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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

18.10.20

Amadeu Ferreira - Um Dia de 12 Horas


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Amadeu Ferreira (1925-2002), Um Dia de 12 Horas (1966).

Ilustração da capa de José Garcês (1928-2020).

 

A presente obra foi galardoada com o prémio de novelística Fernão Mendes Pinto. No âmbito da ficção, Amadeu Ferreira já havia publicado o volume de contos Catana, Canhangulo e Arma Fina (1964) e viria a publicar depois o romance As Árvores Reverentes do Congo (1967).

 

Militar de carreira, o piloto-aviador Amadeu José Ferreira, já como coronel, foi comandante da base aérea de Sintra (1968-1969) e secretário-geral da Comissão Portuguesa de História Militar (1990-1993), entre vários outros cargos que desempenhou.

 

A narrativa deste romance evoca os trágicos acontecimentos ocorridos em Angola a 15 de Março de 1961, embora a chacina dos colonos portugueses e daqueles que lhes eram fiéis não surja como vector único ou central, sequer, da obra. Obviamente, sendo esta uma obra visada pela censura, nada refere sobre as subsequentes acções militares de retaliação, como a de 27 de Abril do mesmo ano.

 

Recorrendo a um processo parcial e verosimilmente autobiográfico, o enredo desenvolve-se ao longo de quatro partes e dezoito capítulos, apresentando um protagonista oriundo de Trás-os-Montes e aviador, como o autor, que, já em Angola, recorda a sua infância e adolescência no ambiente transmontano. 

 

A primeira parte da obra, onde se inscrevem estas rememorações, apresenta ainda um conjunto de várias reflexões sobre o indivíduo, a ética e as questões políticas, administrativas e sociais de Angola, bem como sobre o papel dos americanos na política mundial e na acção colonial.

 

A segunda parte, de uma forma surpreendente, apresenta uma narrativa na segunda pessoa para traduzir a familiaridade do protagonista com um colono branco chacinado e relatar aspectos da própria chacina.

 

De uma forma mais breve, a terceira parte apresenta algumas das consequências dos massacres daquele dia para a vida dos colonos brancos, mas também para os negros que inocentemente são perseguidos e acusados.

 

A quarta parte relata o regresso do protagonista à sua terra natal, de uma forma que deixa em aberto um possível regresso a Angola.

 

Da segunda parte desta obra transcrevem-se os últimos parágrafos do capítulo 10:

 

"  «Não te admires pois do modo como te falo, mas devia-te esta explicação. A despeito da distância toda na vertical que me separa de ti, deste isolamento que me rodeia enquanto distingo a fazenda traçada com trabalho e amor, compreendo bem os conflitos humanos do teu mundo de ontem e de hoje.

 

«Sabes?!... Estas coisas refinam quando se meditam; mais quando se apalpam e observam de perto. E este púlpito é particularmente propício à meditação. Ninguém nos estorva, ninguém nos distrai, pode dedicar-se todo o coração e parte do cérebro aos problemas do mundo. Os conflitos do homem, que aqui não chegam em ruído, surgem-me com mais clareza e despidos da ganga que lhes pode desvirtuar a verdadeira essência e natureza.

 

«Com estes créditos positivos, não posso louvar-te por tudo que fazias na fazenda. Mas antes de atirar-te a primeira pedra procurei entender que dentro da tua realidade não foste pior que todos os outros de todas as épocas, mas apenas igual e, em muitos sentidos, melhor. E numa sociedade não se condena um homem igual a todos os outros.

 

«Foste um pioneiro e um embaixador; à tua maneira, como já disse. Mas quem te censura pensa também que quando se querem embaixadores por conta alheia, se lhes paga e se lhes ensina o como, o quando e o porquê do que se lhes exige? Não pensam nisso, mas estranham agora não lhes teres defendido o nome, o não inculcares nos trabalhadores a noção que eles próprios têm de Pátria e convivência social, o não teres elevado como eles desejariam o nível dos homens que te eram confiados para os trabalhos agrícolas ou domésticos. A verdade justa e real só pode pôr-se assim: que crédito tínhamos nós, Emílio, que tu, apesar de tudo, dos teus defeitos ou prepotências, não retribuísses com juros também acima dos legalmente estabelecidos? Que nos devias tu, Emílio?...

