os homens

cavaram sulcos na montanha

olharam o céu sem esperança

e esperaram o dia de amanhã.

 

Mas o dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Então os homens

foram à montanha

e cavaram mais sulcos

e esperaram o outro dia de amanhã.

 

Mas o outro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

E os homens cavaram

cavaram com raiva

sem dizer palavra

até as mãos sangrarem

mas todos sabiam que esperavam o terceiro dia de amanhã.

 

Mas o terceiro dia de amanhã não trouxe novidade.

 

Já os homens

não esperavam o quarto dia de amanhã?

Sim!

Curvados sobre a terra

cavam, cavam sempre

e continuarão a cavar

até que o seu dia de amanhã

chegue de certeza

num dia preparado

ao cimo da montanha.

 

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04.03.24

Novos Contos d' África (I)


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Novos Contos d' África (1962).

Capa de Manuel de Resende (1908?-1977?).

 

Esta segunda antologia de contos da colecção Imbondeiro, que sucedeu à publicada no ano anterior, apresenta obras de Alfredo Margarido (1928-2010) – A Osga, Artur Carlos Pestana (n. 1943)  As Cinco Vidas de Teresa, Djamba Dalla (pseudónimo de Dulce Ferreira Alves Mendes de Vasconcelos, n. 1927) – Terei Eu Perdão?, Henrique Abranches (1932-2004)  Sangue como Chuva Seca, Henrique Guerra (n. 1937) – Virgínia Voltou, Horácio Nogueira (n. 1925)  Chilombo, Ingo Santos (Arnaldo Santos, n. 1936) – Joana de Cabo Verde, Julieta Fatal (datas desconhecidas)  Uma Velha que Tinha um Gato..., Luandino Vieira (n. 1935) – Os Miúdos do Capitão Bento Abano, Maria Perpétua Candeias da Silva (datas desconhecidas)  Escrava, Orlando Távora (pseudónimo de António Jacinto, n. 1924) – Vôvô Bartolomeu, Pedro Sobrinho (n. 1936) – Terra de Sol, e Reis Ventura (1910-1988) – O Drama do Velho Cafaia, conjugando num único volume a produção de dissidentes e escritores afectos ao regime do Estado Novo.

 

Tal opção editorial é sublinhada pelos editores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (1934-2021), que declaram no seu preâmbulo a este volume – "Em Literatura – como noutras coisas – há quem não pense da mesma maneira, e a esse tipo de liberdade que preferimos, por não dar ensejo a dogmatismos, costumam chamar nomes feios. São os riscos próprios dos que não assinaram pactos nem tratados, dos que não crêem que um deus valha mais ou menos do que outro deus, dos que concluíram para si próprios que toda a espécie de hermetismo ideológico é um atentado contra a liberdade de pensamento – o mais sagrado direito do escritor."

 

O compromisso desta linha editorial torna-se evidente quando, nesta colectânea, coexistem narrativas que ecoam as sublevações e os massacres de 1961, em contos como Terei Eu Perdão? ou o Drama do Velho Cafaia, cujos enredos assentam na violência física e nas angústias e traumas decorrentes destes confrontos, junto da obra de um autor como Luandino Vieira, contestário do regime que, precisamente desde 1961, se encontrava encarcerado por motivos políticos.

 

Continuando também o compromisso da Imbondeiro em promover as artes plásticas como complemento das suas publicações, esta colectânea apresenta cinco ilustrações de diferentes artistas – duas de Fernando Marques (1934-2017),  duas de João Manuel Mangericão (1936-2022) e uma de Luandino Vieira.

 

 

Ilustração de Luandino Vieira para o conto Os Miúdos do Capitão Bento Abano.

 

O conto de Luandino Vieira surge na continuidade das tendências temáticas anteriormente patentes em A Cidade e a Infância (1960), as quais haveriam de voltar a surgir nos três contos apresentados em Luuanda (1963), como a vivência nos bairros da periferia urbana, a memória e a infância.

