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Literatura Colonial Portuguesa

Literatura Colonial Portuguesa

07.06.16

Miguel de Noronha de Paiva Couceiro - Diu e Eu


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Miguel António do Carmo de Noronha de Paiva Couceiro (1909-1979), Diu e Eu (1969).

 

O autor, que também criou a ilustração para a capa e os 21 desenhos a preto e branco que surgem extra-texto, exerceu as funções de governador de Diu entre Agosto de 1948 e Julho de 1950.

 

Do capítulo Hospitalidade Indiana transcrevem-se alguns parágrafos:

 

     "Em Goa, grandes povoações que nós chamaríamos vilas, designam-se por aldeias e, coaldeanos se consideram os que lá nasceram. Boa metade dos Goeses luta pela vida longe do berço em que se criou e só, de longe em longe, as grandes festividades familiares os reunem no seu ninho paterno: os casamentos, os baptizados – também os funerais, pois, como se diz em Espanha, «el muerto al hoyo y el vivo al bollo». À roda da mesa sólida, a família se congrega, na casa de jantar imensa. E lá correm os sarapateis, os xacutis, a bebinca, etc. – eu tive a ocasião de seguir este ritual fagueiro em Chandor, em casa do meu amigo Francisco Egídio Fernandes e apetecia-me lá voltar enquanto as enzimas trabalharem a preceito!

 

Nas grandes mansões, àparte, está a casa de hóspedes, aonde as suas comodidades são atendidas, respeitando escrupulosamente os hábitos peculiares de cada um. No «Manaranjan», em Junagadh, mantinham-se a posto três cozinheiros, um Hindu, outro Muçulmano e o terceiro Cristão, e nunca chouriço, nem orelheira, iriam macular a mesa do leitor do Corão!

 

Fui, com o Comandante Luís Cardoso, visitar o Visconde de Pernem, aos seus domínios lá para os confins nortenhos de Goa. Recebeu-nos fidalgamente, envergando o seu «pudvem», e mostrou-nos a vasta residência, os longos aposentos, deslumbrando-nos com os arreios do seu elefante de cerimónia, tauxiados de prata. Ainda que na cavalariça – aliás elefantariça – faltasse o paquiderme, sacrificado a algum motor de explosão.

 

E apareceu-nos outro palácio: «a casa de hóspedes», explicou o Visconde. «Quantos pode alojar?» – perguntei. «Quatro», foi a resposta sucinta e insisti: «quatro pessoas?!» – «Não, quatro famílias». E, para quem conheça a extensão das famílias indianas, a resposta é elucidativa.

 

Mostrava-nos os seus jardins e, de súbito, aponta para o que me parecia qualquer roseira mal cuidada, dizendo, perentório: «hortaliça – quiabos». Eu tinha chegado na véspera do Chiado e não vinha disposto a engolir a primeira história de cobras que me quiséssem impingir. Já andava desconfiado com a do visconde que, ao meio-dia, me aparecia embrulhado no que, a mim, me parecia um lençol de cama... De modo que aceitei polidamente mais esta da hortaliça, sem a tomar demasiadamente a sério.

 

Mas vim a verificar, mais tarde, que os tais quiabos, bem refogados, são o melhor acompanhamento dum caril e o Visconde de Pernem pagara os direitos de mercê e, de turbante e jóias, tinha um dia esmagado os mirones de Lisboa!"

 

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10.04.16

Joaquim Paço d'Arcos - O Samovar e Outras Páginas Africanas


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Joaquim Paço d'Arcos (1908-1979), O Samovar e Outras Páginas Africanas (1972).

 

Publicam-se neste volume excertos em prosa dos livros Herói Derradeiro (1933), Amores e Viagens de Pedro Manuel (1935), O Navio dos Mortos e Outras Novelas (1952), volume de onde se extraíu o conto O Samovar, que já havia sido publicado autonomamente em 1957 (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/13468.html) e Carnaval e Outros Contos (1958), bem como três poemas do livro Poemas Imperfeitos (1952; volume publicado três anos depois em francês: http://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/222251.html).

 

Transcreve-se integralmente um desses poemas:

 

"NEGRA QUE VIESTE DA SANZALA...