 

«Por isso digo para não te mortificares. De resto, não sabes mas vou esclarecer-te: todos os vizinhos em redor, espalhados por esta área imensa que posso enxergar da vertical da tua fazenda, estão como tu, amarrados como porcos no banco da matança. Aos bons e compassivos de nada lhes valeu o coração, e aos maus e refinados o fel não agravou os sofrimentos. O cataclismo foi gadanha que cortou cerce o trigo todo, granado ou chocho, e também o joio que na época própria escapou às mondadeiras. E isto pelo facto simples e verificado de que nenhum João do Congo procurou motivos e invocou razões válidas para o que foi feito.

 

«Tu não sabes, mas o que está a dar-se contigo passa-se à mesma hora por léguas e léguas. Não te mortifiques, Emílio, tu não eras santo, eras apenas homem.

 

«Eu digo eras, porque quase o não és. Se tirarmos esse sopro, teòricamente [sic] a animar-te ainda, sabes o que me pareces? A imagem, dura, choca e arrepia, mas a ti pouco impressiona já e eu tenho-te falado com franqueza que quero levar até ao fim. No mundo material, Emílio, a figura justa, fiel, da coisa a que te reduziram é o bucho. Lembras-te?... aquele enchido de carne e ossos a esmo, ensacados num estômago de porco?... És um bucho de ossos esmigalhados, carne picada, vísceras moídas, no saco que é a tua pele cheia de laivos de sangue pisado.

 

«À medida que as chufas, as troças e as pauladas cresceram, a dor física foi-se esbatendo na sucessividade dos golpes, e o tormento de alma, dos gritos abafados da tua mulher, foi-se embotando na semi-inconsciência que te ia invadindo. Começaste a ter uma boa desculpa para largar a vida e já não compreendias porque adiavam o golpe final. Não há centímetro quadrado que esteja sem mossa. Todos quiseram vingar a sua afronta, limpar a sua ofensa, desforçar o seu despeito recalcado, ou pelo menos afirmar uma posição com crédito a haver, agora que te viam vencido e amarrotado. Mas eles nem essa esperança última dum fim próximo te deixaram, quando a vida passou a fardo mais pesado que a morte. Foi a um bucho vivo que eles conscientemente te quiseram reduzir, e conseguiram-no. 

 

«Já não vês, Emílio, mas isso agora é um bem. Se visses, custava-te mais. A casa está esventrada, os trastes estraçalhados, o gerador, na barragem que era o teu orgulho, está desfeito. Os corpos de alguns que mais fielmente te serviram estão aqui e ali, no sítio onde foram acabando. Mas o corpo de Emília não está. A tua criada, escolhida por simpatia onomástica, tal como o João também sabia. Emília, sereia negra de mil fascinações, sabia que este teu dia não chegaria ao fim. Lembras-te que só ficou descansada quando se assegurou do teu regresso à fazenda na tarde seguinte, quando viu que a tua ausência não ia além de algumas horas?

 

«Os seus receios, Emílio, nada tinham com os azares de ante-ontem [sic] como julgaste por ser um dia 13, mas com a possibilidade de escapares ao que sabia esperar-te hoje, um dia 15, número sem história nas tradições do bruxedo e da superstição.

 

«E tenho outra prova, tenho outra prova de que ela sabia, Emílio, e se valeu da sua habilidade maior para te arranjar um parceiro de açougue, mas não vale a pena mostrar-ta.

 

«Quanto à tua mulher, aguentou uns tantos, mas depois... Não, neste assunto não quero falar; sei que não vês, mas ainda ouves; pouco, mas ouves, e se não te tenho poupado a desgostos, na franqueza que venho usando, neste ponto quero fazê-lo.