 

Sobre Luandino Vieira, refere a breve nota presente neste volume: "Luandino Vieira é pseudónimo de José Graça. Nasceu em Luanda em 4 de Maio de 1935 e é empregado comercial. Colabora em várias publicações angolanas. Representado nas colectâneas «Contistas Angolanos» e «Poetas Angolanos». Publicou «A Cidade e a Infância», contos, 1960. Colaborou nos n.ºs 14 e 23 da «Colecção Imbondeiro»".

 

De Os Miúdos do Capitão Bento Abano transcrevem-se, então, os primeiros cinco parágrafos:

 

"Alcunha, quando a gente tem, tem por alguma razão. Esta opinião sustentava sempre que o acaso me juntava com Zeca Bunéu e Carmindinha, recordando Xoxombo. Tunica nunca mais esteve presente nessas reuniões, a vida levara-a para a Europa, com seu jeito de cantar rumbas e sambas. Menina-perdida, dizia para nós sá Domingas; a vida é grande e não são só as palavras que chegam para mudá-la, justificávamos nós. Carmindinha silenciava, não punha opinião, mas sabíamos que lhe era dolorosa a recordação da irmã Tunica.

 

Nossas reuniões eram, às vezes, em casa de sá Domingas, quando eu namorava Carmindinha. Zeca Bunéu vinha depois, com seu assobio-de-bairro, chamar-me para o café, mas acabava sempre por ficar na conversa. E com sá Domingas, já velha de cabelos brancos e Bento Abano ainda lendo o jornal sem óculos, calado no seu canto, quantas vezes não recordávamos! Invariável, porém, a presença de Xoxombo em nossa conversa, emboras as lágrimas  corressem pelo carão negro e já muito enrugado da mãe. Carmindinha contava, sempre igual, sua versão de alcunha de Xoxombo. E a defendia, séria. Zeca Bunéu, com sua maneira de contar as coisas, escolhia a versão mais conhecida, a de mais malandragem, aquela que servia seu feitio de menino malandro mas bom, dado a contar histórias à sua maneira. Eu não emitia grande opinião. Gostava, é verdade, de ver Zeca Bunéu, com grandes gestos e risadas, os olhos muito grandes piscando, contar a história na sua versão. Mas olhava com amor para Carmindinha, às vezes zangada, defendendo o irmão. Só quando sá Domingas começava a chorar pela recordação que lhe fazíamos e Bento pigarreava na sua cadeira de bordão, eu interrompia. Mal, confesso. Insistia apenas no facto real: alcunha, quando alguém tem, há uma razão e se toda a gente referia Xoxombo da mesma maneira, pouco importava a a origem ou versão da alcunha.

 

Depois saíamos. Carmindinha vinha connosco, deixava que eu lhe apertasse os seios pequenos debaixo do kimono, ao segurá-la para o beijo à porta. E, com Zeca Bunéu, de noite, ia quase sempre passear à toa, pela nossa cidade adormecida.

 

Hoje, dia dois de Novembro, encontrei Carmindinha à saída do Cemitério Velho e viemos para baixo, no maximbombo da linha dois. Foi este encontro o primeiro depois de uma zanga que durou anos e nele não precisávamos mencionar Xoxombo: esteve sempre connosco, no fato preto e no cheiro enjoativo que as flores-de-mortos deixam nas pessoas. A sua história, desde essa hora, impôs-se. O tempo diluiu pormenores, esbateu insignificâncias, mas iluminou o que importa.

 

Afastado de Carmindinha todos esses anos, subtraí-me à sua influência, à sua bondade na defesa do irmão. E, sem Carmindinha presente, eu e Zeca Bunéu nunca mais falámos de Xoxombo. Sentir-me-ia culpado se não contasse a história. Talvez agora, com os elementos que os anos depositaram em mim, vindos das mais variadas versões, possa ser fiel à história de Xoxombo. Se não conseguir, a culpa não é dele, nem da aventura que lhe valeu a alcunha. É minha, que meti literatura onde havia vida e substituí calor humano por anedota. Mas eu conto na mesma."

 

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20.07.20

Rui Knopfli - Reino Submarino


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Rui Knopfli (1932-1997), Reino Submarino (1962).

Capa e ilustrações de Jorge Garizo do Carmo (1927-1997).