 

Negra que vieste da sanzala

E na esteira, sobre o soalho, te estendeste,

Recusando o leito branco e macio;

Negra que trazias no corpo o cheiro do capim

E da terra molhada,

E o travo das queimadas;

Negra que trazias nos olhos castanhos

Sede de submissão,

Que tudo aceitaste em silêncio

E lentamente desnudaste o teu corpo...

 

Estátua de ébano,

Animada pelo sopro da lascívia

e pela febre do desejo;

Negra vinda das terras altas de Chimoio

À cidade que o branco plantou à beira-mar.

Vinda para te venderes...

Comprada a uma preta velha e desdentada,

A troco dum gramofone;

Vendida e trespassada de mão em mão.

 

Que é do pano branco de chita

Em que envolvias teu corpo

E escondias tua carne tremente

De tanta volúpia que guardava?

Que é da esteira gasta em que repousou teu corpo

E vibrou tua carne?

Onde vão as noites de África,

Encharcadas de cacimba,

Impregnadas de álcool do hálito e dos beijos?

Luminosas, serenas...

 

Vinham do pátio as vozes em surdina

Dos teus irmãos em cor...

Vinham do mato os gritos roucos das hienas

E o seu choro lamentoso,

De acentos prolongados,

Tal o de meninos magoados...

 

Tu prendias-te a mim.

Abandonava-te na esteira

E, quando o dia surgia,

No soalho nu havia a esteira nua

E nada mais.

Tinhas partido para a sanzala,

Envolta no pano de chita branca

E no silêncio molhado da cacimba

Da noite transluzente e profunda.

Eu esquecia, saciado, o segredo do teu corpo.

Fazia por te odiar...

Mas, ao sol escaldante do dia,

Queimava-me de novo,

Em ardência e secura,

A sede do teu corpo,

Até que a noite voltava,

Tudo aguando de cacimba...

E na esteira gasta

O teu corpo nu

Voltava a ser

Uma serpe negra...

 

Negra que vieste da sanzala..."

 

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22.03.16

Ruy Burity da Silva - Cantiga de Mama Zefa


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Ruy Burity da Silva (n. 1940), Cantiga de Mama Zefa (1969).

 

Nascido no Lobito, o autor estudou no Ambriz e posteriormente em Nova Lisboa (actual Huambo). Nesta cidade frequentou a Escola Industrial e Comercial de Sarmento Rodrigues, onde foi galardoado por um poemeto intitulado Natal, que ali foi depois declamado precisamente num recital natalício.

 

Em 1963 passou a integrar o Centro Juvenil de Estudos do Huambo, departamento dos Serviços Culturais da Câmara Municipal de Nova Lisboa, que veio a promover a publicação de uma página quinzenal no jornal O Planalto, um programa semanal no Rádio Clube do Huambo e a criação de boletim interno destes serviços.

 

Em 1964 ganhou os Jogos Florais de Nova Lisboa, com o poema Marimba, tendo-se mudado para Lisboa em Dezembro, onde passou a trabalhar nos Serviços Culturais da Companhia de Diamantes de Angola. No ano seguinte reuniu a sua poesia, escrita entre 1955 e 1960, no livro Ochandala, assinado Ruy Silva e publicado em Nova Lisboa.

 

Posteriormente, veio a  integrar a equipa que promoveu a exposição A Arte de um Povo de Angola – Quiocos da Lunda, que decorreu em 1966 na Casa do Infante, no Porto.

 

Para além de artigos dispersos nos jornais O Planalto, de Nova Lisboa, A Província de Angola, de Luanda, Jornal do Comércio, de Lisboa, e Alvorada, da Lourinhã, colaborou também no Boletim da Agência-Geral do Ultramar.

 

Em 1969 anunciava-se a publicação do seu volume de poemas Foi Assim..., que acabou por sair em 1971 com chancela da Sociedade de Expansão Cultural, e a preparação do volume ...Também Já Fomos Um, de que não foi possível encontrar qualquer registo. 

 

É provável que a eventual fixação de residência do autor em França, ocorrida ainda antes do 25 de Abril de 1974, tenha motivado a não publicação deste último livro. Há notícia, que não foi possível confirmar, de que o autor terá regressado a Angola depois de 1974.

 

Ruy Burity da Silva utilizou ainda o pseudónimo Afonso Milando.