 

«Emílio, volto a falar-te com o à-vontade [sic] que apenas pus de lado ao referir-me à tua mulher. À medida que te foste tornando nessa miséria chagada que repugna e revolta os sentidos, estás a sublimar-te, e chega cá acima, a este ambiente asséptico onde o bafo dos ódios não persiste, a verdade justa daquilo que estás quase a ser. De nada te servirá essa lágrima grossa que soltou agora e pouco valerá o que vou dizer, até porque já não ouves talvez, mas eu entendo-te, Emílio, como irmão e como homem. Não por compaixão, não por lisonja, nem sequer por acordo total como viste, mas porque essa ausência de esperança que te deixaram neste segundo dia de menos de vinte e quatro horas foi penitência a absolver-te de todas as culpas que porventura possam assacar-te.

 

«Emílio?... Emílio?... Já não ouves?... Não, já não ouves, nem sentes.

 

«No meu mundo, Emílio, no meu mundo desta hora, com o Sol por testemunha e as nuvens por vizinhas, és agora o símbolo grande e trágico de todo o ser racional que neste dia e nesta terra, ensopada de ti, esvaziaram de esperança. Mas no mundo da matéria és finalmente um bucho sem alma, como eles queriam, ensacado na pele avergoada e repelente, a que as cordas, tensas, mantêm ainda a forma e seguram de encontro ao tronco grande da mulemba frondosa que domina o terreiro.» "

 

© Blog da Rua Nove

09.07.16

Orlando de Albuquerque - Alda Lara: A Mulher e a Poetisa


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Orlando de Albuquerque (1925-1997), Alda Lara: A Mulher e a Poetisa (1966).

 

Volume de homenagem a Alda Lara (1930-1962), apresenta uma biografia da escritora, uma breve introdução à sua poesia e uma pequena antologia, intitulada Os Poemas Preferidos de Alda, onde se trancrevem treze dos seus poemas. 

 

Organizada pelo também médico, moçambicano radicado em Angola e seu marido, Orlando de Albuquerque (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/4664.html), este opúsculo apresenta ainda, em extra-texto, seis fotografias de Alda Lara, seus quatro filhos e sua família, sendo a última uma imagem da poetisa e seu marido, e da restante equipa cirúrgica, em pleno labor numa sala de operações em Cambambe.

 

No final deste volume refere-se ainda o seguinte – "O produto integral da venda deste livro, edição e propriedade do autor, destina-se à Fundação Alda Lara de Albuquerque, instituição em organização". Embora esta obra ostente na sua abertura a data de 1966, o seu cólofon regista os seguintes dados – "Composto e impresso na / Gráfica da Huíla, Lda. / Sá da Bandeira – 1967".

 

Recorde-se que, já depois de 25 de Abril de 1974, Amândio César (1921-1987) publicou um estudo sobre esta poetisa (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/658.html) e note-se, ainda, que a poetisa Alda Lara era irmã do escritor Ernesto Lara Filho (1932-1977).

 

Transcreve-se de seguida o poema Presença Africana, escrito em Benguela e datado de 1953:

 

"E apesar de tudo,

 ainda sou a mesma!

 Livre e esguia,

 filha eterna de quanta rebeldia

 me sagrou.

 Mãe-África!

 Mãe forte da floresta e do deserto,

 ainda sou,

 a Irmã-Mulher

 de tudo o que em ti vibra

 puro e incerto...

 

 A dos coqueiros,

 de cabeleiras verdes

 e corpos arrojados 

 sobre o azul...

 

 A do dendém

 nascendo dos abraços das palmeiras,...

 A do sol bom, mordendo

 o chão das Ingombotas...

 A das acácias rubras,

 salpicando de sangue as avenidas,

 longas e floridas...

 

 Sim!, ainda sou a mesma.

 A do amor transbordando

 pelos carregadores do cais

 suados e confusos,

 pelos bairros imundos e dormentes

 (Rua 11!... Rua 11!...)

 pelos negros meninos

 de barriga inchada e olhos fundos...

 

 Sem dores, nem alegrias,

 de tronco nu

 e corpo musculoso,

 a raça escreve a prumo,

 a força destes dias...

 

 E eu revendo ainda, e sempre, nela,

 aquela

 longa história inconsequente...

 

 Minha terra...

 Minha, eternamente...

 Terra das acácias, dos dongos,

 dos cólios baloiçando,

 mansamente...

 Terra!

 Ainda sou eu a mesma.

 Ainda sou a que num canto novo

 puro e livre,

 me levanto,

 ao aceno do teu povo!"