 

Segundo livro de poesia do autor, o primeiro havia sido O País dos Outros (1959), este volume, que iniciava a colecção Cancioneiro de Moçambique e será talvez um dos mais importantes da bibliografia de Rui Knopfli, caracteriza-se por uma diversidade conceptual que varia entre a problemática da génese do texto poético - como em "aprendiz na oficina da poesia" ou "ofício novo", a lírica amorosa - como em "a um amor adolescente", "cecília noutro planeta" ou "passeio", os textos de temática africana ou uma secção, Sketch-book, com quatro poemas escritos em Inglês - "ihb", "deanie with some jazz", "monotonous song" e "exercise in loneliness".

 

O conteúdo desta obra oscila, assim, entre uma reflexão sobre a praxis poética como experiência pessoal e um ensaio de influências da literatura anglófona, na estruturação textual e nas propostas conceptuais, antecipando o envolvimento de Rui Knopfli nos emblemáticos cadernos de poesia Caliban, que, juntamente com João Pedro Grabato Dias (pseudónimo do também pintor e ceramista António Quadros [1933-1994]), editaria a partir de 1972.

 

Data deste ano, também, um estreitamento de relações entre estes autores e Jorge de Sena (1919-1978) que visitaria Moçambique, por sugestão e insistência destes, no âmbito do centenário da publicação de Os Lusíadas (1572). Aliás, nesta ocasião, António Quadros ofereceu a Jorge de Sena uma das suas obras, com moldura também artesanalmente executada por si, que Sena colocaria na sala de estar da sua casa de Santa Barbara, EUA, e Mécia de Sena (1920-2020) haveria de preservar no mesmo local após o falecimento deste.

 

Note-se que o autor das ilustrações em estampa extra-texto, Jorge Garizo do Carmo, ceramista, artista plástico e decorador de interiores, era irmão mais novo do arquitecto João Garizo do Carmo (1917-1974).

 

Sublinhe-se, ainda, o facto de a ilustração desta capa estar em consonância com o abstraccionismo geométrico contemporâneo, particularmente com aquele que Nadir Afonso (1920-2013) vinha desenvolvendo desde a década de 1950.

 

Transcrevem-se desta obra dois poemas de temática africana, onde se acentua a preocupação social e a dissonante consciência política de Rui Knopfli:

 

MULATO

 

Sou branco, escolhi-te.

Hoje durmo contigo.

Negro é teu ventre,

porém macio.

E meus dedos capricham

sobre o aveludado relevo

das tatuagens.

Denso e morno é o luar,

cálido o cheiro húmido

do capim, acre o hálito

fundo da terra.

Venho cansado e tenho

fome de mulher.  Sou branco.

Escolhi-te. Hoje durmo contigo:

Um ventre negro de mulher

arfando, a meu lado arfando,

o cansaço, o espasmo

e o sono. Nada mais.

Amanhã parto. E esqueço-te.

Depressa te esqueço.

                                       E teu ventre?

 

 

SUBÚRBIO

 

Daqui avistamos o perfil cinzento

da cidade.

Daqui a vemos, recortando o perfil

arrogante

entre densas ramadas

de cajueiros e mafurreiras.

Daqui vemos a cidade, 

seus dedos enclavinhados

na cinza das nuvens,

seus dentes de incerta geometria

mordendo um céu ensanguentado.

                    Diz-me, velho Dotana,

                    Cidade tem dentes?

                    Mulungo, cidade tem dentes,

                    cidade tem dentes de n'goenha.

Daqui vemos a cidade

crescendo sobre nós,

abatendo-se sobre nós

como gigantesco xipócuè

de cimento armado.

                     Diz-me, velho Dotana,

                     cidade tem fantasma?

                     Mulungo, Dotana não tem medo

                     xipócuè do mato

                     Dotana tem medo grande,

                     xipócuè da cidade.

Daqui a vemos,

cada vez mais próximo 

de nós,

triturando na larga maxila

matos e terreiros,

xipócuè de cimento armado

sobre nós,

perto de nós,

dentro de nós,

de grandes, compridas

mãos estendidas.

                              Dotana, velho dotana,

                              estendes-lhe a mão? Mulungo,

                              branco aperta a mão de preto?

 

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17.01.19

José de Almeida Santos - Longe, Lá Longe...