 

Do presente volume transcrevem-se dois poemas, Ndongo e Cantiga de Mama Zefa:

 

NDONGO

 

Dos vales e das montanhas. Dos mares e dos rios. Das florestas e savanas...

Lembranças de saudade.

Onde chingufos mil se elevam em uníssono com 

o matraquear estonteante dos carros que passam.

Lavas de pranto incandescente se erguem das sonatas doloridas dos quissanges.

O silêncio.

O universo aberto em espaços infinitos onde saltam ridentes cores em simbiose.

Um dongo sulcando águas revoltas de rio escuro de cantares sombrios.

Música.

Caravanas cruzando estradas em passos arrastados de fadiga.

Música.

Até no choro profundo dos vivos em homenagem

derradeira aos mortos que partem há música.

Letras de alegria.

Letras de lágrimas ardentes.

 

Poesia estranha de estranho poeta que ninguém 

conhece. Para lá dos seus poemas que existem, tudo é silêncio.

E indago:

Quem és tu estranho poeta que cantas os vales,

As montanhas, os mares, os rios, as florestas e savanas?...

Silêncio!

Cantas e  teu povo canta também.

Vibras e vibram contigo almas estranhas

que guardam segredos fecundos de vidas passadas.

No anonimato em que persistes vives constante.

Pertenças ao presente, ou ao passado.

Morto, ou vivo.

Existes sempre presente no eco repetido dos teus

cantares e na sonata triste dos tocadores de quissanje.

 

 

 

CANTIGA DE MAMA ZEFA

 

Ainda me lembro dela

matrona forte desengonçada

tinha sempre uma oração nos olhos

uma canção nos lábios grossos

 

dorme menino dorme

oh! oh! oh! oh! oh!

cazumbi não está vir

mama Zefa tá lh'olhar

 

tinha ciúme do menino

de quem mama Zefa falava com paixão

um dia perguntei com ansiedade

se o menino seria assim como eu

 

mama Zefa olhou-me tristemente

e com lágrimas na voz cantou

– não fala assim meu menino

Deus não faz filho mulato

 

Veja-se um comentário a este livro, destinado a ser gravado em 12 de Novembro de 1969, para o programa literário da Emissora Nacional intitulado Horizonte, da responsabilidade de Amândio César e Mário António, e a transcrição de um outro poema do autor, aqui: http://museu.rtp.pt/app/uploads/dbEmissoraNacional/Lote%2041/00014007.pdf.

 

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23.09.13

Eugénio Ferreira da Silva - Arco-Íris


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Eugénio Ferreira da Silva (1917-), Arco-Íris (1962).

 

Formado na área de Belas-Artes, Eugénio Ferreira da Silva integrou as equipas de escultores que intervieram na Exposição do Mundo Português, realizada em Lisboa  no ano de 1940, trabalhando sob a direcção dos conhecidos escultores João Fragoso (1913-2000) e Vasco Pereira da Conceição (1914-1992).

 

Executou também, no campo da escultura, o monumento ao padre Agostinho Antunes de Azevedo (1876-1933), erigido em Vila do Conde, e os trabalhos em bronze do antigo café Palladium, em Lisboa.

 

Embora tenha colaborado com diversos órgãos da imprensa regional da então denominada Metrópole, foi este volume o seu primeiro trabalho publicado na área da literatura, sendo também o único livro seu de que parece haver registo.

 

Ao longo dos textos de todo este volume perpassa uma sólida linha traçada por uma educação de índole cristã paradoxalmente combinada com um latente paganismo e animismo de tradição africana.

 

Ocorre ainda, no conjunto formal e conceptualmente conservador desta poesia, a inusitada heterodoxia do poema intitulado Batuque na Sanzala, onde uma exclusiva composição onomatopaica remete quer para o primeiro modernismo português quer para as composições de inspiração dadaísta.

 

Transcreve-se deste volume o poema Folclore Enfeitiçado:

 

"Casas velhas dos Muceques

 tão cheias de pitoresco...

 feito de assombros, profundo...

 Beleza que de outro mundo

 ali decora o coqueiro...

 Divertimento fagueiro,

 na gíria dos seus «moleques»,

 a ver quem os trepa primeiro...

 O exótico imbondeiro,

 com os seus tortuosos braços,

 lembrava a angústia e os cansaços

 de úberes ventres de Terra... 