 

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16.04.10

Reis Ventura - Queimados do Sol


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Capa de Neves e Sousa (Albano Neves e Sousa, 1921-1995).

 

Reis Ventura (1910-1988), Queimados do Sol (1966).

 

Na linha de internacionalização do enredo das suas narrativas e da diversificação de origem das personagens, ensaiada já no seu romance anterior, Engrenagens Malditas (1964), Reis Ventura apresenta-nos aqui um conjunto de personagens que não só pretendem transmitir uma ideia de mestiçagem e unidade nacional como também de bom relacionamento internacional.

 

Apesar de constantes referências à situação no território (cf. evocação de ataques e massacres na frase "... em direcção à exígua pista de aterragem, vermelha como um lanho de catana...") e à nova ordem internacional (cf. "... alguns com barba crescida à Fidel Castro...") este romance articula-se de forma mais interessante que o antecedente.

 

Será, eventualmente, a primeira obra literária do autor posterior ao eclodir da guerra em Angola que retoma um fio narrativo e literário consentâneo com os modelos da trilogia dedicada a Luanda. Com um enredo desenvolvido entre Luanda, Nóqui, Matadi e Thysville (ex-Congo Belga), o romance não ignora contudo a nova realidade angolana, surgindo até como um subtil panfleto sobre as qualidades e as razões da colonização portuguesa.

 

Segundo fontes próximas do autor, uma das características que marca também a obra é a referência indirecta a um drama familiar, através do estado demencial que afecta o protagonista, o alferes Tanha, após a sua detenção e tortura.

 

A dedicatória deste volume, "Ao Dr. Amândio César / escritor de talento / e português de boa têmpera", remete-nos para um autor que já dedicara muita da sua atenção à literatura africana e viria a publicar em 1972 uma Antologia do Conto Ultramarino (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/658.html) onde Reis Ventura seria incluído.

 

Do romance Queimados do Sol transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Quando Ana Maria e seu pai sairam do recinto da alfândega, no Aeroporto de Luanda, encontraram a esperá-los os Malagambas, que lhes tinham oferecido dois quartos na sua casa do Bairro do Café, enquanto não conseguissem um apartamento na superlotada capital de Angola.

 

Os Malagambas viviam agora sòzinhos naquela ampla vivenda construída nos bons tempos da alta do café, com os primeiros lucros da sua roça do Quibaxe. Ele – Firmino do Santos Malagamba – era um tripeiro de gema, nascido na Rua da Cedofeita e crescido no ambiente laborioso do Porto, entre os seus livros de aluno da Escola Industrial e a tarefa de ajudar os pais na labuta duma pensão que tinham instalado com dinheiro ganho no Brasil.

 

Com 19 anos e já com a sua carta de curso, embarcara para Angola e à custa de muito esforço, começando por simples mecânico, tinha chegado a proprietário duma importante oficina de reparação de automóveis e a dono daquela plantação de café em que, pela graça de Deus, os terroristas não tinham tocado.

 

Aos vinte e sete anos casara com a Manuela Vieira, filha mestiça dum comerciante abastado, que era então famosa em toda a cidade, pela sua beleza e pela sua voz de ouro nas festas do antigo Clube Naval.

 

Agora, ambos tinham já cabelos brancos e dois rapagões na Universidade de Lisboa, um a começar Medicina e o mais velho já no terceiro ano de Direito.

 

Gente de vida desafogada e com boas relações na classe média da cidade, realizava em sua casa, pela diversidade étnica dos que a frequentavam, um exemplo bem típico da sociedade multirracial de Angola."

 

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22.03.10

Nuno Bermudes - Exílio Voluntário


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Nuno Bermudes (1924-1997), Exílio Voluntário (1966).

Capa de José Pádua (n. 1934).

 

Nuno Bermudes teve o seu percurso literário marcado pela poesia, por Moçambique e pelo Brasil. A sua primeira obra, O Poeta e o Tempo, foi publicada em 1951. No seu percurso poético seguiram-se, entre outras, a presente obra, As Paisagens Perdidas e Outros Poemas (1980) e Brasil Redescoberto: Poesia Atlântica (1983).