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José de Almeida Santos (1922-1997), Longe, Lá Longe... (1962).

 

José de Almeida Santos publicou mais de duas dezenas de obras, destacando-se na sua bibliografia um conjunto de estudos sobre a história social de Luanda no século XIX.

 

Para além do volume agora apresentado, no âmbito da poesia e da ficção, publicou Seis Histórias Quiocas (1965) e Tábua de Esmeralda (1966), tendo ainda publicado, em co-autoria com Maria Lígia de Almeida Santos, o volume Aquele Velho Chapéu... ; Traição (1964), na colecção de livros de bolso da Imbondeiro.

 

Os poemas que nesta obra estão intimamente ligados à temática africana são, por ordem de publicação, Canção da Muana-Maria, História do branco Cauache e André Luembe está preso, os quais são acompanhados no final de cada um por uma lista de vocabulário que totaliza dezanove palavras.

 

Surge ainda o manifesto-poema Os tais «ventos da história», que se transcreve integralmente abaixo não só como um documento literário sobre a actualidade da sublevação nas colónias e a sua contextualização, mas também pelo seu anti-americanismo, pelo seu conceito de comunidade lusófona e miscigenização e por um certo paralelismo com as patrióticas manifestações literárias anti-Ultimatum de 1890.

 

Refira-se, como curiosidade, o último poema deste volume, intitulado O Mundo em que vivemos (Poema radiofónico - ruídos bélicos), pela evocação que, na quase totalidade do seus versos, faz das onomatopaicas obras futuristas e dadaístas.

 

Finalmente, note-se que não se deve confundir o poema que dá título a este volume com o poema Lá Longe, de Florêncio Neto de Carvalho (1924-1985), o qual está na origem do conhecido fado de Coimbra interpretado, entre outros, por António Almeida Santos (1926-2016).

 

"Os tais «ventos da história»

 

Os tais «ventos da História»

Não são uma invenção americana

Nada disso!

São sim a resultante

Da evolução natural da mente humana,

Verdadeiros,

Reais,

Soprando no sentido

Da Paz e da Concórdia universais.

 

Que o rico tio Sam,

Desbaratando os dólares às mãos cheias

Co'a sua bem montada propaganda,

Queira modificar o curso dos elementos

Para poder tirar

Mais chorudos proventos,

É uma coisa perfeitamente natural.

Mas tal não implica

Que os racismos, ódios e crueldades,

Fomentados p'los nórdicos dinheiros,

Não sejam episódios passageiros,

E que a fusão dos povos em blocos

(No sentido dos quais sopram os ventos)

Se não verifique, mais ano menos ano,

Mau grado o esforço

E os montes de armamentos

Do Estado americano.

 

Um dos futuros blocos naturais

(Bloco varonil

Firmado no interesse

E na cultura e entendimento humanos)

É o que ligará os povos do Brasil

Aos povos Lusitanos.

 

Da terra do chewing-gum, o mercador

Por certo, lutará, com todo o seu vigor

Contra a constituição dessa comunidade,

Pois teme do Brasil

A grande actividade fabril

Que o fará derrubar da forte posição

(Conquistada à custa de milhões

E falsa ajuda ao preto independente)

Donde enche de bugigangas e sabões

O negro continente.

 

E ele,

O inventor do Ku-Klux-Klan,

Da Lei de Lynch, da Reserva Pagã

(Onde, como animais encurralados

Vivem uma existência deletérica

Os nativos de côr da própria América)

Tem agora o afã,

Que é pura e mentirosa propaganda,

De mostrar ao negro primitivo

Ser muito seu amigo.

 

Mas, isso, irmão de côr, é tudo fantasia.

 

Irmão de côr :

 

Tu e eu que, juntos, fizemos o Brasil

(Esse Brasil moreno

Caldeado do teu sangue de negro

e do meu sangue de luso e agareno),

Tu e eu que, há muitos anos já,

Vamos juntos à escola

E juntos trabalhamos e jogamos a bola,

Tu negro português e eu branco português

Não vamos deixar que o terrorismo,

Descendo da fronteira

E pago com dinheiro americano,

Instile em nós o ódio racial.