 No terreiro a petisada

 tão ranhenta e barriguda...

 Gritos de jaspe a sorrir

 abrindo a boca carnuda...

 

 .......................................................

 .......................................................

 

 Buscas alguém em Luanda?!

 Alguém que tu não descubras?...

 Então não vás à Mutamba,

 não vás à Maianga,

 não vás à Angambota...

 mas vai à Chicala!...

 Procura-o que encontras,

 ouvindo um batuque

 na velha sanzala

 do querido Muceques [sic] ...

 Muceques das quitandeiras,

 das lindas «Acácias Rubras»...

 dos coqueiros expressivos

 dançando «Trópico» aos ventos...

 E que soberbos lamentos

 deixa ali a ventania...

 A velha negra tirando

 fumaças do seu cachimbo...

 Um velho de «Capolana»

 com receio do cacimbo...

 Oh meu antigo Muceques [sic]!

 Oh folclore de Luanda;

 Oh Mouraria africana,

 trago-vos no coração!...

 Desde as negrinhas Cafekos,

 negras de veste escarlata...

 Da carpideira à mulata

 a esses travessos moleques."

 

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03.03.10

Mário Mota - Angola, Eu Quero Falar Contigo


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Mário Mota (1916-1981), Angola, Eu Quero Falar Contigo (1962).

 

Poeta e ensaísta, Mário Mota começou por publicar o conjunto de canções Traço-de-União e os poemas Retrato e Três Tábuas, de que se desconhecem as datas. Seguiram-se-lhes os volumes de poemas Dom Alentejo (1939), Os Troncos e as Raízes (1954), Gonga: Poemas de Angola (1962), Humanidade (1977), Poemas para Florbela d'Alma (1979) e Verdura:Poemas a Sintra (1979).

 

O presente volume anuncia a publicação do livro de poemas Dança Negra, da colectânea Vida Poética e do conjunto de contos Estrada de Catete, mas não se encontram registos da publicação dessas obras sob estes títulos. É muito provável, no entanto, que Dança Negra corresponda ao livro Gonga: Poemas de Angola, pois o subtítulo é comum.

 

Na senda do que já tinha sido feito por outros autores, durante as décadas de 1930 e 1940, na revista O Mundo Português, Mário Mota publicou também como separata da revista Gil Vicente o seu contributo para uma lista da literatura colonial, intitulado Uma Bibliografia de Literatura Ultramarina (1969).

 

Seguindo embora uma carreira na aeronáutica civil, o autor colaborou na imprensa e na rádio, particularmente em Angola. O seu poema mais conhecido, A Palavra, foi traduzido em várias línguas e incluído nas antologias Phalanstere de la Poesie (Bélgica) e International Anthology (Reino Unido).

 

Do presente volume transcrevem-se o poema O Menino e um excerto de um poema evocativo do escritor são-tomense Costa Alegre (1864-1890; cf. http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/7316.html):

 

O MENINO

 

   A preta lavadeira já é mãe

   e a sua primeira preocupação

   foi mostrar o seu menino preto

   ao patrão

   e à senhora do patrão...

 

   O seu homem veio também.

 

   Ela vestiu panos estampados, novos, era mãe,

   Ele trazia o menino ao colo, aconchegado.

 

   Vinham contentes, ela gesticulando.

 

   Por fim chegaram.

 

   E discutiram entre os dois qual o primeiro a falar.

 

   E sorriram para o seu menino preto.

   Abriu a porta  a senhora do patrão.

 

   E os dois apenas disseram:

 

   O menino!

 

   Estava feita a apresentação.

 

 

COSTA ALEGRE

 

   (...)

 

   O poeta era negro

   e tinha pena de ser negro

   este poeta negro de São Tomé!

 

   Mas só a sua pele luzidia

   era negra,

   escura,

   sombria como o negrume da noite.

   Tudo o mais se expandia

   e refulgia no poeta em grandeza

   numa indiferença pela cor

 

   (...)

 

   Que tinha que fosse negra a sua cor

   e luzidia  sua pele?

 

   Não era a sua poesia de frescor

   não era cristalina a sua ansiedade?

 

   Porque odiaria o poeta a sua cor?