 

Em prosa, publicou, entre outras obras, Gandana e Outros Contos (1959) e Eu, Caçador, e Tu, Impala e Outras Histórias de Homens e Bichos (1983), esta última retomando o título de um poema de Exílio Voluntário.

 

Nuno Bermudes esteve no centro de uma polémica que o opôs ao escritor Craveirinha (1922-2003), episódio que será posteriormente referido neste espaço.

 

A vivência brasileira do autor deixou marcas na sua obra, como nesta colectânea onde surgem dois poemas relativos ao Brasil, Descoberta e Canção do País de Cecília, o último dedicado à poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964). O Brasil voltaria ainda a ser evocado no seu ensaio Dinah Silveira de Queiroz, sob o Signo da Imortalidade (1981).

 

Dividido em três partes – Exílio Voluntário, Diário de Viagem e Alguns Poemas de Amor, o livro Exílio Voluntário apresenta três temáticas bem diferenciadas. África e as suas metamorfoses, o Brasil, e o amor, através de uma certa expressão que roça o erotismo.

 

De Alguns Poemas de Amor transcreve-se o poema Mapa-Sexo:

 

  "Nossos corpos desenharam nos lençóis

   o mapa de um país imaginário

   – e neles abrimos rios,

   descobrimos oceanos,

   erguemos, entre gritos e gemidos,

   cumes de montanhas,

   desbravámos florestas,

   neles nos perdemos

   e, depois, nos encontrámos,

   deixámo-nos cair,

   exaustos,

   em abismos,

   morremos

   e ressuscitámos."

 

 

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01.03.10

Lígia Guterres - Mussumar


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Lígia Guterres (n. 1932), Mussumar (1966).

 

Antes de publicar esta colectânea de narrativas curtas, a autora havia já publicado, na colecção Imbondeiro (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html), o conto A Roda, que veio a ser inserido também no presente volume.

 

Posteriormente publicou Kanlunga (1972) e, depois de um longo período em que se dedicou essencialmente à tradução, os livros Lendas e Contos Tradicionais do Sul de Angola (1998) e Gente de Benguela Antiga (2000).

 

Os contos que integram esta colectânea, Mussumar, Pedro, Januário, Eliana, A Roda, desenvolvem-se em torno de uma única personagem, opção sublinhada pelos títulos das primeiras quatro narrativas, traduzindo diversas perspectivas da solidão, que oscilam entre a vida no mar, ou à beira-mar, (Pedro, A Roda) e a vida em terra.

 

Do conto Januário transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma manhã, Chingueve que vivia numa cubata em frente da casa de Januário, levantou-se mais cedo com aquele peso que toda a noite não a abandonara. Em frente da porta da cubata vizinha, Rosa cozinhava o mata-bicho. Chingueve não se conteve:

– Você não viu nada esquisito ontem à noite, Rosa? disse.

– Não. Eu não vi. Que você viu, Chingueve?

– Aka! Tenho medo até de contar.

– Conte p'ra mim que você viu.

– Seu Januário 'tava andando em cima do capim do quintal dele. Por cima mesmo, sem dobrar as palhas do capim!

– Não pode ser! Como é que uma criatura é capaz de fazer uma coisa dessas?

–Você não diz que eu sou mentirosa! Eu posso contar mais p'ra você. Ele tinha um lençol muito branco por cima do corpo e dos olhos dele saía lume. Se calha, uma noite você vai ver só com'é. E le digo que fica com medo.

– Súcu iangue! Não diga isso!"

 

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18.02.10

Fernanda de Castro - África Raiz


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Capa de Inês Guerreiro (n. 1915).

 

Fernanda de Castro (1900-1994), África Raiz (1966).

 

Autora de inúmeros livros, no âmbito da literatura infantil, da poesia, do romance e do teatro, e ainda tradutora (traduziu o Diário, de Katherine Mansfield [1888-1923], e Cartas a um Poeta, de Rilke [1875-1926]), Fernanda de Castro tem tido a sua obra ignorada nas últimas décadas. Esquecimento a que não será alheia a marginalização da própria obra de seu marido, António Ferro (1895-1956). Factos certamente indissociáveis, pelos menos em parte, da imagem de ligação ao Estado Novo que o casal teve nas décadas de 1930 e 1940 e do entusiasmo que Ferro inicialmente manifestou pelo modelo fascista de Mussolini (1883-1945).