Não!

Pensando em Portugal

E pensando no Brasil, ali em frente,

Tu negro português e eu branco português

Apertemos as mãos

Solenemente."

 

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30.03.14

Eduardo Teófilo - Quando o Dia Chegar


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), sob ideia de Eduardo Teófilo.

 

Eduardo Teófilo (1923-1980), Quando o Dia Chegar (1962).

 

Como já foi referido anteriormente (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/2711.html), embora Eduardo Teófilo tivessse chegado a África na década de 1950, mais precisamente em 1954, a sua ficção não reflectiu de imediato essa experiência.

 

De facto, a sua produção da década de 1960 ainda se dividia entre uma temática especificamente evocativa dessa experiência africana e uma temática mais genérica, que poderia traduzir cenários e problemáticas aparentemente mais universais.

 

Este volume, editado pelas publicações Imbondeiro, de Sá da Bandeira, Angola, e galardoado com o prémio Fialho de Almeida, testemunha essa mesma divisão.

 

Dos vinte contos aqui publicados, apenas metade traduzem ou evocam uma temática ou um cenário africano – Batuque, Briga Antiga, D. Rodrigo, Passageiro Clandestino, Encontro, Retorno, A Sorte Grande, Um Colo de Garça Negra, O Regresso e Um Caçador.

 

Do conto Batuque transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Os sons continuam a vir, cavos e monótonos, num ritmo sempre igual, mas mais percutido, mais acelerado, os braços caindo rápidos e descontraídos sobre as peles esticadas dos tambores, ou sobre os fundos das latas, cabeças dos músicos marcando o compasso, para cima e para baixo, num frenesim, enquanto, em volta das chamas que se erguem para as estrelas, os bailarinos se agitam, se contorcem, unindo a cabeça com os joelhos, em saltos impossíveis, mexendo os braços para trás e para a frente, numa mímica difícil de compreender, empurrando-se uns aos outros, seguindo em fila, lançando gritos, assobios, enquanto que uma melopeia de fundo se escuta, monocórdica, sempre igual, sempre as mesmas palavras, talvez o mesmo verso ou a mesma lenda. Há crianças, também, pitorros nus, de três e quatro anos, que esbracejam, revoluteiam, se enrodilham entre os pés dos maiores, que os não vêem sequer, alucinados pelo ritmo, sempre cada vez mais desenfreado, dos tambores e latas. São depois as mulheres, jovens e velhas, enroladas nos panos coloridos de desenhos estravagantes, que cantam e dançam à volta dos homens. As crianças param, olham as mães e ficam-se, sentadas à roda do lume, junto aos músicos que transpiram por todos os lados, mas não se cansam de entoar sempre a mesma melodia e de bater, cada vez mais desenfreadamente, os fundos das latas e os couros das seixas e dos veados.

 

E as mulheres bailam de roda dos homens, atiram-se-lhes para a frente, chegam-se-lhes, afastam-se-lhes, requebrando os rins, remexendo o ventre, numa fúria cada vez maior, numa dança de amor, talvez. Algumas trazem os filhos de mama, enrolados nos panos, às costas. As crianças dormem e as mães bailam. E elas parece começarem já a apreciar a dança por instinto, por sugestão, embaladas no seu sono pelos requebros e meneios das costas balançando.

 

Procuro com a vista o soldado que se honra como batuque festivo. Não dança. Bebe vinho de palma com os chefes, enquanto os seus olhos parecem rir da ingenuidade do bailado, ele que já viu muito mundo, que dançou danças de brancos pelas cidades da costa e pelos portos por onde tocou, que conheceu raças diferentes da sua e dos brancos que os seus conhecem, que viu outras cores de peles noutros rostos de mulheres. Ele é um sábio para o seu povo, pois que sabe contar histórias de outras gentes, de outras terras que os seus nunca viram e desconhecem. Os chefes bebem-lhe as palavras, enquanto ele fala num ar superior, e inventa, talvez, histórias que nunca conheceu.

 

– Uma vez, lá em Goa, fomos numa dança grande de indianos. As mulheres não são negras nem brancas. A sua pele tem a cor do capim a secar e é macia, mas não tanto como a das nossas mulheres. E os olhos são grandes e fundos e quando olham a gente parece quererem entrar no nosso coração, pelas janelas dos olhos da gente.