 

   Que tem que ver a cor

   de cada um

   se é igualmente humano

   o seu amor

   e igual a mesma dor

   seja qual for a cor?

 

   (...)

 

 

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01.03.10

Lígia Guterres - Mussumar


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Lígia Guterres (n. 1932), Mussumar (1966).

 

Antes de publicar esta colectânea de narrativas curtas, a autora havia já publicado, na colecção Imbondeiro (http://literaturacolonialportuguesa.blogs.sapo.pt/3552.html), o conto A Roda, que veio a ser inserido também no presente volume.

 

Posteriormente publicou Kanlunga (1972) e, depois de um longo período em que se dedicou essencialmente à tradução, os livros Lendas e Contos Tradicionais do Sul de Angola (1998) e Gente de Benguela Antiga (2000).

 

Os contos que integram esta colectânea, Mussumar, Pedro, Januário, Eliana, A Roda, desenvolvem-se em torno de uma única personagem, opção sublinhada pelos títulos das primeiras quatro narrativas, traduzindo diversas perspectivas da solidão, que oscilam entre a vida no mar, ou à beira-mar, (Pedro, A Roda) e a vida em terra.

 

Do conto Januário transcrevem-se alguns parágrafos:

 

"Uma manhã, Chingueve que vivia numa cubata em frente da casa de Januário, levantou-se mais cedo com aquele peso que toda a noite não a abandonara. Em frente da porta da cubata vizinha, Rosa cozinhava o mata-bicho. Chingueve não se conteve:

– Você não viu nada esquisito ontem à noite, Rosa? disse.

– Não. Eu não vi. Que você viu, Chingueve?

– Aka! Tenho medo até de contar.

– Conte p'ra mim que você viu.

– Seu Januário 'tava andando em cima do capim do quintal dele. Por cima mesmo, sem dobrar as palhas do capim!

– Não pode ser! Como é que uma criatura é capaz de fazer uma coisa dessas?

–Você não diz que eu sou mentirosa! Eu posso contar mais p'ra você. Ele tinha um lençol muito branco por cima do corpo e dos olhos dele saía lume. Se calha, uma noite você vai ver só com'é. E le digo que fica com medo.

– Súcu iangue! Não diga isso!"

 

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27.02.10

Costa Alegre


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Lopes Rodrigues (n. 1928), O Livro de Costa Alegre: O Poeta de São Tomé e Príncipe (1969).

 

A obra poética de Caetano da Costa Alegre (1864-1890) foi compilada postumamente no livro Versos (1916), cuja edição foi promovida pelo seu antigo companheiro e amigo Artur da Cruz Magalhães (1864-1928). À edição original seguiram-se três edições, em 1950, 1951 e 1994, sendo esta última publicada pela IN-CM.

 

Conjuntamente com as temáticas do amor e da morte, características de alguma poesia da época, Costa Alegre desenvolveu ainda uma temática associada à sua negritude e também a São Tomé.

 

Aluno da escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, Costa Alegre acabou por falecer em Alcobaça, vítima de tuberculose. O futuro presidente da República, Bernardino Machado (1851-1944) encontrava-se entre as pessoas que transportaram o féretro, sendo o funeral uma grandiosa manifestação de pesar, conforme relatou o jornal Commercio de Portugal, de 21 de Abril de 1890:

 

"Atraz da carreta seguia se uma grande deputação da escola naval, levando um dos seus alumnos, sobre uma almofada coberta de crepe, a espada e o bonet do desditoso poeta. Immediatamente depois incorporaram-se todos os seus collegas e amigos, sendo o prestito formado por mais de mil pessoas!"

 

Os restos mortais de Costa Alegre foram depositados no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde já tinham sido depositados os restos de Gonçalves Crespo (1846-1883), poeta e negro como ele, e foram depois depositados os restos mortais da esposa deste último, Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921).

 

No entanto, apenas os restos mortais dos dois últimos foram posteriormente trasladados para o Jazigo dos Escritores.

 

 

Da obra de Costa Alegre transcrevem-se uma quadra e o poema Visão:

 

  "Se os escravos são comprados ,

   Ó branca de além do mar,

   Homem livre, eu sou escravo,

   Comprado por teu olhar."