 

Diversos aspectos autobiográficos da vida da escritora, desde 1906 a 1987, encontram-se registados nas memórias intituladas Ao Fim da Memória, I (1986) e II (1988), uma reformulação do volume de memórias O Pequeno Eu, anunciado na década de 1960 e nunca publicado. A actividade da escritora e as suas relações com  elementos do meio artístico e literário, nacional e internacional, encontrar-se-ão também documentadas naquela que se presume seja a sua volumosa correspondência, ainda inédita. Sabe-se que, entre outras personalidades, manteve longa correspondência com a poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964).

 

Desenho de Eleutério Sanches (n. 1935) para África Raiz.

 

 

Fernanda de Castro raramente se debruçou sobre a temática africana até à publicação deste longo poema, que surge por  razões particulares. A dedicatória do livro desvenda parte dessas razões – "À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha Mãe." Antes deste volume, havia publicado Mariazinha em África (1959), uma obra de literatura infantil, tendo publicado posteriormente Fim de Semana na Gorongosa (1973).

 

África Raíz é uma narrativa em verso de fragmentos da vida de várias personagens da Guiné, Fulas, Mancanhas, Manjacos, Papéis, que culmina com a morte de Joaquim Có. Mas, é acima de tudo, uma elegia a África – "Ventre de Continentes, / és mater e matriz. / Ásia é semente, Europa é flor, / outros serão essência ou tronco, / tu, África, és raiz."

 

Desenho de Eleutério Sanches (n. 1935) para África Raiz.

 

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14.02.10

Eduardo Teófilo - Cacimbo em Angola


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Eduardo Teófilo (1923-1980), Cacimbo em Angola (1966).

 

Tal como aconteceu com muitos dos autores que nasceram na então metrópole, e posteriormente se deslocaram para África, Eduardo Teófilo iniciou a sua carreira literária com textos cujas temáticas reflectiam essas origens.

 

Sendo essencialmente poeta e ficcionista, o autor começou, contudo, por publicar um conjunto de crónicas sob o título Alentejo não tem Sombra (1954), a que se seguiu o volume de poemas Vida ou Pecado (1955). Já em Angola, onde chegara em 1954, Eduardo Teófilo lançou o seu primeiro volume de contos, Estrelas da Noite Escura (1958), sob a égide das Publicações Imbondeiro, que aliás editaram posteriormente os seus contos Tempestade (1960) e O Regresso do Emigrante (1961). O autor publicara entretanto a colectânea de contos Quando o Dia Chegar (1962), que recebera o prémio Fialho de Almeida, concluindo a sua produção como contista com o volume Contos Velhos (1971). A sua produção poética veio a incluir ainda Primeiro Livro de Horas (1964).

 

Apesar da longa estadia em África (1954-1975), Eduardo Teófilo não reproduziu exclusivamente essa experiência na maior parte da sua obra escrita no continente africano. Cacimbo em Angola, um conjunto de "notas, contos, crónicas e narrativas" de acordo com a classificação do próprio autor, surge com um livro de conteúdo obviamente heterogéneo. Aí se publicam contos dos anos 50 e republicam narrativas de anos posteriores, entretanto saídas nas publicações Imbondeiro. Aí surgem também informações e reflexões importantes sobre a colecção Imbondeiro, os seus dinamizadores, Garibaldino de Andrade (1914-1970) e Leonel Cosme (n. 1934), e as vicissitudes que entretanto afectaram a editora. Aí surgem, finalmente, extraordinárias e inesperadas considerações, como aquelas que encontramos na "nota" Missão Sagrada – "Já quase deixei de ler jornais, quer nossos quer dos outros. A Rádio, já a não escuto. (...) E são páginas exaltadas dos nacionalismos de uns, cheirando a neo-fascismo odiento, ou frases empoladas de um marxismo ortodoxo, ultrapassadas e que já não convencem, palavras que mais cavam os abismos fundos, abertos, a dividir os homens, que mais acendem ódios, em lugar de unir e empolgar."

 

 

 

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