 

E, enquanto fala, o púcaro do «marufo» adocicado nas mãos grandes, fita, de olhos esgaseados as mulheres da sua raça, que não têm a pele de azeitona, mas de negro retinto, e que rodopiam sem cessar, balançando, balançando."

 

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02.02.14

Henrique Lopes Guerra - A Cubata Solitária


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Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas), desenho de Henrique Abranches (1932-2004).

 

Henrique Lopes Guerra (n. 1937), A Cubata Solitária (1962).

 

Este volume em prosa de Henrique Guerra, o primeiro da sua bibliografia, foi publicado enquanto prestava serviço militar obrigatório como alferes miliciano.

 

No entanto, esse serviço prestado à nação não significava que não manifestasse a sua contestação à política do regime salazarista, razão pela qual veio a ser perseguido e encarcerado, intermitentemente, entre 1965 e 1973.

 

Antes de esta edição, Henrique Guerra havia já colaborado em publicações periódicas, como as revistas Cultura e Mensagem, e os jornais ABC - Diário de Angola e Jornal de Angola.

 

Posteriormente, já depois da independência de Angola, veio a publicar Quando Me Acontece Poesia (1976) e Alguns Poemas (1977), em verso, e, em prosa, Três Histórias Populares (1982) e a peça de teatro O Círculo de Giz de Bombô (1979). Publicou ainda o ensaio Angola - Estrutura Económica e Classes Sociais (1975).

 

Neste volume incluem-se três breves contos – O Regresso do Lunda, Mucanda, a Escola da Vida e A Cubata Solitária, onde o autor claramente enuncia o respeito pelas heranças e pelas tradições angolanas como motivo central das suas narrativas.

 

Em O Regresso do Lunda relata-se uma viagem do protagonista à descoberta de si próprio e do seu destino. Tal metáfora adquire nova leitura quando se fala de Ilunga, o soba que ficou à frente dos Lundas e pactua com os brancos, e de Quingúri, o rebelde que transformou os Lundas num novo povo nómada e insubmisso – os Quiocos.

 

Este motivo da independência e da insubmissão é retomado em A Cubata Solitária, onde se relata a vida independente e solitária de Calibo. Aqui, contudo, o desaparecimento de Calibo e a temerosa superstição que lhe sobrevem, associada pelo povo ao seu espírito e à sua cubata abandonada, denotam antes a perda desses valores.

 

No curtíssimo conto Mucanda, a Escola da Vida, perante o rito da circuncisão e a morte de Epaka, coloca-se-nos a questão da honra e responsabilidade que se apresenta a seu pai, Txipangue.

 

 

 

Do conto O Regresso do Lunda transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma noite, sentindo a alma revolta como a superfície de um lago onde lutam jacarés, o homem apartou-se  dos que se divertiam na dança. Cheio de desprezo e de ódio, o lunda abandonou a sanzala, ganhou as sombras da noite e o vazio da distância.

 

Resolvera seguir a pista dos seus irmãos, que haviam partido num dia de sol e de revolta, e àquela hora conquistavam o terror e o espanto de povos estranhos e o amor de lindas mulheres.

 

Mas ai dele, muitos anos haviam decorrido.

 

Os que tinham agido no momento preciso de há muito estavam de alongada e ninguém sabia dizer em que sítio preciso se encontravam naquele momento.

 

Haviam chegado ao mar, à famosa cidade de Luanda, atraídos pela fama do grande soba dos brancos, ao serviço do qual combateram. Anexaram os Bangalas, atravessaram o país dos Jingas, derramaram-se mais para o Sul, inquietando os Bienos e dividindo os agricultores Ganguelas, pacífico povo de poetas e cantares. E por toda a parte o cordão quioco ia engrossando como se engrossa um grande rio, anexando povos vários de costumes estranhos, graças ao seu extraordinário poder de assimilação.