 

   VISÃO

 

  "Vi-te passar, longe de mim, distante,

   Como uma estatua de ebano ambulante;

   Ias de luto, doce tutinegra,

   E o teu aspéto pesaroso e triste

   Prendeu minha alma, sedutora negra;

   Depois, cativa de invisível laço,

   (O teu encanto, a que ninguem resiste)

   Foi-te seguindo o pequenino passo

   Até que o vulto gracioso e lindo

   Desapareceu longe de mim, distante,

   Como uma estatua de ebano ambulante."

 

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20.02.10

Orlando de Albuquerque - Cidade do Índico


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Orlando de Albuquerque (1925-1997), Cidade do Índico (1963).

 

Nascido em Moçambique, Orlando de Albuquerque formou-se em Medicina na Universidade Coimbra e radicou-se posteriormente em Angola.

 

Tendo publicado até 1963 dois livros de poemas, Batuque Negro (1947) e Estrela Perdida e Outros Poemas (1962), Orlando de Albuquerque escreveu posteriormente vários livros de contos e romances, muitos deles editados ou reeditados na década de 1990, sendo também co-autor de História da Literatura em Moçambique (1998).

 

Antes de 1974, para além de alguma poesia, publicara ainda o romance O Homem que Tinha a Chuva (1968) e o livro de contos De Manhã Cai o Cacimbo (1969).

 

O livro Cidade do Índico foi dedicado à memória de Alda [Lara, (1930-1962)], cuja obra poética completa foi editada em 1997, com notas biográficas e introdução de Orlando de Albuquerque.

 

Em Cidade do Índico o autor revisita à distância a sua vida em Moçambique, recordando o seu quotidiano e as suas emoções em Lourenço Marques (actual Maputo), cidade do Índico, através de memórias enternecidas e belos textos. Poemas como Preta Felismina, Comboio de Marracuene, Canção Triste para Embalar um Menino Negro, Canção do Negrinho Perdido, Recordação e Regresso deixam-nos a imagem de um poeta com uma profunda sensibilidade africana, um poeta atento à doçura e à amargura da vida nesse continente.

 

Cidade do Índico é ainda particularmente notável pelo inclusão, eficaz e pertinente, de várias expressões dos dialectos moçambicanos, criando um discurso inovador e uma atmosfera poética rara até então.

 

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15.02.10

Rodrigues Júnior - Era o Terceiro Dia de Vento Sul


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Rodrigues Júnior (1902-1990), Era o Terceiro Dia de Vento Sul (1968).

 

Apesar de se assumir essencialmente como jornalista, Rodrigues Júnior publicara antes deste livro os romances Sehura (1944), O Branco da Motase (1952), Calanga (1955) e Muende (1960, galardoado com o prémio Fernão Mendes Pinto). 

 

Além destas obras, publicara também mais de uma trintena de títulos correspondentes a textos  que o autor classificara como "ensaios", "estudos de assuntos ultramarinos" e "reportagens-inquéritos".

 

As narrativas reunidas no volume Era o Terceiro Dia de Vento Sul surgem como um conjunto de pequenos textos autónomos, mas relacionados entre si através das personagens e dos espaços ficcionais, textos que supostamente serviram de esboço para um romance anunciado em 1968 mas publicado apenas em 1976 – Omar Ali.

 

A temática destas narrativas, classificadas pelo autor como "apontamentos", lida essencialmente com aspectos da vida indígena em Moçambique, como se verifica pelos títulos "Nhangau – O Curandeiro Negro", "Sambula – O Feiticeiro Negro" ou "Batuque", na perspectiva de um narrador europeu. Surgem também, inevitavelmente, os vocábulos específicos de várias etnias que, ao contrário do que acontece com outros autores, não são abrangidos por um glossário explicativo, em notas-de-rodapé ou no final do volume.

 

Rodrigues Júnior aborda ainda temáticas de índole social que traduzem questões coloniais, como a mestiçagem e, aspecto particular de Moçambique, a fixação de etnias indianas na região, de que o texto "Mulgy – O 'Monhê' do Mercado" é particularmente significativo.

 

As narrativas deste volume consubstanciam também o núcleo do romance Omar Ali através dos vários textos que tratam da vida dos pescadores da Ilha de Moçambique. É, aliás, um destes textos, "Era o Terceiro Dia do Vento Sul", que dá origem ao título do livro.

 

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