 

O lunda errou luas e luas à procura de seus irmãos. Mas os guerreiros de Quingúri eram tão irrequietos como valentes, ninguém sabia indicar o término do seu rasto, as mulheres riam-se à passagem do lunda desgraçado e os homens sentiam um prazer maldoso em mandar os cães e as crianças enxotarem aquele representante da raça maldita."

 

© Blog da Rua Nove

12.11.13

António Aurélio Gonçalves - Pródiga


blogdaruanove

Capa de Fernando Marques (datas desconhecidas).

 

António Aurélio Gonçalves (1901-1984), Pródiga (1962).

 

Este número duplo (35 e 36) da Colecção Imbondeiro apresenta dois contos – Pródiga e O Enterro de Nhâ Candinha Sena, e uma introdução à obra do autor, intitulada António Aurélio Gonçalves - Esboço de Retrato, pelo escritor Manuel Ferreira (1917-1992).

 

Nessa introdução, o autor de Hora di Bai declara – "E seria pela mão de Baltasar Lopes que viria a conhecer o António Aurélio Gonçalves, um homem seco de carnes, tez sobre o escuro, cabeça avantajada num corpo de estatura meã, olhar vivo, sagaz, ainda quando naquele seu jeito peculiar de semi-cerrar os olhos no vago, como dessa arte melhor situasse todas as suas antenas de captação."


Nascido em S. Vicente, António Aurélio Gonçalves estudou no Seminário de S. Nicolau e posteriormente em Lisboa, onde se licenciou em Histórico-Filosóficas. Já em Lisboa colaborou com, entre outras publicações, Batalha, Seara Nova e O Diabo. Em 1940 regressou a Cabo Verde, para exercer a docência no Liceu Gil Eanes, em S. Vicente.

 

Embora hoje essa ligação pareça estar esquecida por alguns (cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/Claridade), foi membro destacado do movimento Claridade, que entre 1936 e 1966 editou em Cabo Verde nove números da revista homónima, sendo a sua obra extremamente admirada por outros elementos do movimento, como Manuel Ferreira e Baltasar Lopes (1907-1989).

 

O prestígio literário das suas exíguas publicações era tal que nem um crítico inequivocamente ligado ao regime salazarista, Amândio César (1921-1987), se coibiu de declarar em Novos Parágrafos de Literatura Ultramarina (1971): "Em fins de 1971 saía dos prelos cabo-verdianos mais uma obra-prima do, para mim, maior ficcionista português contemporâneo: António Aurélio Gonçalves. E não atiro ao acaso esta afirmação. Porque, efectivamente, passando em revista os nossos maiores e mais representativos escritores, sua obra, no volume individual ou no conjunto, não supera as quatro noveletas que, em Cabo Verde, escreveu e publicou António Aurélio Gonçalves; por muito que pese ao brio dos escritores do espaço de língua portuguesa."

 

Os dois contos aqui reunidos, que, como já vimos, alguns também classificam de novelas, haviam já saído separadamente, em 1956 (Pródiga) e 1957, tendo o autor publicado, posteriormente, ainda na área da ficção, Noite de Vento (1970) e Virgens Loucas (1971). Juntamente com alguns destes volumes saíram também os contos A Consulta e História de Tempo Antigo. Postumamente, foram editados os volumes Recaída (1993) e Terra da Promissão (1998). Na área do ensaio publicara Aspectos da Ironia de Eça de Queirós (1937) e A Centelha – Cadernos de Estudo (1938), saindo postumamente o volume Ensaios e Outros Escritos (1998).

 

Pródiga é um conto cujo título claramente indica que o seu enredo se baseia na célebre parábola bíblica do regresso a casa do filho pródigo. Aqui é Xandinha que, depois de atravessar o purgatório de uma vida sofrida – um namoro contestado pela mãe, a gravidez que resulta num filho falecido pouco depois, a separação do pai desse filho com quem não chegara a casar, um abandono à vida fácil que marinheiros e outros homens proporcionavam às mulheres do Mindelo, regressa, ainda jovem, a casa de sua mãe, Nhâ Ludovina, e irmãs, Isabel e Augusta.

 

É também uma narrativa que traduz certo destino incontornável de algumas mulheres, pois Nhâ Ludovina havia sido mãe-solteira, tal como as suas filhas vieram a ser, sem que isso afecte a sua noção de família e unidade.

 

O conto O Enterro de Nhâ Candinha Sena desenvolve-se através da revisitação da infância como espaço de afecto e serve de leit-motiv para abordar a saída do arquipélago como uma inevitabilidade que acaba quase sempre por confluir para outra inevitabilidade – o saudoso regresso definitivo a Cabo Verde.

 

A aridez de alguns recantos da ilha e os aspectos quase insuportáveis do clima acabam por ser contrabalançados, aqui, por aquilo que de melhor o autor encontra em Cabo Verde – a vivacidade das personagens, o ambiente familiar, o convidativo enredar de todas as vidas, presentes e passadas, num inesquecível conjunto que surge como paradigma da perene vivacidade das gentes e memórias cabo-verdianas.

 

Para alguns aspectos e memórias da vida familiar de António Aurélio Gonçalves veja-se: http://brito-semedo.blogs.sapo.cv/32688.html.

 

 

Do conto Pródiga transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Xandinha tinha chegado a um largozinho formado de terrenos vagos, de onde partiam as ruas de uma encruzilhada. Desviou-se para um beco, que vinha do Lombo-de-Trás a torcer-se em meandros escusos. Uma lâmpada debruçava-se sobre ela, vibrava o seu centro forte sobre o solo e batia cruamente as paredes opostas; depois, a sua luz atenuava-se numa degradação lenta, agonizava infindàvelmente no largo e, incerta, dormente, escorria por ruelas coleantes, enlividecia a aresta das esquinas, deixava planos cair na sombra; mais longe, à direita, um quadrante negro absorvia toda a claridade, ao passo que, para a esquerda, apanhava-se, recortada num pequeno quadrado, a vista da iluminação de uma rua transversal, e esta tomava o ar de um pequeno pano de fundo flamejando pretenciosamente debaixo de um foco intenso.

 

O vento passava com a sua farfalha incessante nos ouvidos de Xandinha. Não era fácil saber-se onde ia ele tomar impulso e força para estas arrancadas frenéticas, mas as lufadas impetuosas, duradoiras, pareciam baixar do nordeste, dos lados da Assomada do João d'Évora, da Salamança. Irrompiam do escuro, enrodilhavam-se como em novelos de cordas possantes e pareciam rodopiar no mesmo sítio com a rapidez de turbilhões antes de se lançarem definitivamente na sua fuga para o sul. O Lombo, assim escuro, ventoso e húmido, é triste. Quem passa não pára, não se ouve uma voz de rapariga, uma brincadeira de crianças, um arpejo de cavaquinho, portas e janelas fecham-se e uma ou outra luzinha brilha através de uma vidraça.

 

De face para o candeeiro, um grupinho encostava-se à parede, uns de pé, outros assentados, para fugir ao frio. Duas mulheres faziam o seu negócio e tinham tabuleiros à frente, com pão de milho, rebuçados de mel, açucrinha, etc. Dois rapazitos brincavam. A Benedita, negra de boa plástica, rapariga-de-vida bem conhecida no Lombo, silenciosa, fitava a rua. Todos se encolhiam, braços cruzados, procurando um agasalho para as mãos nuas e ninguém, a não ser os dois rapazitos que palravam, dizia palavra.

 

Xandinha aproximou-se dos tabuleiros e galhofou:

 

– Que é que vocês têm por aí, meninas? Que é que vocês me guardaram? Não me gaurdaram nada?

 

Uma das mulheres propôs-lhe:

 

– Compra-me um pãozinho de milho. Estão bonzinhos, menina. Queres? Dois tostões. Compra metade; só um tostão.

 

Xandinha debruçou-se a observar de perto os pães e, com a ponta dos dedos, tacteava-lhes a resistência:

 

– Agorinha assim, deu-me uma fraqueza na boca do estômago. Deveras! Ainda não jantei. Não me fias um, anh, Joana? Só até amanhã pela manhã. O teu dinheiro fica certo, menina. Podes estar descansada.

 

A Joana ajeitou os pães novamente no tabuleiro e, de cabeça baixa, resmungava:

 

– Minha filha, se fosse por fiado, fiava um a mim mesma. Vontade não falta."

 

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